Editorial
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HELOISA ESTÁ PRESENTE

No mês de março deste 2025 perdemos Heloisa. Passado o primeiro momento tão doloroso, começamos a pensar no que ganhamos dela. Junto com a saudade, as lembranças de tudo que nos deixou. Esse número da Revista Z Cultural é todo em homenagem a Heloisa Teixeira, como preferiu se chamar nos últimos tempos.

Como muitos outros projetos, a criação da Revista Z foi um trabalho conjunto, meu e dela, no início do PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea), ainda na sede na Praia Vermelha, há mais de 20 anos. O nome foi ideia de Helô depois de longos debates. Queria uma coisa de impacto, sem rastro de academicismo. Novo. O argumento final foi que a revista faria o nome. Estava certa. Virou mesmo a Z!

Quando o PACC veio para a Faculdade de Letras da UFRJ, já com maior experiência sobre o que a internet se tornara, a revista ganhou mais corpo e seriedade. A colaboração dos outros pesquisadores do PACC tornou-se definitiva e passamos a ter dossiês com responsáveis divididos pelos participantes do Programa. Com o trabalho nas Quebradas absorvendo muito, Heloisa deixou de ser editora e passou a curadora. Até o último número publicado manteve a coluna que inventou: “Vale a Pena Ler de Novo”.

Dia 26 de julho Heloisa faria 86 anos. Bem vividos e com imenso legado para a sociedade, para a cultura, para a universidade, para os que conviveram com ela.

A Revista Z e nós todos agradecemos! E este agradecimento toma a forma do presente número, que reúne, como o leitor verá, homenagens à pessoa, à articuladora, à pesquisadora e à professora Heloisa, depoimentos sobre a convivência com Helô e a importância que ela teve no caminho de tantas e tantos (tantos que não cito nominalmente os colaboradores), análises de sua atuação, seu pensamento e seus livros, além de uma entrevista inédita.

Boa leitura!

Beatriz Resende
Editora da Revista Z Cultural

Dossiê
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SESSÃO DA SAUDADE

Cerimônia de posse de Heloisa Teixeira na Academia Brasileira de Letras (Fonte: Academia Brasileira de Letras. Disponível em: https://www.academia.org.br/galeria/cerimonia-de-posse-heloisa-teixeira).
Cerimônia de posse de Heloisa Teixeira na Academia Brasileira de Letras (Fonte: Academia Brasileira de Letras. Disponível em: https://www.academia.org.br/galeria/cerimonia-de-posse-heloisa-teixeira).

Declaro-me profundamente agradecido à Helô e registro também a admiração que sempre tive por ela ao longo de décadas, embora não tivéssemos tido um convívio mais direto. Quando saiu a antologia 26 poetas hoje, eu ainda não conhecia aqueles que hoje estão aqui, mas conhecia alguns dos outros. Um deles, meu amigo até hoje, o Chico Alvim — com quem mantenho um contato quase permanente — me fez ver, imediatamente, que era um livro importante. Destaco também o Zuca Sardan. Os dois não apenas eram meus amigos, mas vizinhos de escritório, digamos assim. Eu trabalhava no 5º andar, no anexo do Itamaraty, e eles no 4º. Então, com eles, tinha um contato muito direto. Conhecia também a Vera Pedrosa e vim a conhecer a Ana Cristina Cesar. Destaco isso porque a Ana foi um elo de contato com a Helô.

A Ana chegou a se hospedar comigo e com minha mulher em Paris, quando morava em Londres. Ela se comunicava muito frequentemente com a Helô. Em 1999, quando a Helô publicou a Correspondência incompleta — uma referência à Correspondência completa, da Ana Cristina, um livrinho amarelo —, ela entrou em contato comigo porque sabia que eu tinha fotos da Ana. Mandei para ela, que colocou as fotos da Ana na primeira página interna, na orelha e na contracapa do seu livro.

Meu contato com a Helô, inicialmente, foi pequeno — até porque eu não morava no Brasil. Mas nos encontramos em 2001, quando ela compareceu ao lançamento do meu livro As cinco estações do amor. Para minha grata surpresa e meu eterno agradecimento, ela foi uma das primeiras a escrever uma resenha sobre o livro, no Jornal do Brasil. E não escreveu apenas sobre aquele livro. Isso revela o cuidado que tinha com seu trabalho crítico, pois fez, naquele momento, uma resenha sobre meus três romances — eram apenas três, na época.

A acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira, como diretora da Revista Brasileira, sugeriu que essa resenha fosse reproduzida em um número mais recente da revista. Conversei com a Helô sobre isso, pois pensei em usar a resenha como prefácio de uma nova edição. Ela me disse: “Olha, fique inteiramente livre, o texto é seu. Fico muito contente, até gostaria.” Ela não me revelou a gravidade do seu problema de saúde, mas já estava muito sem voz, inclusive em nossas reuniões. Nesse telefonema, ela me disse: “Gostaria muito de estar lá presente, inclusive na mesa, mas queria que você me desse um telefonema duas semanas antes, porque, se minha saúde permitir, eu gostaria mesmo de estar lá”. Não dei o telefonema por achar que, de fato, ela não estava bem, ainda que eu não soubesse da gravidade.

Quero falar também de uma coincidência — que não é apenas coincidência. Voltei de uma viagem ao Nordeste, onde tive duas apresentações em Fortaleza e uma em Natal. Em Natal, encontrei uma das poetas da outra antologia que a Helô organizou, As 29 poetas hoje — a Regina Azevedo. Não é coincidência que eu vá a lugares distantes no Brasil e encontre pessoas que a Helô soube identificar com talento, espalhadas pelo país.

Em Fortaleza, precisei escolher alguém para dialogar. Sugeri à Editora Record que convidasse uma das 29 poetas que morava lá: uma professora universitária que veio das quebradas, trabalhou no MST, uma moça negra de enorme talento, que aceitou participar. Disse a ela: “Tenho enorme prazer de estar aqui com uma pessoa que foi identificada pela grande crítica Heloisa Teixeira”. Esse foi o ponto de partida para nosso diálogo — uma conversa sobre o trabalho da Helô com essa jovem tão inteligente e preparada.

Depois, tive uma segunda oportunidade em Fortaleza: pela primeira vez, acho, na história da Academia, nossa Revista Brasileira foi lançada fora do eixo Rio–São Paulo, com autorização da Rosiska. Isso porque havia um retrato da Rachel de Queiroz na revista. Falei nesse evento, assim como a Ana Miranda, que teve contato direto com a Rachel e falou de maneira muito afetuosa sobre ela.

Minha fala foi muito em torno da Helô: quis transmitir ao público aquele texto recente dela sobre a escolha do fardão da Rachel — um texto com muito humor, muito interessante. Além disso, resolvi doar à Academia Cearense de Letras vários exemplares de um dos livros da coleção que organizei na Alemanha, sobre doze grandes autores brasileiros. No caso da Rachel de Queiroz, convidei a Helô para escrever porque sabia que ela já havia escrito sobre a Rachel e gostava dela. Mais que gostar: apreciava profundamente sua ficção, sobretudo as personagens femininas — sempre muito fortes desde O Quinze. A Helô participou do projeto com um texto excelente, como não podia deixar de ser.

Quero registrar também algo que considero importante: a Helô foi uma feminista de destaque, de grande influência. E, mesmo sendo uma feminista convicta, soube reconhecer o valor literário de uma antifeminista declarada como Rachel de Queiroz. O que conto aqui aconteceu na noite de 27 do mês passado; soube da morte da Helô na manhã seguinte.

Queria deixar esse registro: o de que ela me acompanhou, de alguma forma, ao longo de décadas — e me acompanhou de maneira especial nesses últimos dias no Nordeste. Fico eternamente grato por tudo que ela fez. Mesmo não tendo me envolvido diretamente nos projetos tão importantes que ela concebeu e realizou, mantenho profunda admiração pelos caminhos que abriu, pelo papel que sempre desempenhou: o de ser um farol a iluminar novos rumos. Inclusive esse da Universidade das Quebradas, que não se limitou ao Rio de Janeiro — ela o levou, de alguma forma, ao país inteiro. É isso.

* João Almino é escritor e diplomata. Doutorou-se em Paris, orientado pelo filósofo Claude Lefort, e ensinou na UNAM (México), UnB, Instituto Rio Branco, Berkeley, Stanford e Universidade de Chicago. Em 2017 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. É autor de ensaios e romances, entre eles Cidade livre (2010), Enigmas da primavera (2015) e Homens de papel (2022).
Dossiê
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Crônica para a amiga que se foi

Soube que ontem você se foi, sem ar para respirar.

Helô, querida, você era a encarnação do paradoxo: quando pensava, uma leoa destemida, aguerrida, inauguradora, inventadeira de novidades; quando sentia, um furacão, que tudo devastava, mas que também se deixava devastar, e dava de parecer frágil, os pulmões logo se ressentiam, uma tristeza profunda da qual não se livrava, nem com todas as mezinhas do pai, grande médico, nem com o saber que adquirira ao longo dos tempos; nem com o carinho daqueles a que permitia dividir sua intimidade. Depois, com o tempo, a alegria voltava. Porque do lado de fora, no sorriso e no trato com as pessoas, a alegria estava sempre lá, sustentando sua beleza de atriz nouvelle vague.

Foi essa figura sedutora, descolada e irreverente que conheci quando, um dia, aluna ainda do curso ginasial do colégio Sion (Rio de Janeiro), sentada em sala de aula, junto à turma de colegas, fui apresentada à nova professora de Latim. Surpresa geral diante daquela pessoa ainda tão jovem, escolhida para ensinar uma língua tão velha, que já era considerada morta. O contraste entre o conteúdo e a forma não passou despercebido ao grupo, que murmurava baixinho: “Quem será? É bonita! Como se veste bem…”. Ela tinha um vestido de malha de tricô bege, e usava um cinto de couro com argolas de metal escuro separando as partes, displicentemente colocado sobre os quadris, os sapatos eram mocassins marrons bem ao gosto da época, e a bolsa era de couro, grande, dessas que abrigam muitos mistérios femininos, com alças que se sustentavam no ombro. Gente, o espanto era total. Parecia saída da página da ELLE: tudo simples despojado, mas perfeito. Até os cabelos, longos até o ombro, charmosamente soltos e ondulados. As professoras do colégio, na época, ou eram freiras, ou eram senhoras tradicionais, em seus tailleurs em tom neutro e blusas de frufru; e eram feias, meu Deus, como se, para mostrar saber, não se pudesse ser bela nem vaidosa. E ela, aquela nova professora, ali, mostrava uma outra imagem, sobretudo pela altura do comprimento do vestido tubinho, bem acima dos joelhos.

Foi sucesso imediato e amor à primeira vista.

Não me lembro exatamente do ano, mas, conferindo pelas datas de sua cronologia, ela devia estar no máximo em torno dos dezenove anos, e eu, ainda uma adolescente, pelos quinze. Ela era exuberante na expressão, usando uma linguagem correta, mas muito à vontade, onde não faltavam as gírias… como podia ensinar Latim, ainda por cima num colégio de freiras, mesmo que tivesse fama de ser um colégio inovador, pra frente!? Era o desafio que queríamos descobrir, um mistério a desvendar, curiosas e atentas.

Foi pela didática que ela revelou porquê estava ali, pelo método com que se aproximou de uma matéria que, mesmo para nós, acostumadas com estudos, parecia tão chata. Com ela, descobrimos que não só de regras e de gramática se faz um meio de entrar no convívio com uma língua, no caso, uma língua morta. O modo era uma ginga: precisava tornar a língua viva. Agora vejo que estávamos diante de uma pessoa cujos conhecimentos do mundo antigo se punham a serviço do atual, do contemporâneo: não estava interessada em declinações, nem em decorebas. O De bello gallico que deveríamos saber traduzir para as provas, virou oportunidade para usarmos o burro com inteligência – uma coisa que só muitos anos depois compreendi, lendo O mestre ignorante, de Jacques Rancière, que se baseia na experiência do professor francês Joseph Jacotot, no século XIX, ao ensinar francês a holandeses, acreditando que “a instrução é como a liberdade: ela não se dá, conquista-se”. Nosso trabalho era ler o burro, e usar aquela cola da tradução, de modo inteligente, como num jogo paciente e comparativo. A bem da verdade, aprendemos a “colar bem”. Nossa ignorância nos irmanava e nos ajudávamos umas às outras a compreender o texto difícil. Como diz Rancière (2007, p. 47):

Aprendem-se frases e, ainda, frases; descobrem-se fatos, isto é, relações entre coisas e, ainda, outras relações, que são de mesma natureza; aprende-se a combinar letras, palavras, frases, ideias… Não se dirá que adquirimos a ciência, que conhecemos a verdade, ou que nos tornamos gênios. Sabemos, contudo, que, na ordem intelectual, podemos tudo o que pode um homem.

Pois o olhar dela estava voltado para o contexto específico textual e o maior, conjuntural, para o modo como viviam aqueles romanos, para a descoberta de quais seriam seus hábitos, em que eles acreditavam, como eram suas casas, como era a rotina diária das mulheres, como era o ritual do casamento etc. Não sairíamos latinistas, tradutoras, mas antenadas com o entorno. Enfim, dizia que ensinava “Historinha romana”. E nós adorávamos, nos aplicávamos e ao final, éramos compensadas, ainda por cima, com as famosas “boas notas”. Naquelas aulas tudo era diferente. Não sei quanto tempo durou. Fomos privilegiadas.

Depois reencontrei Heloísa, para minha alegria, no meu terceiro ano de Faculdade, naquele grande barracão da Avenida Chile, para onde foi transferida a Faculdade de Letras da UFRJ, a partir de 1968, no ano seguinte ao enrijecimento do AI-5, que tornou mais rigoroso o controle das nossas ações estudantis.[1]

Como a reforma universitária, de 1967, tinha acabado com o curso dito seriado, provocara uma pulverização das disciplinas, implantando um regime em que as escolhas seriam reorganizadas conforme número de créditos e carga horária de cada histórico escolar, de cada aluno. A nossa turma, os alunos de “Português-Literaturas”, como era o meu caso, o de Beá (Beatriz Bueno depois Vieira de Resende), de Ana Teixeira, de Nilza e de Brígida, do Marcílio Morais e do Carlos, nossa patota. Iniciamos, depois do vestibular em 1966, na Avenida Antônio Carlos, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Ocupávamos algumas salas cedidas à Universidade no prédio ocupado do antigo consulado da Itália. Ainda éramos vinculados à Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi). Nossos corredores, nessa época, eram sobretudo o largo passeio da Antônio Carlos, embaixo dos altos pilotis. Depois, em 1967, passamos ao outro lado da rua, ao prédio provisório velhíssimo – onde hoje há um belo edifício anexo à sede da Academia Brasileira ao qual pertence. Chamávamos o predinho ocupado de Senadinho, com suas saletas apertadas, muitas escadas e esquisitices arquitetônicas neoclássicas. Fizemos o segundo e último ano de seriado ali, ainda com espírito de turma, e de turma muito unida. Nesse território livre, andávamos em pequenos grupos pelo centro da cidade, frequentávamos a vizinha Alliance Française, a Livraria Francesa, um botequim pé-sujo, onde às vezes, em dias mais duros, “almoçávamos”. Ah! E ali perto havia um local ótimo onde, uma vez por semana, podíamos compartilhar um bom filé, um luxo! Nada era ideal, mas gostávamos. E não achamos graça na ideia de mudança para a Avenida Chile.

Correio da Manhã, 11 de agosto de 1968
Correio da Manhã, 11 de agosto de 1968

Sem opção, fomos para este exílio, longe do burburinho de que gostávamos. No novo endereço, estávamos num campo aberto, no meio da cidade, uma instalação provisória de Pavilhão, que pertencera a Portugal, em terreno do antigo Estado da Guanabara. Mas já éramos Faculdade de Letras da UFRJ, situação que o diretor pró-tempore Afrânio Coutinho tinha regularizado oficialmente, não sem muita negociação junto ao ministro Moniz de Aragão. Inaugurou-se em uma Aula Magna ministrada pelo professor, em 5 de março de 1968. Mudamos na raça, de Departamento da Faculdade Nacional de Filosofia, passamos a Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, agora com novo endereço próprio, abandonando a vida cigana.

Claro que 1968 foi o ano dramático da transferência de documentos e pessoas – docentes e funcionários – para um grande improviso, no qual obras emergenciais conviviam com as tentativas de salas de aula. Mas o imóvel deixava muito a desejar, o grotesco e o profano convivendo à base de boa vontade. Na entrada desse imóvel, a única instalação, digamos assim, regular, era o auditório, que usávamos para espetáculos e como anfiteatro para as aulas em que se reuniam grandes turmas, como as de Linguística do professor Mattoso Câmara Jr. Havia outras salas menores, como a do diretor e a secretaria. Porém, as aulas eram dadas naquele barracão, um grande espaço compartilhado, que se situava em nível mais baixo e nos fundos do auditório. O galpão era amplo, mal iluminado, praticamente sem divisórias, no qual as cadeiras, de madeira pesada e de braço, eram dispostas de modo a formar aglomerados irregulares, em torno de uma mesa e de um quadro negro, onde em geral se postava uma professora ou um professor. Quando se chegava ao amplo espaço, era pelo docente que se reconhecia a aula que estaria acontecendo naquele aglomerado. Funcionava? Sim, porque havia uma espécie de acordo tácito entre todos, para que ninguém inviabilizasse o curso do outro. Um acordo coletivo espontâneo e curioso. Claro que com altos (sons) e baixos (inaudíveis): de repente havia gargalhadas ou gritos, a interromper o quase silêncio. Mas a gente ia levando. Fazer o quê? Enfim, tínhamos um endereço menos provisório do que o lúgubre Senadinho ou o estranho prédio, frio e velho, da Avenida Antônio Carlos.

Nesse ambiente meio caótico do pavilhão da Avenida Chile, nossos colegas de “Português-Literatura”, mais ou menos ligados por interesses semelhantes, conseguiram permanecer juntos, pelo menos nas disciplinas obrigatórias. As optativas dispersavam mais. Em termos de créditos obtidos, na convalidação de um regime para outro, estávamos bem “adiantados para o terceiro “ano” – ainda não nos referíamos a períodos, mas a anos e semestres, herança anterior, porque o seriado era quase um regime integral, tínhamos aulas pela manhã e pela tarde, quase todos os dias da semana. Portanto faltava-nos pouco para a finalização da graduação e tínhamos ainda dois anos para isso. Folgados na vida acadêmica, mas agitados na vida da política estudantil, a vida era intensa e perigosa. Nosso Diretório Acadêmico (DA) era atuante e ocorreram episódios em que se destacou o espírito combativo, porém diplomático, de Afrânio Coutinho. Heloísa faz um retrato breve desse momento na longa entrevista que dá, junto com Vilma Guimarães, ao Museu da Pessoa, em 16 de fevereiro deste ano de 2025.

Acervo Museu da Pessoa: Vilma Guimarães e Heloisa Teixeira
Acervo Museu da Pessoa: Vilma Guimarães e Heloisa Teixeira

Entre outras coisas importantes, nessa entrevista ela fala de sua pedagogia. No curso de Letras, pelas atitudes que tomava distribuindo tarefas e delegando funções, pude notar mais uma vez aquela posição do “não saber”, que já tinha intuído no convívio de juventude com a professora de Latim. Como observa Eduardo Coelho, à margem da entrevista de abertura para o livro Onde é que eu estou?, para Heloísa, “mais do que um tempo destinado ao ensino de conteúdo […], a aula deve se tornar uma experiência de desconstrução coletiva de práticas acadêmicas”, por uma desierarquização (Coelho, 2019, p. 15). Isso pode se dar desde o rearranjo físico do espaço, para valorizar a horizontalização, à crítica de bibliografias de teses e dissertações, para elencar a presença de autoras. Questões de caráter epistemológico são o que mais interessa. Como também, Coelho chama atenção, e mais adiante ressalta: o que se muda é o paradigma narcísico de resultado, para valorizar o processo, que deve compreender a articulação de atores e saberes. O segredo está no fazer junto, “numa prática inclusiva, em que todos são chamados à reflexão e à ação” (Coelho, 2019, p.20), agregando esse fazer à sustentação da “coisa pública”, à “sociedade como um todo”.

Aprendi, a partir do convívio com Helô, para minha vida prática de professora, que é fundamental ter consciência do que se está fazendo, de como se está encaminhando a dinâmica acadêmica, para garantir um modo aberto e participativo, uma “preocupação com a forma” como ela dizia. Não importa se o resultado pareça confuso aos outros, mas com certeza será experiência viva e marcante para quem atua. Experiência que fica para sempre na memória de cada participante.

* Ana Maria de Bulhões-Carvalho fez graduação em Letras na UFRJ, onde se doutorou em Literatura comparada em 1997, orientada por Beatriz Resende. Aposentou-se titular pela Escola de Teatro da UNIRIO. Escreve sobre teatro e literatura contemporânea. Seu livro sobre Silviano Santiago, Em atenção à palavra do outro: Alterbiografia, a autobiografia Em liberdade, será lançado este ano pela EDITUS, editora da universidade Estadual Santa Cruz, em Ilhéus. Atualmente mora na Bahia.
Referências bibliográficas
HOLLANDA, Heloísa Teixeira. Onde é que estou? Organização de André Botelho [et al.]. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

MUSEU DA PESSOA. Vilma e Helô: construindo futuros nas quebradas. São Paulo: Museu da Pessoa, 2025. Disponível em: <https://museudapessoa.org/historia-de-vida/vilma-e-helo-construindo-futuros-nas-quebradas/>. Acesso em: 24 maio 2025.

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2ª ed. 1ª reimpressão. Tradução de Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

TEIXEIRA, Heloisa. Site oficial. Disponível em: <https://www.heloisabuarquedehollanda.com/nova-pagina>. Acesso em: 24 maio 2025.
Notas
[1] Os fatos referidos à Faculdade de Letras comprovam-se nos relatórios do Diretor da Faculdade Afrânio Coutinho, referentes ao período de 1967 a 1978, disponíveis em: https://labhislingufrj.wordpress.com/wp-content/uploads/2021/03/afranio-coutinho-historico-e-relatorio.pdf.
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⁠⁠HELOISA TEIXEIRA E O FEMINISMO COMO MOVIMENTO DE AFETO

Nos conhecemos na UFRJ, quando ela organizou a abertura do semestre da Universidade das Quebradas no IFCS e como na época eu era diretora do IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ), ela me chamou para fazer uma pequena fala. Depois disso, fizemos várias parcerias, eu a convidando a participar das atividades e encontros do GT Filosofia e Gênero da Anpof, ela me convidando a participar do volume de Pensamento Feminista sobre feminismo decolonial — uma vertente que se distancia das epistemologias feministas eurocêntricas e se alinha com os saberes insurgentes do Sul global. Lélia Gonzalez (1984), precursora dessa perspectiva no Brasil, já denunciava o racismo epistêmico da academia e afirmava a centralidade da cultura negra e popular na construção de um feminismo afro-latino-americano.

Nos últimos anos, a universidade tem sido desafiada a repensar sua função social diante das demandas por justiça epistêmica e inclusão. Em meio a esse cenário, a trajetória de Heloisa Teixeira — conhecida como Helô — destaca-se como exemplo de uma prática intelectual que articula saberes acadêmicos e populares, teoria e afeto, razão e corpo. Sua atuação à frente da Universidade das Quebradas (UFRJ) é emblemática desse esforço de reconfiguração dos espaços e formas de produção de conhecimento.

Criei um projeto de extensão ao contrário, ou seja, uma extensão de fora para dentro, a Universidade das Quebradas. E constituímos um laboratório com formas alternativas de pesquisa, de acesso às diversas formas de conhecimento e de formação dialógica. (Teixeira, 2019)

A Universidade das Quebradas surge como uma resposta prática àquilo que Sueli Carneiro denomina de dispositivo de racialidade, isto é, a dicotomia valorativa baseada na cor da pele e na qual a branquitude é a norma. Uma das consequências do dispositivo de racialidade é o epistemicídio, que entre vários outros efeitos, leva, segundo Sueli Carneiro, ao afastamento das populações negras, pardas e indígenas das universidades. A proposta da Universidade das Quebradas é fazer justiça epistêmica e fazer com que saberes periféricos entrem na Universidade.

Foi [a Universidade das Quebradas] pensada como um laboratório, ou seja, um processo experimental que tenta estabelecer um diálogo, ou troca, entre a academia e o saber da periferia para a construção de novas formas de produção de conhecimento. (Teixeira, 2019)

Helô, ao integrar os saberes das favelas e periferias cariocas ao espaço universitário, desafia sua lógica excludente e elitista. Em sua prática, reconhece-se a força da experiência vivida como fonte legítima de conhecimento. Como mostra a escritora chicana Gloria Anzaldúa (1987), a produção de conhecimento em contextos de fronteira exige não apenas racionalidade, mas também corpo, memória e emoção — aspectos plenamente presentes na abordagem de Helô.

A atuação de Heloisa Teixeira também convida à reflexão sobre o papel do afeto na produção do conhecimento. A noção de feminismo como movimento de afeto emergiu de minha convivência e colaboração com Helô. Desde o primeiro dia em que a conheci, percebi nela uma enorme vontade de conhecer o outro e de se abrir para novas experiências. Ela nunca impunha sua visão de mundo, ao contrário, buscava, através de perguntas, fazer o interlocutor falar e produzir conhecimento. Helô incorpora esse princípio em sua forma de atuação: seus convites, parcerias e projetos não se pautam por critérios burocráticos ou meritocráticos, mas por vínculos afetivos e políticos.

Cena da série O que querem as mulheres?, que estreia no Canal Brasil. A partir da esquerda: Stephanie Ribeiro, Heloisa Buarque de Hollanda, Morena Mariah e Katiúscia Ribeiro (Foto: Divulgação)
Cena da série O que querem as mulheres?, que estreia no Canal Brasil. A partir da esquerda: Stephanie Ribeiro, Heloisa Buarque de Hollanda, Morena Mariah e Katiúscia Ribeiro (Foto: Divulgação)

Sua pedagogia é centrada na escuta, no diálogo e no reconhecimento mútuo — o que remete também à proposta de Paulo Freire (1996) de uma educação libertadora e dialógica. Ao descentralizar o lugar do professor e valorizar os saberes dos alunos, Helô praticou uma pedagogia contra-hegemônica, que questiona a verticalidade da relação ensino-aprendizagem e propõe novos pactos afetivos dentro do espaço acadêmico.

Helô seguiu essa trilha ao criar espaços em que os corpos e vozes da periferia ocupam o centro do debate. Mais do que incluir “os outros” na universidade, ela propôs reconfigurar o próprio modo como entendemos o que é universidade e quem tem o direito de ensinar.

Heloisa Teixeira representou uma ruptura criativa e necessária nos modos tradicionais de fazer ciência e política na universidade brasileira. Sua trajetória como coordenadora da Universidade das Quebradas e sua concepção de feminismo como movimento de afeto apontam para uma prática intelectual profundamente comprometida com a justiça social, a escuta ativa e a valorização dos saberes não hegemônicos.

Ao nos mostrar que o conhecimento também se produz com afeto, com corpo e com território, Helô nos convida a repensar não apenas o conteúdo do que ensinamos, mas também a forma como ensinamos — e com quem. O que tornou Heloisa uma presença única na academia foi sua postura despretensiosa, mesmo sendo uma intelectual de grande renome. Em suas entrevistas e obras, transparece sua dedicação em ser uma intelectual profundamente conectada às necessidades e desafios de seu tempo. Sua abordagem era marcada por uma sensibilidade que transcende barreiras, sempre buscando construir espaços inclusivos e acessíveis.

* Susana Castro é professora titular do departamento de Filosofia e do programa em pós-graduação em Filosofia (PPGF) da UFRJ. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente com os seguintes temas: metafísica antiga (esp. Aristóteles), filosofia da educação, neopragmatismo, estudos de gênero, feminismo decolonial. Coordena o laboratório Geofil – Laboratório de Geofilosofias. Autora dos livros Filosofia e Gênero (2014), Ontologia (2008), As mulheres das tragédias gregas: poderosas? (2011), Aristóteles, uma introdução (2021), Imaginação, desejo e erotismos (2022) entre outros livros e capítulos de livros.
Referências bibliográficas
ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 1987.

CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade. A construção do outro como não ser como construção do ser. Rio de Janeiro: Zahar 2024.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira.” In: GONZALEZ, Lélia. Primaveras para as mulheres afro-latino-americanas. São Paulo: Zahar, 2020.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. Onde é que estou? Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
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AS MESAS E OS BANQUETES

Amizade e universidade consistiam num aspecto relevante do percurso acadêmico de Heloísa Teixeira (ex-Buarque de Hollanda), reconhecida por fabricar horizontes para si e para quem quiser carona. Ao desbravar um campo de pesquisa, ela cedia espaço e liberdade a quem quisesse ocupá-lo e também a quem quisesse confrontá-la. Helô adorava confrontos, encrencas, não apenas de gênero, e nisso ela tinha um posicionamento acerca da vida comunitária muito diferente do que tende a ser a norma na universidade brasileira, onde a idiorritmia, ou seja, o ritmo individual, prevalece como uma das maneiras de manter conflitos e diferenças adormecidos. Um bom exemplo disso encontramos nas aulas magnas, que ainda se mantêm hegemônicas como prática de ensino. Também não é irrelevante destacar: a frequência com que, na universidade, colegas mobilizam pronomes possessivos de primeira pessoa do singular é um sintoma da individualidade nas instituições de ensino e pesquisa: “o meu projeto”, “a minha sala”, “os meus orientandos” são expressões usadas com frequência… No livro Onde é que eu estou?, de 2019, Helô apontou como fazer diferente:

É só articular com as pessoas certas para aquele objetivo e abrir espaço para um projeto acadêmico inovador. É só aplicar e ter um desejo forte. O problema é que as pessoas, pelo menos na minha área, são narcísicas, querem ser notáveis, ter funções importantes na universidade e se fecham em projetos individuais. (Hollanda, 2019, p. 25)

Desde que surgiu no cenário da crítica da cultura brasileira até hoje, Helô manifestava interesse pela coletividade, como atestam as dinâmicas relacionais da geração mimeógrafo, à qual ela se dedicou na antologia 26 poetas hoje, publicada em 1976; em sua tese, Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70, lançada em 1980, e no livro Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo (1960-1970), que veio a público em 2024. Seu interesse pelo trabalho coletivo se manifestou igualmente na criação do Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos – CIEC, em 1986, e no Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC, em 1994, ambos avessos à idiorritmia.

Em Como viver junto (2003), Roland Barthes se ocupou da idiorritmia, que consiste no modo de organização da vida monástica, em que os monges formam uma comunidade, mas cada qual vive com autonomia e independência. Em outras palavras, a idiorritmia compreende uma vida comunitária sem o compartilhamento dos fazeres. A universidade é geralmente assim, de organização monástica, idiorrítmica, que faz para o outro, muitas vezes sem integrá-lo ao processo, a não ser como mero destinatário do saber científico.

Capa de Como viver junto, de Roland Barthes (2013)
Capa de Como viver junto, de Roland Barthes (2013)

Contudo, Helô não se valia desse estilo comunitário de vida, talvez por existir, em seu comportamento, um sentido profundo de responsabilidade em torno da universidade pública. Sendo pública, a noção de propriedade não tem vez. A respeito da negação da propriedade, Helô esclareceu, mais uma vez no livro Onde é que eu estou?: “Tenho […] uma agonia de fazer junto, porque eu não acho graça em acumulação proprietária de saber, em ser especialista.” (ibid., p. 23). Ela se entusiasmava com as articulações e formação de comunidades como “estratégia de fortalecimento” (ibid., p. 28), conforme suas palavras. Para Helô, essa “estratégia de fortalecimento” parecia ser uma das responsabilidades da universidade: criar comunidades, dentro e fora das instituições de ensino e pesquisa, mobilizando saberes acadêmicos e não-acadêmicos, um dos traços notáveis da Universidade das Quebradas.[1]

Em O olho da universidade, de Jacques Derrida (que li sob recomendação de Helô, assim que começávamos a trabalhar juntos no Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC, em 2015), há algumas perguntas que lhe são caras e incontornáveis. Estas perguntas são relevantes para pensarmos sobre a atuação de Helô na academia:

Se pudéssemos dizer nós (mas eu já não disse?), talvez nos perguntássemos onde estamos nós? E quem somos na Universidade em que aparentemente estamos? O que representamos? Quem representamos? Somos responsáveis? Do quê e perante quem? Se há uma responsabilidade universitária, ela começa pelo menos no instante em que se impõe a necessidade de ouvir essas questões, de assumi-las e de responder a elas. Esse imperativo da resposta é a primeira forma e o requisito mínimo da responsabilidade. (Derrida, 1999, p. 83)

De pouco a pouco, estas perguntas levaram Jacques Derrida a explorar a universidade como um espaço em que as oposições devem estar em cena, sob a atuação irrestrita da diferença contra a indiferença. Assim, a universidade não deve ser pensada de forma romântica – e por extensão, podemos afirmar que a amizade circunscrita à universidade também não. Trata-se, afinal, de uma amizade que operamos num espaço da esfera pública, embora não necessariamente restrita a ela.

É notável, porém, que a romantização consequente à desidratação da esfera pública tornou a amizade correspondente à intimidade e à afinidade, esvaziando-a de sua dimensão política. Sem a discórdia, a amizade não exerce qualquer função política efetiva. Dessa maneira, talvez nos encontremos fora de qualquer possibilidade de explorar, laboratorialmente, a responsabilidade que a universidade nos exige.

Da mesma forma, não podemos igualmente romantizar o princípio de convivência, porque a convivência muitas vezes resulta em conflitos, o que pode ser observado nos modos de fazer de Helô Teixeira. Afinal de contas, ela tornava a convivência um motivo cotidiano de prazer, mas também um motivo de tensionamentos, ou seja, por meio da convivência há o revelar da discórdia e, consequentemente, o revelar da diferença, bem como uma recusa à indiferença no âmbito das relações intelectuais e intersubjetivas, porque a indiferença é um sinal de menosprezo que não cabe na amizade, seja ela qual for, esvaziada ou não de sua dimensão política.

Para Helô, a discórdia era, inclusive, um princípio fundamental, que precisa estar ativo nas instituições, como nos atesta seu “Discurso de posse” na Academia Brasileira de Letras, caracterizado pela técnica de morde-e-assopra, típica dos seus movimentos argumentativos. Assim ela busca, ao mesmo tempo, a desconstrução do conservadorismo das instituições e a manutenção da sua “responsabilidade social e democrática”, que deve ser ampliada por meio da confrontação:

Nesse momento, em que dou início ao ritual de entrada na Academia Brasileira de Letras, descubro que essa é pela primeira vez que experimentamos, nessa Casa, a sucessão entre mulheres. Somos, ao todo, ainda pouquíssimas na história dessa Academia. A proporção é de 10 mulheres para 339 homens, uma realidade eloquente e que reflete a situação das mulheres nestes últimos séculos.

[…]

Já esta Academia Brasileira de Letras é a nossa instituição mais poderosa e legitimada, política e culturalmente, na área da língua e da literatura. A missão desta Casa é nada mais nada menos do que a defesa da língua e da literatura nacionais. Portanto, carrega uma atribuição política real. O conceito de língua como instituição social não é coisa nova. Está colocado, formalmente, desde 1867, por William Whitney. A língua não existe fora da sociedade e o tecido social não existe sem ela. Assim podemos vislumbrar o tamanho dessa missão e sua responsabilidade social e democrática. A língua define a unidade nacional, as fronteiras geopolíticas. A língua é, principalmente, a raiz onde se atuam as discriminações e o controle de minorias, etnias, territórios. Desta forma, os usos da língua podem ser o espaço da pertença, de exclusão, da separação e até da eliminação do outro.” (Teixeira, 26 de julho de 2023)

Não à toa, em Escolhas: uma autobiografia intelectual, com organização de Ramon Mello, ela tratou da “sintaxe do saber administrativo aplicado à universidade”, em que talvez “ecoe, ainda que longínqua, a advertência de Walter Benjamin”, citando, em seguida, uma consideração do teórico alemão: “Brecht foi o primeiro artista a confrontar o intelectual com uma exigência fundamental: não abastecer o aparelho de produção sem modificá-lo” (Hollanda, 2009, p. 76). Esta “exigência fundamental” de Brecht parece ter se tornado o modus operandi de Helô no âmbito das instituições que ocupa, conforme podemos observar em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, mas também no seu posicionamento crítico-teórico atrelado a ações de ordem prática, movimentando-se por meio de estratégias decoloniais e feministas.

Capa do livro (2009)
Capa do livro (2009)

A convivência em um contexto profissional nunca é fácil. Lembremos de um trecho do livro A trégua, do escritor uruguaio Mario Benedetti, em que, ao relatar o dia a dia no escritório onde trabalha, Martín Santomé, o narrador-personagem, afirma na entrada de 3 de julho:

Nos escritórios não existem amigos; existem sujeitos que a gente vê todos os dias, que se enfurecem juntos ou separados, fazem piadas e se divertem com elas, que trocam suas queixas e se transmitem rancores, que reclamam da Diretoria em geral e adulam cada diretor em particular. Isto se chama convivência, mas só por miragem a convivência pode chegar a parecer-se com a amizade. (Benedetti, 2011)

Para o narrador desse livro, o trabalho é uma “espécie de constante martelar, ou de morfina, ou de gás tóxico” que anula a amizade, mas sua concepção de amizade se encontra associada à confidência, como podemos constatar logo em seguida, quando Martín Santomé escreve sobre um colega que se ocupou de uma “cliente inadimplente” durante meia hora, a quem explica “a inconveniência e o castigo da mora, discute, grita um pouco, seguramente se sente envilecido” e, ao retornar à mesa, olha para Martín e não diz nada. E Martín conclui: “Então, pega uma planilha velha, amassa-a no punho, conscienciosamente, e depois a joga na cesta de papéis. É um simples substitutivo; o que não serve mais, o que ele atira na cesta de lixo, é a confidência. Sim, o trabalho amordaça a confiança” (ibid).

Não é a concepção que busco aqui desenvolver de amizade. Contudo, é importante destacar, referente à passagem destacada de A trégua, que a convivência não representa uma garantia de amizade. Pode garantir inclusive o contrário, como nos deixa entrever uma piada sobre a universidade que Eduardo Jardim me contou. Segundo ele, era uma piada muito corrente nos anos 1970 e 1980: “Deus criou a Universidade. Ao saber disso, o Diabo foi conhecê-la e gostou tanto da Universidade que reivindicou o direito de participar da sua criação. E Deus lhe concedeu a oportunidade de adicionar apenas um novo elemento à Universidade. Foi então que o Diabo criou o colega de departamento.”

No contexto universitário, Helô talvez tenha buscado não a confiança na confidência, mas a confiança na discordância, funcionando como um método de produção científica continuada. É a discordância atrelada à confiança que sustenta, em grande medida, o desenvolvimento de ideias e o seu aprofundamento, colocando em dúvida as certezas por meio da garantia da diferença. Firma-se, assim, um multiperspectivismo em torno dos problemas discutidos. Mas, claro, nem sempre é fácil trabalhar assim, e na maior parte das vezes a discordância é sequer desejada; outras vezes, a discordância legitima o colega de departamento como criação do Diabo, como inimigo mortal.

Em torno da discordância como método, gostaria de destacar o que considerava uma característica do trabalho da Helô na universidade: ela fazia uma proposição, que era discutida coletivamente; num outro dia próximo, ela se opunha à decisão consensual que havia sido tomada; todos voltam a discutir o problema e tomam uma nova decisão, chegando a um consenso. No entanto, uma semana depois ela se opunha à nova decisão que foi tomada. O ciclo ia se completando e repetindo até alguém da equipe perder a paciência, afirmando energicamente o que considerava a decisão adequada a ser tomada. Quando alguém se posiciona assim, às vezes com alguma irritação, ela afirmava: “Pronto, tem alguém que sabe o que precisa ser feito!”, é a metodologia pelo tumulto, em que a diferença se manifesta e ocupa o seu lugar na universidade. Helô abraçava a diferença por meio do tumulto, o que, de modo contraditório, era um gesto político de amor que contemplava o outro e seus movimentos especulativos.

Mas como tornar o gesto político coletivo? Como proporcionar a amizade num contexto de trabalho em que as discordâncias devem participar obrigatoriamente da construção de um senso de responsabilidade universitária? Como resposta, gostaria de apontar dois aspectos que foram caros à Helô e que pareceram criar as condições de coexistência entre discordâncias e amizade, nas quais, de certa maneira, se reproduzia a técnica do morde-e-assopra. Os dois aspectos são a MESA e a COMIDA.

O centro das salas do Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC são as mesas, que singularizam seus ambientes. Os espaços do PACC favorecem os encontros, desde que estejamos disponíveis a eles. As mesas do PACC, hiperdimensionadas e justapostas, consistem numa organização avessa aos nichos de trabalho. Elas se colocam entre as pessoas, e ao mesmo tempo é o que as mantêm reunidas; são, portanto, o cenário em que conflitos, amizades e também inimizades são encenados e vividos, condicionando uma forma de vida universitária que dificulta a idiorritmia, embora a idiorritmia, por fim, esteja presente vez por outra.

De certa maneira, as mesas valorizam o espaço da universidade como esfera pública, em que ninguém fica de costas para o outro, enfim, ninguém fica indiferente ao outro e ao que está acontecendo. Trata-se de um aspecto fundamental do método de Helô, como explicou em Onde é que eu estou?: “Eu sou uma arquiteta que não saiu do armário. Me expresso através do espaço, da luz. Sempre. Nas casas que construo, na produção editorial, nas exposições que monto, nos espaços acadêmicos que crio. É como penso.” (2019, p. 39). A respeito disso, uma das organizadoras desse livro, Ilana Strozenberg, parceira de trabalho de Helô, fez as seguintes considerações:

Penso que arquitetura, para Helô, é ao mesmo tempo uma prática empírica e uma metáfora. É o seu modo de pensar, sua atitude diante da vida. Helô pensa a partir do espaço e da forma para que neles aconteçam as relações que deseja viabilizar, os conteúdos que deseja ver produzidos e valorizados. Nesse movimento contínuo, tanto na construção e reforma de seus sucessivos locais de moradia, quanto na universidade ou em outros cenários, o afeto e a beleza são estruturais. (Strozenberg apud Buarque, 2019, p. 39)

Em outra passagem do mesmo livro, Helô afirmou:

Sempre penso no desenho de um espaço e, depois, desenvolvo o script do que vai acontecer ali. Nunca entro num espaço virgem, não planejado. O roteiro do que vou fazer já está no espaço, você vê no PACC: primeiro criei o PACC com aquela mesa enorme e única, muito vidro, transparência e luz. Irritei a equipe toda. Todo mundo querendo ter sua mesa, seu computador próprio, sua portinha que pudesse ser fechada. Expliquei que o PACC é um projeto que só pode ser desenvolvido em um espaço único, não proprietário, colaborativo. É um projeto cuja metodologia é pensar junto. Portanto, do ponto de vista conceitual, não cabem aqui muros e portas. Isso seria um gol contra.

[…]

Sim, minhas mesas são e serão sempre hiperdimensionadas. Isso determina um comportamento agregador e criativo. (Hollanda, 2019, p. 44-45)

Há um trecho de A condição humana, de Hannah Arendt, que pode ser aproximado dessas dinâmicas relacionais de afetividade e trabalho. É uma associação muito livre que faço, porque, em seu livro, Hannah Arendt não estava tratando de layout, de mesa, de organização espacial do trabalho, mas ela se valeu da mesa para firmar uma comparação com o mundo: “Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens” (Arendt, 2003, p. 62).

O segundo aspecto é a comida, que pode ser relacionada, por sinal, a uma hipótese instigante que André Botelho levantou na mesa “Literatura e outras formas de crítica – ouvir falar”, em uma das sessões da IV Encrencas de Gênero. Cito o André: “Minha hipótese é que a formação em Letras Clássicas da autora (na PUC-Rio em 1961), frequentemente negligenciada pela fortuna, constitui um ponto de partida relevante na formação do seu repertório crítico sempre voltado à oralidade e ao coletivo” (Botelho, 2023).

No livro Vie du lettré, William Marx mapeou índices relevantes da vida dos letrados, como o horário, a casa, o escritório, o animal, a comida, entre outros. A respeito da comida, ele observou:

Tradicionalmente, o letrado pode escolher entre dois cardápios: a ascese e o banquete, dependendo se os alimentos espirituais são colocados em competição ou, pelo contrário, são colocados como complementares aos terrenos. O antagonismo entre os dois tipos de alimento é, na verdade, uma característica das culturas de domínio religioso; sua coexistência, a de práticas mais seculares. No entanto, entre a ascese e o banquete, a diferença pode ser menor do que se imagina. (Marx, 2009, p. 95, tradução minha)

Sem dúvida alguma, Helô escolheu o cardápio do banquete. Em seu caso, porém, o alimento do corpo não se opõe à alimentação das ideias: antes parece colaborar para que as ideias despontem, sem o rigor característico dos ambientes tradicionais de ensino e aprendizagem.

Em seguida, William Marx apontou que, ao não atender a interesses religiosos, “uma cultura letrada se desenvolve adequadamente às necessidades primárias da vida”. Nesse caso, “longe de ser inimiga do conhecimento, a alimentação é sua condição auxiliar e necessária” (ibid., p. 96). A tradição dos banquetes, em que a alimentação é sua condição auxiliar e necessária, remonta-nos ao período clássico, e no caso da Helô, remonta especialmente ao período latino, quando a bebida foi substituída pela comida, com a valorização do princípio de convivência, ou seja, valorizando a festa (ibid., p. 99).

Segundo William Marx, a partir desse momento a “comida impõe […] a sua ordem ao discurso” (ibid., p. 99), mas, para Helô, a comida podia favorecer uma dinâmica relacional de informalidade acadêmica, tornando os encontros científicos em celebração de afetos, saberes e sabores. Lembro de quando fui a primeira vez a um encontro do Pós-doc do PACC, que hoje, reformulado, se chama Fórum Livre de Pesquisa[2]: havia suco, refrigerante, água, café, nuts, miga de queijo, miga de queijo e presunto, bolinhos, cachos de uva, maçãs, bananas, salada de fruta, pastinhas, torradas e biscoitos, tudo sob os cuidados de Rosângela Gomes, coordenadora-administrativa que é uma peça fundamental da história do PACC e do percurso de Helô na universidade.

Pela incapacidade de “parar na hora certa” (Brito [Cacaso], 2002, p. 51), por todos os horizontes, por todos os projetos, por todos os conflitos que aprofundaram nosso conhecimento sobre as coisas, por todos os vínculos de afeto que você proporcionou, por todas as festas e por todas as gargalhadas, muito obrigado, Helô!

* Eduardo Coelho é professor adjunto de Literatura Brasileira, na Faculdade de Letras da UFRJ, e atua como coordenador do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC). Sua pesquisa tem como foco o ecossistema da produção e circulação da poesia brasileira moderna e contemporânea, além das diversas formas, acadêmicas e não acadêmicas as quais elas são recebidas.
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Posfácio de Celso Lafer. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos: cursos e seminários no Collège de France, 1976-1977. Texto estabelecido, anotado e apresentado por Claude Coste. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Coleção Roland Barthes.

BENEDETTI, Mario. A trégua. Tradução de Joana Angélica d’Avila Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. E-book.

BOTELHO, André. IV Encrencas de Gênero. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aY75NuANCAM&t=5s. Acesso em: 20 out. 2024.

BRITO, Antônio Carlos de. “Relógio quebrado”. Lero-lero. Rio de Janeiro: 7 Letras; São Paulo: Cosac & Naify, 2002. Coleção Às de Colete.

COELHO, Eduardo. IV Encrencas de Gênero. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XvtnAxD7Hy0&t=2s. Acesso em: 16 set. 2024.

DERRIDA, Jacques. O olho da universidade. Introdução de Michel Peterson. Tradução de Ricardo Iuri Canko e Ignacio Antonio Neis. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, 1960-1970. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). 26 poetas hoje. 4ª edição. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2001.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Escolhas: uma autobiografia intelectual. Organização de Ramon Mello. Prefácio de Beatriz Resende. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009. Coleção Língua de Fogo.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Onde é que eu estou?: Heloisa Buarque de Hollanda 8.0. Organização de André Botelho, Cristiane Costa, Eduardo Coelho e Ilana Strozenberg. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

MARX, William. Vie du lettré. Paris: Les Éditions de Minuit, 2009.

TEIXEIRA, Heloísa. Discurso de posse, 26 de julho de 2023. Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/heloisa-teixeira/discurso-de-posse. Acesso em: 19 set. 2024.

TEIXEIRA, Heloísa. Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo (1960-1970). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2024.
Notas
[1] O Laboratório de Tecnologias Sociais, que abriga o projeto Universidade das Quebradas, criado por Heloísa Teixeira e Numa Ciro, “é uma experiência acadêmica de extensão na área da cultura, que pretende consolidar um ambiente de troca entre saberes e práticas de criação e produção de conhecimento, articulando experiências culturais e intelectuais dentro e fora da academia. Os pontos inovadores dessa metodologia são determinados pelo conceito de ecologia de saberes entendido como o equilíbrio sistêmico entre as diversas formas de saberes vernaculares e acadêmicos (científicos e técnicos), e a longa trajetória histórica de silenciamento de certos saberes não formais por outras formas dominantes de conhecimento”. Cf.

[2] O Fórum Livre de Pesquisa é definido da seguinte maneira no site do Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC: “Espaço de produção e debate de pesquisas visando promover a criação e a produção de conhecimento multidisciplinar e colaborativo no contexto da extensão […] está aberto a um público diverso, de dentro e de fora da academia, incluindo docentes, estudantes de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado da UFRJ e outras universidades, bem como pesquisadores independentes, profissionais da cultura, escritores, artistas e ativistas do Brasil e do exterior. Seus principais temas de interesse são: diversidade cultural e desigualdade social; políticas de identidade e construção de novas subjetividades; usos do espaço urbano; patrimônio material e imaterial; relações de comunicação e tecnologias digitais; arte e expressões do imaginário em diferentes linguagens; processos de criação; feminismo; desenvolvimento de tecnologias sociais; colonialidade, racismo e diálogos interculturais.” Disponível em: https://pacc.letras.ufrj.br/forum-livre-escolha/. Acesso em: 20 out. 2024.
Dossiê
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HELÔ, SEMPRE PRESENTE

Só se adquire experiência por meio do ensaio, da tentativa, isto é, do experimento. Era o que acreditava a emérita professora Heloisa Teixeira, antes, Buarque de Holanda, eternamente Helô. Era o que ela ensinava. Muitas vezes a ouvi usar o verbo polinizar no sentido de alastrar, divulgar, espalhar o conhecimento. Não tinha olhos para saberes estabelecidos, fechados neles mesmos, preconcebidos, preconceituados, ao contrário disso, acreditava em possibilidades, em novos prismas, sempre aberta a novas interpretações.

Foi o que absorvi dela em 55 anos de convívio próximo, uma longa jornada de permanente aprendizado, o que me permitiu ocupar um posto privilegiado como seu observador. Comecei como aluno, depois colega, e sempre amigo.

No universo das Letras, diferente da maioria dos professores, que se pautavam na ortodoxia literária, Helô se destacou como crítica da cultura, antes mesmo da divulgação dos Cultural Studies entre nós.

Não se fala de Helô no singular, já que era plural, pluriapta, muitas. Seus interesses variados e seu desempenho diversificado se capilarizavam em espaços como a crítica literária e cultural, a arquitetura, a fotografia, o cinema, a moda, as artes gráficas, a curadoria de artes visuais.

Como é impossível abordar tantas frentes em um artigo, dirijo meu foco para a Helô professora, atividade que desempenhava com grande prazer e o fazia de forma superior.

Diferente de grande parte dos professores que se utilizavam do método “magister dixit”, uma voz inquestionável e que tudo sabe, Helô sempre propôs questões para serem discutidas a partir dos diferentes entendimentos dos alunos. Desta forma, se fazia obrigatória a leitura dos textos sugeridos para a efetivação da dinâmica de grupo. Em outras palavras, implicava o exercício da pesquisa coletiva, em processo. Esse método foi utilizado por ela tanto na graduação quanto na pós-graduação. As aulas, melhor dizendo, os encontros, funcionavam como laboratórios de investigação e fóruns de debate.

Outro dado relevante de sua “metodologia de ensino” era que, muitas vezes, fazia-se auxiliar ora por um aluno mais adiantado (monitor), ora por um jovem professor, democratizando o seu “lugar de fala” e incentivando os mais jovens a exercitar a liderança, sempre supervisionados por ela.

Sintonizada com as postulações barthesianas (foi a introdutora da semiologia de Roland Barthes na Faculdade de Letras da UFRJ), dizia só dar aulas sobre o que estava aprendendo, investigando, sobre o que ainda não sabia, sobre o objeto de seu interesse naquele momento. Tal postura está completamente de acordo com o exercício da pesquisa coletiva em processo. Dialoga de forma afinada com o que observa Roland Barthes em sua Lição inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França:

O professor não exerce outra atividade a não ser a de investigar e de falar – direi de bom grado: a de sonhar alto a sua investigação – em vez de julgar, de escolher, de promover, de submeter-se a um saber prescrito. (Barthes, 1988, p.13)[1]

O método de avaliação do desempenho dos alunos sempre se deu inversamente ao padrão tradicional. A exemplo do julgamento das Escolas de Samba, em que se parte da nota máxima, ela computava tanto o envolvimento do aluno durante o percurso quanto o trabalho final. Este não era submetido a correções definitivas e inalteráveis de erro e de acerto, mas a sugestões de encaminhamento. Prova não fazia parte de seu código. Em termos psicológicos, isso fazia uma diferença brutal, na medida em que o estudante se enxergava como alguém valorizado e capaz de desempenhar tarefas que ele mesmo não se sabia apto, além disso, era incentivado a seguir adiante.

As aulas eram ministradas em espaços não convencionais, fora das salas de aula. Era avessa, como dizia, à herança medieval do púlpito religioso e doutrinário reservado ao professor. Era contrária à configuração tradicional da sala de aula. Dava preferência a salas de reunião ou qualquer espaço onde houvesse uma grande mesa. Uma estratégia de romper com a hierarquia na relação espacial professor/aluno. Esses espaços podiam se localizar dentro do prédio da instituição ou fora dele. Dependendo do tema do curso, havia deslocamentos para outros espaços como a Cinemateca do Museu de Arte Moderna, onde ocorria a projeção de um filme com debate com o diretor; em uma butique de roupas alternativas (na década de 1970). Em razão destes deslocamentos, houve quem a criticasse, afirmando que dava aulas na praia e que escolhia os alunos pela roupa. Nas décadas de 1970-80, a maioria dos seus alunos eram os alternativos, cabeludos vestidos ao sabor hippie.

Fachada do projeto de Reidy para o MAM é clássico do modernismo (Foto: Prefeitura do Rio de Janeiro)
Fachada do projeto de Reidy para o MAM é clássico do modernismo (Foto: Prefeitura do Rio de Janeiro)

Possivelmente, a mais radical e ousada experiência didática tenha sido a realização de um programa de televisão veiculado pela TVE. O programa chama-se Culturama: um programa estudantil sem drama. Eu era mestrando em Comunicação, naquele momento, final da década de 1970, início da década de 1980. Assumir o compromisso de produzir um programa de televisão com estudantes inexperientes em uma emissora estatal, sem orçamento, em plena ditadura (governo do Gal Figueiredo) era de uma audácia fora de qualquer parâmetro, totalmente fora da curva e fadado ao fracasso. Porém, a força da inventividade de Heloisa e a confiança que ela nos transmitia eram tamanhas que acabamos ganhando espaço na emissora. Lembro-me de pelo menos três programas. O primeiro era uma reflexão sobre o feminismo, em que transformamos uma sala de aula da Escola de Comunicação em um estúdio de gravação em que reproduzimos o cenário de um programa da TV Globo de grande sucesso chamado “Malu Mulher”. Conseguimos, inclusive, que uma atriz profissional fizesse o papel de Malu, Stela Freitas. Em duas ou três viagens, no meu fusca, levei de casa a maior parte do material cenográfico (almofadas, tapete, quadros e alguns objetos para adereçar o ambiente). O segundo programa foi gravado no pátio interno do edifício do Fórum da UFRJ, na Avenida Pasteur. Lá reunimos um grande número dos chamados “poetas marginais” e os entrevistamos. O ambiente sugeria estarmos em uma feira alternativa do livro. O terceiro programa chamava-se A caminho da Praia, um show, em um palco montado por nós, com a equipe de produção da emissora, em plena Praça da Paz, em Ipanema, que reunia o Trio Elétrico de Armandinho, Dodô e Osmar com Moraes Moreira. Isso depois do grande sucesso da música Pombo Correio, que encabeçava as paradas musicais por todo Brasil. A Praça da Paz virou a Praça Castro Alves de Salvador.

Do projeto Universidade das Quebradas, sabe-se sobre a recepção da comunidade não universitária no espaço acadêmico de ensino superior, dos debates e da troca de saberes motivados por estes encontros. Realizados no espaço físico do Projeto Avançado de Cultura Contemporânea, PACC, sediado, ao longo do tempo, em diferentes endereços da UFRJ (Escola de Comunicação, Colégio de Altos Estudos e Faculdade de Letras) ou em espaços extramuros do Museu de Arte do Rio (MAR). O que não se costuma falar é que nesses encontros havia um momento de confraternização em que era servido um lanche. Chamo a atenção para o fato de não existir a rubrica “alimentação” em todas e quaisquer propostas de evento ou projeto acadêmico em que busque financiamento externo. O lanche das Quebradas, diferente do que acontece em outros encontros, não tinha o caráter de coffee break, era uma forma de complementar as despesas dos visitantes periféricos que, muitas vezes, para chegarem à universidade, não dispunham de verba para o transporte e a alimentação. Isso não era explicitado, o lanche era oferecido como uma forma de boas-vindas, de cordialidade, de acolhimento naquele espaço em que muitos nunca sonharam pisar.

Sou, seguramente, um dos mais antigos alunos de Heloisa que acompanhou sua trajetória de perto, durante meio século. Comecei como seu aluno de graduação, em 1969, na Faculdade de Letras da UFRJ. Nos poucos anos em que estive distante da vida acadêmica, dirigindo o Departamento de Expansão Cinematográfica da Embrafilme, cujo foco era a criação e especialização de mão de obra para o cinema, trabalhamos juntos em projetos voltados para a criação de plateia por todo o país. Fui seu orientando de Mestrado na Escola de Comunicação, no final de 1970, concomitantemente, trabalhando como seu auxiliar na graduação em Letras. Pouco depois de concluída a dissertação, fui indicado por ela para escrever o livro sobre Gilberto Gil, para a coleção Literatura comentada, publicado pela Abril Cultural, um livro de ampla distribuição, vendido em bancas de jornal. A pesquisa deste trabalho serviu de base para meu doutorado sobre a obra do compositor. No início dos anos 2000, foi a supervisora de minha pesquisa de pós-doutoramento junto ao PACC, que se desdobrou na pesquisa que desenvolvi junto ao Centro de Cultura Latino-Americana da Universidade de Tulane, em Nova Orleans, nos EUA, como bolsista da Fundação Rockefeller, entre 2003 e 2004, e, posteriormente, continuei como pesquisador junto ao PACC.

Ainda que, por muitos anos, tenha frequentado seus diários de aula e respondido “presente!” à chamada, é ela quem esteve, está e estará sempre presente na vida dos que tiveram o privilégio de conviver com ela, como eu.

* Fred Góes é compositor, contista, ensaísta e professor-doutor de Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. É membro do Conselho de Cultura do Estado do Rio de Janeiro desde 1999, e autor dos livros Literatura e sociedade: narrativa, poesia, cinema, teatro e canção popular, O novo luxo e Plugados na moda.
Notas
[1] BARTHES, Roland. Lição. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 13.
Dossiê
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GLOSSÁRIO HELÔ

Por que um glossário? Acreditamos que um glossário permite gerar, a partir da memória de Heloisa Teixeira, um arquivo vivo: uma colagem de posições teóricas e lembranças do convívio com ela, além de um espaço de experiência e de conversa que faz justiça aos modos de trabalho que a Helô promovia. Ao invés de um esforço para reunir ou promover conhecimentos padronizados, nossa intenção é divulgar para o mundo o que ela nos dizia, para manter abertos os diálogos que a nossa autora, professora, crítica e musa inspiradora engendrou.

Este glossário foi criado com o intuito de reunir as principais ideias e palavras mobilizadas por Helô — ideias essas que vão além do sentido puramente acadêmico e transbordam para a vida, mantendo vivas as práticas que unem intelectualidade e comunidade.

Nós, como Laboratório de Teorias e Práticas Feministas, criado e idealizado por Heloisa Teixeira, montamos este conjunto de verbetes. Convidamos, para escrever, algumas pessoas que a conheceram na intimidade e/ou pesquisaram em profundidade, e outras pessoas que a conheceram pela primeira vez neste trabalho, trazendo tanto palavras utilizadas por ela em seu dia a dia quanto palavras que denotam seus gestos metodológicos. Cada verbete é, ao mesmo tempo, pessoal, subjetivo, quase íntimo, e de todos nós, partilhado, coletivo. São verbetes de cada um, mas também se jogam na arena pública, como sempre nos ensinou Helô.

Foi a troca de livros e textos de Helô, as reuniões online e presenciais ao longo de várias semanas, as lembranças e as conversas que possibilitaram a existência deste glossário: uma forma também de tentar a tarefa impossível de matar a saudade.

AEROPLANO

Os organizadores do livro Onde é que eu estou? perguntaram à Heloisa Buarque de Hollanda por que sua editora, fundada em 1998, se chamava Aeroplano. Helô explicou: “Por causa de um poema modernista do Luís Aranha. Poema lindo que fala do espanto dele, olhando um aeroplano que acabava de ser criado. Totalmente perplexo e atraído pelos novos tempos modernos. O poema com a tipografia futurista original era material de divulgação e era mesmo um pouco do que a gente queria, o espanto e a atração pelo novo” (Hollanda, 2019, p. 51).

Helô começava a manifestar “o espanto e a atração pelo novo” já no início dos anos 1970, quando escreveu artigos sobre a poesia brasileira que circulava por meio de edições mimeografadas, produzidas de forma artesanal e independente. Em 1976, visibilizou as poéticas do mimeógrafo por meio da organização da antologia 26 poetas hoje. Desde então, o interesse pelo novo não sairia mais de seus projetos de pesquisa.

Ela reproduzia, à sua maneira, os movimentos arrojados do aeroplano que os versos de Luís Aranha (1984, p. 95-96) apresentam, como “dar cambalhotas repentinas” e “loopings fantásticos”, “atravessando os ventos assombrados” pela sua “ousadia de subir / até onde só eles [os aeroplanos] atingiriam”. Em relação às atividades editoriais da Aeroplano, apresentava ainda os “saltos mortais”, correndo riscos que empreendimentos desse tipo estão sempre a correr.

Na Aeroplano, Helô publicou, entre outros, Ana Cristina Cesar – Correspondência incompleta (1999), organizado por ela; Cultura em trânsito: da depressão à abertura (2000), reunião de textos seus, de Elio Gaspari e de Zuenir Ventura; Artelatina – cultura, globalização e identidades cosmopolitas (2000), que organizou com Beatriz Resende; e a imprescindível coleção Tramas urbanas (2007), dedicada a questões da periferia discutidas por autores das quebradas. Foram cambalhotas, loopings e saltos que levantaram uma série de problemas caros ao nosso tempo. E, ao visibilizar o novo, abria rotas inovadoras de navegação, para si e para os outros.

Muito antes da criação da sua editora, o poema “O aeroplano” devia circular nas aulas que Helô realizava sobre o modernismo, na Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde se tornou professora colaboradora de Literatura Brasileira em 1964. Contudo, foi em agosto de 1979 que houve a primeira ocorrência material do aeroplano associado à sua produção editorial: ela formou uma “equipe de realização” do livro Correspondência completa, de Ana Cristina Cesar, mimeografado e grampeado, em pequeno formato (7,7×5,6 cm). A capa, em cartão amarelo, revela tipografia em cor preta, além de um aeroplano também preto, circulado em vermelho. De certa maneira, a tipografia tanto da capa quanto do miolo da plaquete de Ana Cristina Cesar dialoga com “a tipografia futurista original” do poema “O aeroplano”, de Luís Aranha, que veio a público na revista Klaxon, nº 2, de 15 de junho de 1922. O aeroplano da capa de Correspondência completa anunciava, de certa maneira, as ousadias da edição, assim como da literatura de Ana Cristina Cesar: um livro muito pequeno, com 12 páginas, que contrastava também por seu formato com a palavra “completa” da capa; informações falsas, como a estampada ao fim da ficha técnica: “Foi feito o depósito legal.”; a escrita de si, tão avessa aos princípios cabralinos que continuavam a vigorar no ambiente acadêmico das Letras.

A voz poética dos versos de Luís Aranha projeta a possibilidade de seu corpo escapar do aeroplano, imaginando, em seguida, uma reação: “Eu abriria os braços com ardor/ para o mergulho azul na tarde transparente…”. Talvez, agora, Helô, que se encontra fora do Aeroplano, esteja sibilando pelos ares da cidade, como um aviador, voando bem mais alto. 

ANTOLOGIA

An.to.lo.gia (do grego anthología). s.f 1. Reunião; seleção; coletânea; repertório; escolha: “Seu desenho, suas escolhas, são totalmente pessoais e revelam uma trajetória de pensamento e de estudos identificada apenas com a minha experiência intelectual”. 1.1. Reunião de poetas; mostra de poemas; momento literário ou poético: “Assisto e colaboro, às vezes até a contragosto, com alguns impulsos canônicos”. 1.2. Proposição autoral: “Investir no caráter autoral desta seleção”. 2. Tendências [de renovação na poesia e na crítica de hoje]; resposta à demanda [de indagações contemporâneas]: “Reunião de alguns dos resultados mais significativos de uma poesia que se anuncia já com grande força e que, assim registrada, melhor se oferece a uma reflexão crítica”. 3. Vozes; ecos; sintonia; ressonâncias: “Não me interessam todas as vozes que poderiam ser consideradas por revelarem um bom desempenho literário”. 3.1. Fam. Ocupação: “Então inventei um conceito editorial que chamei de livro ocupação, que trazia o objeto para dentro da narração através de uma escrita compartilhada”. 4. Fig. Afinidade:Algumas afinidades eletivas de seu antologista” (1b); “Sugerir alguns confrontos entres as várias saídas que [a poesia de hoje] adotou”; “Identificar pontos de atrito no quadro quase infinito de variáveis que o exercício da poesia hoje dispõe”. § 1. Didát. Edit. Canône: “Estabelecer por livre e espontânea vontade um cânone tem uma quota de ironia, mas me permiti esse abuso porque tomo aqui cânone em seu sentido original de κανόνας, vara utilizada como medida.Antôn.: valor estético; ideia de periodização; o panorama da produção poética atual: “Identificar movimentos ou tendências através de uma seleção objetiva na produção poética de uma época”; “Amostragem exemplar da poesia de um período ou de uma geração”. 

“CHEIO” CULTURAL

É possível se pensar a poesia marginal dos anos 70 em várias direções. Fico aqui com um de seus aspectos: um espaço de resistência cultural, um debate político. Em pleno vazio, os jovens — e os não tão jovens— põem em pauta os impasses gerados no quadro do Milagre e desconfiam progressivamente das linguagens institucionalizadas e legitimadas do Poder e do Saber. (Hollanda, 2000)

O que foi da cultura, da poesia, das artes visuais, do cinema e do teatro após o AI-5? Como a arte responde à censura? Alguns autores — inclusive os que publicaram suas pesquisas na revista Visão, que esteve em circulação de 1952 a 1993 — defenderam que houve um grande esvaziamento cultural no Brasil entre o final dos anos 1960 e meados dos anos 1970: a arte crítica, polêmica e controversa teria sido suplantada por uma arte industrializada e mercadológica, regada pela censura ditatorial e pela autocensura de poetas temerosos. No entanto, Helô se atenta aos circuitos alternativos, à imprensa “nanica” dos anos 70, e afirma o contrário: os anos de chumbo não foram capazes de sufocar nossos artistas e nem fazer da arte um ato menos político.

Helô argumenta trazendo um testemunho do poeta Cacaso, de meados de 70: “Estamos escrevendo o mesmo poema, um poema único, um poemão”. O poemão da geração AI-5 inventou formas diferentes de produzir e distribuir a literatura, e trouxe uma grande novidade: uma crítica social mais ligada ao cotidiano e à subjetividade, ao sentimento, fazendo avançar o debate cultural e político. A poesia dos anos 70 se mostrava como um projeto “além-texto”, em que, devido à repressão, o corpo do poema não era o suficiente e, por isso, ele se extrapolou em artimanhas de imaginação. Uma dessas artimanhas da produção independente foi a coleção”, em que várias produções autofinanciadas eram publicadas sob um mesmo selo e vendidas de mão em mão, criando um público próprio e movimentando intensamente o circuito da poesia marginal.

Surge, então, também o que Helô chamou de desbunde: uma forma de resistência cultural e existencial nos anos 70 que, ao invés de confrontar o regime militar por meio dos caminhos da militância tradicional, propunha uma revolução sensível: pelo corpo, pela liberdade, pelo prazer, pela arte. Não era alienação, mas outra maneira de dizer “não” ao sistema: um “não” através do modo de viver, um “não” ancorado na subjetividade.

A geração AI-5, ao contrário das alegações de acriticidade e passividade, transformou a poesia e o sentimento em potência contra o autoritarismo. Diante de visões derrotistas que focam no vazio e na erosão, Helô lança luz sobre os processos críticos e revitalizantes que encontraram maneiras de respirar e se articular vigorosamente em um contexto tão difícil para a produção e intervenção cultural.

CRÍTICA FEMINISTA E POESIA DE MULHERES

Quarenta e cinco anos depois de lançar 26 Poetas hoje, Heloisa Teixeira lançou As 29 poetas hoje, antologia composta, dessa vez exclusivamente, por poemas escritos por mulheres na contemporaneidade. Na apresentação, tão lúcida e astuta quanto na antologia anterior, ela se distancia da tentativa de traçar um panorama da poesia atual de mulheres e evidencia suas escolhas curatoriais com base em um critério principal: o impacto da quarta onda feminista na poesia.

Para unir os retalhos, Helô dá alguns passos para trás, até Ana Cristina Cesar, poeta que ela identifica como uma grande influência para o que chama de “jovem cânone da poesia de mulheres”. Fluidez, intimidade, cena, corpo, movimento e humor são alguns dos elementos que Heloisa Teixeira capta como essa herança, e refletem a perseguição de Ana C. — tanto na poesia quanto na crítica — pela possibilidade de uma mulher se libertar de amarras produzidas por leituras limitantes. “Seria possível mexer com ‘literatura de mulher’ (seja lá o que for isso) sem ocupar o lugar do feminismo nem cair na confusa ideologia do eterno feminino? […] Onde ancorar esse conceito? Não seria melhor deixá-lo à deriva, errante conforme nos sopra o que há de feminino na linguagem?” (Cesar apud Hollanda, 2021, p. 10), diz Ana C. no ensaio crítico “Literatura e mulher: essa palavra de luxo”. É esse fio que Helô puxa para retomar a discussão sobre o que seria uma poesia de mulher.

Ecoando Ana C., assim como as poetas, Helô coloca em prática sua crítica feminista. Trazendo na antologia poemas concomitantemente heterogêneos e em diálogo, ela recusa a rotulação de “poesia feminista” — que voltaria a reduzi-los a um estereótipo fechado — para, em seguida, propor uma leitura que leva em conta o impacto do feminismo nessas escritas.

O diferencial das novas poetas me parece ter sido a conquista de um capital inestimável: um ponto de vista próprio e irreversível e o enfrentamento sistemático do cotidiano, dos desejos e dos custos de ser mulher, já bem distante do que se conhecia como linguagem e/ ou poética de mulheres. A nova experiência com a linguagem é a consequência imediata dessa conquista. (Hollanda, 2021, p. 26)

Para mim, recém-chegada ao universo da poesia contemporânea e suas oficinas — que me salvaram a vida durante um período de isolamento e sofrimento —, essa nova antologia, voltada para a poesia escrita por mulheres jovens e vivas, foi a abertura de um universo de referências, mais um cânone.

ENCRENCAS

Certa vez, ao comentar informalmente a tradução do livro Gender trouble: Feminism and the Subversion of Identity, de Judith Butler, traduzido ao português como Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, Helô fez a provocação de que o título original seria melhor traduzido pela palavra “encrencas”, e não por “problemas”. Ela argumentava que “encrencas” conserva uma perspectiva mais lúdica — tanto uma marca da infância quanto um elemento de rebeldia, questionador e perturbador da ordem —, conforme aponta Butler no prefácio do livro.

A ideia da nova tradução pareceu tão genial que, de pronto, Encrencas se tornou o nome de um evento que nasceu a partir de um grupo de estudos independentes, idealizado por alunas do Mestrado e do Doutorado em Ciência da Literatura, da UFRJ, para discutir questões de gênero. Pensar o gênero é uma encrenca interessante e importante de nos metermos, uma vez que rejeita o determinismo biológico, abrindo novas possibilidades narrativas.

O encontro, que contou com o apoio do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) desde sua primeira edição, foi se expandindo até ser incorporado, em 2022, como um evento do calendário anual do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas. É incrível como cada coisa que fazemos carrega uma marca da Helô. Tudo o que produzimos dentro do Laboratório é parte de um legado que ela nos deixou — desde um simples comentário de uma tradução, que se tornou disparador de tantas ideias, materializando-se em um evento que está chegando à sua sexta edição.

Encrencar é desconfiar da obviedade, apostar na pulga atrás da orelha, na capacidade de fazer barulho e virar a mesa, pois encrencar é verbo de quem desafia o que parecia dado. A palavra carrega um quê de travessura, de rebeldia criativa, e é nessa trilha que seguimos: não como quem resolve, mas como quem desarruma para ver melhor. Encrencar, então, é um convite a pensar com ruído, a fabular com vontade, a gerar confusão propositiva no campo dos estudos de gênero.

EU?

Falo eu, professora, 79 anos, mulher, branca e cisgênero… Percebo que hoje, para uma feminista branca, é antes de mais nada importante promover um tipo de escuta na qual, sem abrir mão de seu próprio “lugar de fala”, sejam possíveis formas inovadoras de empatia e de troca que gerem novas perspectivas de reflexão e ação. (Hollanda, 2018)

Como encontrar um mínimo denominador comum para a obra de Heloisa Teixeira? Intelectual pública, professora de Letras e também da Comunicação, crítica de cultura, acadêmica, editora, escritora de relatórios CNPq e mil bolsas mais, cientista, antologista, articulista de opinião, roteirista e diretora audiovisual, diretora do MIS-RJ em 1980, convidada pelo então secretário de Cultura do Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro. Apenas dentro da Letras, Heloisa passou das Letras Clássicas, para a Literatura Brasileira e, num salto fictício-cronológico, para os Estudos Culturais — ajudando, inclusive, a moldá-lo enquanto transdisciplina.

Parece impraticável encontrar uma linha que sobressaia nessa trama de mais de 60 anos da carreira de Heloisa Teixeira — até pela desimportância que a coerência, enquanto um valor hierarquizante, parece ter na sua jornada intelectual. É mais do que sabido a sua deferência pelo processo, em vez do resultado; por uma metodologia do fazer junto, em vez da escrita solitária em gabinetes universitários.

“Que momento é esse que estou vivendo?” é a pergunta-chave para a inquietação intelectual de Helô, segundo Eduardo Coelho, um dos organizadores do livro Onde é que estou? Heloisa Buarque de Hollanda 8.0. “Acho que nunca fui muito interessada no específico literário. E sim na escuta que a literatura pode ter de uma dada realidade, de um contexto sociopolítico.” (Hollanda, 2019, p.23). Se as perguntas acadêmicas para Helô Teixeira, têm de ter a ver com o contexto sociopolítico para que elas importem, o campo de predileção a ser observado socio-politicamente por Helô será o da poesia — ainda que sua história profissional esteja profundamente marcada por seus inúmeros suportes:

Pergunta: Mas sempre foi por meio do texto literário?
Resposta: Sim, porque eu adoro poesia, literatura. Mas meu trabalho é sempre o mesmo em muitos outros suportes. Eu tive durante anos um programa no rádio, o Café com Letras. Trabalhei em muitas outras plataformas: cinema, TV, mostras expositivas, antologias, plataformas digitais. Eu gosto de literatura. Mas não é necessariamente o meu foco. O meu foco é cultural e político. Sou um bicho político. (Hollanda, 2019, p.23)

Heloisa Teixeira resume sua relação com o texto literário: é um meio, um dos suportes, pelo qual procura fazer o seu trabalho de análise da cultura. No entanto, ser o meio predileto não é pouca coisa. A poesia sobreviverá no decorrer da trajetória abundante e versátil de Heloisa Teixeira como essa área experimental no qual o binóculo crítico de Helô não cansará de pousar suas lentes nítidas — e com vistas para o futuro.

EXPLOSÃO

Elas chegaram e falaram, quiseram, exigiram. O tom agora é de indignação. E, para meu maior espanto, suas demandas feministas estão sendo ouvidas como nunca. (Hollanda, 2018)

Na leitura da Helô, a nova onda feminista não pede licença: ela ocupa, performa, denuncia e propõe novas narrativas. A “explosão” do título não é casual: ela se refere à irrupção de vozes e formas de luta que rompem os espaços tradicionais da militância e da teoria feminista, abrindo caminho para o que Heloisa chama de uma nova epistemologia — aquela que nasce do corpo, da vivência, da performatividade e da urgência.

Heloisa reafirma seu papel de mediadora entre o acadêmico e o popular, entre a tradição e o contemporâneo. Ao reconhecer a importância e afirmar vozes que emergem da periferia, da negritude, da transgeneridade e da juventude, ela reafirma seu compromisso com uma crítica cultural plural e viva.

Ela enxergava nas redes sociais um novo espaço de ocupação feminista: um campo de disputa simbólica onde jovens mulheres e dissidências constroem discursos, viralizam ideias e desafiam as estruturas de poder com memes, hashtags, estética e afeto. Em vez de desqualificar essas linguagens, Helô as legitimava, reconhecendo que a luta também acontece na velocidade das timelines e na potência dos stories.

Explosão Feminista é, assim, também um registro geracional. Um livro que documenta o modo como jovens feministas brasileiras se articulam por meio de redes, coletivos, batalhas de poesia, videoclipes, podcasts e campanhas digitais. A figura da militante solitária é substituída por corpos coletivos em movimento, performáticos. Muitas dessas meninas já nascem feministas — algo que, em outras épocas, seria considerado um insulto. Hoje, é bandeira, identidade, linguagem e horizonte de transformação.

FEMINISMO AGORA

Lembrei, então, de uma outra palavra corrente nessa geração digital: “compartilhar”. (Hollanda, 2018)

Na introdução do seu livro Explosão Feminista, denominado um “livro-ocupação”, Heloisa discorre um pouco sobre a visível mudança geracional que ocorreu dentro do movimento feminista brasileiro, abrindo espaço e dando voz a produções artísticas, culturais e políticas que fazem parte da quarta onda do feminismo. Essa “onda”, localizada por Helô no período inicial de 2015 — quando há o boom do movimento feminista ocupando as ruas e as redes —, é o que dá sentido ao conceito de explosão, e coincide com a infância de muitas de nós. Quando ainda pequenas, durante essa explosão feminista no Brasil, não pudemos participar desses movimentos — como aquele contra o projeto de lei que dificultava o acesso de vítimas de estupro a cuidados médicos, a Marcha das Margaridas ou a Marcha das Vadias, em 2011 —, devido à nossa idade e ao desconhecimento da grandiosidade do que estava sendo feito. Apesar disso, nossa geração esteve desde sempre conectada com as redes e, devido a isso, o que Helô denomina como uma explosão, é algo que fez parte da nossa construção pessoal desde o princípio, formando uma perspectiva distinta dessa simbologia abrupta da explosão.

Como Helô diz em Explosão feminista, a facilidade de comentar sobre um assunto e vê-lo ser altamente propagado é o que torna a internet uma ferramenta crucial para a articulação e organização de comunidades, pois possibilita denunciar as más condições em que as classes minoritárias vivem nos dias de hoje e organizar-se coletivamente de acordo com suas demandas. Acredito que a maioria de nós, que cresceu inserida no movimento feminista através do mundo digital, teve a possibilidade de um acesso mais livre do conhecimento, possibilitando uma construção política e social mais democrática e inclusiva. A leitura dessa Explosão Feminista nos possibilitou conhecer a história do começo dessa revolução do século XXI, que viria a nos atingir anos depois, e hoje vejo o quanto essas lutas foram importantes para os ganhos objetivos, mas também para a perpetuação da pauta feminista nas gerações novas, da sede contra a desigualdade e esperança num futuro melhor.

IMPRESSÃO

“Foi assim, no susto, que escrevi Impressões de viagem.” Helô escreve, em 1979, o seu livro sobre os CPCs, a vanguarda e o desbunde, isto é, sobre a produção cultural feita nos anos de chumbo. Ou seja, Helô escreve sobre produções quase simultâneas, escreve sobre aquilo que está vendo, aquilo que ainda não passou para a história, que não foi impresso em livros de crítica. Helô parece ter umas primeiras impressões sobre a produção dos anos 70 e, ao mesmo tempo, imprimir as primeiras leituras críticas da época, nos marcando um caminho. Essas primeiras impressões impressas, por outro lado, se tornaram fundamentais para a crítica cultural que veio depois, a qual tomou esses livros autodeclarados impressionistas como as leituras agudas que eram e são. Não se tratava apenas de fazer crítica no susto ou uma crítica a partir do espanto, mas de levar o susto muito a sério. Para entender que toda crítica é conjuntural, e passa por uma atualidade do olhar.

Enunciar a “impressão” como um dispositivo crítico é um gesto seríssimo e corajoso — insolente, como diz Chico Alvim no prefácio. Em lugar das perspectivas de ordem formalista que estavam na ordem do dia da crítica, identificando características indiscutíveis e determinando um julgamento final sobre o que é ou não é arte, Helô vai desistir de uma palavra final e vai analisar a sua primeira reação, o “susto” perante a produção da Tropicália, o “espanto com [a] vitalidade” da Nuvem Cigana e da poesia marginal. A cultura é fonte de sensações, de sensações críticas e de curiosidade.

Assim, com a ideia de impressão, Heloisa declara — em um tom menor — que fazer crítica é também intervir. Isso, para ela, parecia responder a uma urgência, a urgência de entender o que está acontecendo ou, como ela dirá depois, a pergunta permanentemente colocada: “onde é que eu estou”?

É verdade, por outro lado, que essa ideia revolucionária da impressão como dispositivo crítico também está na escolha dos objetos de Helô, que são sempre moventes — em viagem —, e que sempre podem ser lidos como testemunhos da sua época que não são amigos do arquivo. Sejam as vanguardas dos anos 60, a poesia marginal e seus livrinhos que se desfazem, as performances feministas. Tudo o que a Helô lê tende à desaparição, por isso ainda mais necessárias as suas impressões.

LIMONADA

Uma saca de limões, dessas que é difícil carregar sozinha. Uma ou duas facas, capazes de insistentes cortes antes de precisarem ser amoladas. A tábua é opcional. Só é preciso espremer até o sabugo, até vislumbrar alguma origem, até desafiar a casca — muitas vezes dura e pouco porosa — da fruta. Um movimento repetitivo, quase infinito, feito a várias mãos — assim cansamos menos. Um pouco de açúcar, água e umas coisinhas mais. Mistura bem, agrega tudo, deixa umas partes inteiras e divide ao máximo. Apertadas na pequena cozinha do PACC, com nossos poucos e preciosos recursos, seguíamos a receita que nos tinha sido passada, de orientadoras para orientandas, da famosa limonada da Helô.

O ano era 1994, e ia rolar o evento de abertura da sala do PACC, com vários quitutes e clima de festa. E isso implicava, obviamente, em levar umas cervejas. Pelo menos para Helô era assim, e foi assim que, chegando à entrada da Faculdade de Letras, toda animada com suas cervejas, foi barrada no baile. Não, as cervejas não podiam entrar.

Eis que, no evento comemorativo seguinte a esse, Helô é vista por outros professores carregando um galão do café da Letras até o PACC. Os professores perguntaram o que era, ao que ela respondeu: “Ah, bem, é limonada”.

Quando veio essa palavra, achamos difícil descrevê-la para quem nunca tomou uma limonada da Helô em um evento acadêmico. Porque, do pedacinho de chão da universidade onde estamos, — disso que chamamos de PACC —, essa limonada sempre fez parte. Diferentemente de outras deste glossário, não há textos a que fazer referência. É um saber passado no boca a boca, um pouco da alegria e da rebeldia de repartir o pão e de ocupar o espaço: um mesão, uma limonada e uns lanchinhos, os sorrisos que vinham junto.

MATRIARCAS

A natureza autoritária de sua liderança e a gramática erótica baseada na sujeição de parceiros de condição social inferior não correspondem à expectativa libertária que a noção de matriarcado sugere. Sem dúvida, mesmo reforçando a lógica do patriarcalismo rural brasileiro, a história das matriarcas e sua extensa repercussão no tempo e no espaço de certa forma desmontam os modelos tradicionais com que se costuma caracterizar a submissão feminina. Em que medida o arquétipo das matriarcas e o violento poder que decorre da estrutura familiar no Brasil moldam os nossos sentimentos e fantasias sobre a “mulher brasileira”? (Hollanda, 2016)

O interesse da nossa autora pelas histórias das controversas matriarcas de que fala a citação acima surgiu do encontro com a escritora Rachel de Queiroz (1910-2003). Em um certo dia, no ano de 1989, Helô Teixeira, que nessa época assinava Buarque de Hollanda, foi apresentada à escritora cearense por Afrânio Coutinho, em uma sala no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. O encontro entre as duas despertou em Heloisa o desejo de entender a razão pela qual a crítica literária brasileira tinha se esquecido da autora de O Quinze (1930) e Memorial de Maria Moura (1992). E, como sempre acontecia com as inquietações de Helô, ela correu atrás de entender e concluiu que não era desinteresse nem desvalorização o motivador do silêncio da crítica, mas o que ela chamou de “medo”.

Menos do que omissão ou rejeição, o que a crítica brasileira tem mostrado, na realidade, é ter medo de Rachel de Queiroz. Medo de enfrentar sua conflituosa relação com os movimentos feministas ou mesmo com a literatura escrita por mulheres que começa a se impor a partir do Modernismo. Medo de explicitar as possíveis causas do sucesso e do poder público inegáveis de uma mulher que, desde adolescente, transitou com espantosa autoridade e naturalidade pelos bastidores da cena literária e política do país. Medo, sobretudo, de enfrentar a trajetória particular de seu pensamento político. (Teixeira, 2024, p. 394)

Disposta a enfrentar esse medo de uma escritora pessoalmente tão complexa, que, ao mesmo tempo que integrou o Partido Comunista nos anos 1930, apoiou o golpe militar em 1964, Heloisa se dedicou à pesquisa sobre a obra de Queiroz e passou a encontrar com ela periodicamente em sua casa. Sobre a obra, diz ter se surpreendido “com a qualidade técnica e artística de seu texto” e se perguntou: “como eu, há tantos anos no magistério, ainda não havia oferecido um curso monográfico sobre Rachel de Queiroz?” (op. cit., p. 396). Dos encontros, na sala do apartamento do Leblon que mais parecia uma “sala de fazenda”, muitas conversas giravam em torno das histórias protagonizadas por personagens femininas tão ou mais contraditórias que a narradora de seus causos: as mulheres proprietárias do meio rural brasileiro, que desafiam as leituras feministas porque, ao mesmo tempo, não se enquadram no paradigma de submissão, mas, por outro lado, parecem se apropriar e reinventar a violência patriarcal do coronelato:

Semilendárias, proprietárias de terra e gado no interior do sertão, longe das pretensões fidalgas das casas-grandes da zona açucareira. Levavam uma vida rústica relativamente distante dos padrões culturais europeus que, na época, moldavam as sociedades do litoral nordestino. No sertão, exerciam grande poder de liderança, tendo controle total de seus feudos regionais. (op. cit., p. 407)

Esse modo de controle, contudo, não é mera cópia do modo masculino de comando. É essa estranheza, entre a reprodução e o desvio, que fascina Helô, conduzida pela prosa (escrita e conversada) de Rachel de Queiroz, e a distância da sua representação daquela feita por escritores clássicos da literatura brasileira, como Alencar, Aluísio Azevedo e Jorge Amado:

Dei-me conta de como nossos escritores tiveram e têm o estranho prazer em representá-las como figuras barbarizadas, opressoras e, em geral, caricatas. Nas histórias de Rachel, ao contrário, brilhavam os feitos, as audácias e o cotidiano das senhoras do sertão. Sua narrativa, traindo um certo orgulho, trazia para o presente, sobretudo, a memória das várias formas de poder feminino esquecidas e/ou destruídas ao longo da história. Percebi que estudar a mulher no Brasil e na literatura brasileira sem passar por Rachel de Queiroz é, no mínimo, imprudência.

Conhecer o poder, violento, exercido por mulheres, sem medo de aderir ao fascínio exercido pela bela prosa de Queiroz, mas também sem fechar os olhos para o que nos constitui; ouvir o canto das sereias das violentas e poderosas mulheres proprietárias do sertão: um movimento que só a nossa corajosa Helô poderia levar a cabo, em um Brasil recém-saído da ditadura, com traumas que ainda machucavam — e machucam.

MESÃO

Minhas mesas são e serão sempre hiperdimensionadas. Isso determina o comportamento agregador e criativo. (Hollanda, 2019)

Reunião do Laboratório de Teoria e Práticas Feministas no MESÃO do PACC
Reunião do Laboratório de Teoria e Práticas Feministas no MESÃO do PACC

Entrando no prédio da Faculdade de Letras da UFRJ, seguindo o corredor até o final, virando à direita e, lá na frente, à esquerda, depois de passar o DACEx, atrás de uma parede de vidro — lembrando uma obra de arte exposta para ser admirada —, encontra-se um exemplar do presente verbete: o MESÃO. Ele é enorme, branco, belo, ocupa uma boa parte da sala do PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) e não está sozinho. Entrando na sala, caminhando por toda a extensão do MESÃO, virando à esquerda, no cantinho do café e passando pela copa, encontra-se o segundo MESÃO. Igualmente enorme, branco e belo. Talvez um pouco mais tímido, já que repousa atrás de um painel. Heloisa Teixeira, segundo ela própria, sentia-se uma “arquiteta bem realizada”, ainda que essa não fosse a sua formação acadêmica. Projetava os espaços, residenciais ou de trabalho, em função de um pensamento arquitetônico. Precisava ser bonito. E precisava ter um MESÃO.

Nas casas em que morou, lá estava ele, exibindo seu protagonismo. Ao redor do MESÃO, aconteciam as conversas do dia a dia, as reuniões de trabalho, os almoços com filhos, netos e, muitas vezes, pessoas que estavam por ali e acabavam ficando. Até porque, o MESÃO, por ser hiperdimensionado, comporta muita gente, muito livro, muito material de trabalho, muita comida!

Helô tinha uma “agonia de fazer junto” porque não achava graça na “acumulação proprietária de saber, em ser especialista”. Fez dos seus MESÕES espaços de convivência, de troca, de pensar e criar coletivamente. Um espaço de generosidade intelectual, mas também de voracidade.

Encarei o MESÃO do PACC pela primeira vez em março deste ano. À primeira vista, fiquei um pouco intimidada. Era um encontro do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas. Sendo caloura, não me sentia segura ao lado daquelas pessoas que pareciam saber tanto. Em determinado momento, percebi que o MESÃO não era um só. Ele é composto por várias mesas menores, encostadas umas nas outras. Nós somos essas mesas, pensei. E o MESÃO, o que criamos juntes. Enfim, me senti pertencente. Viva o MESÃO! Viva a HELÔ!

OUVIR

Passei por um longo exercício de escuta, no sentido de reconhecer e acolher as diferenças, reconhecimento que quase nunca vem sem conflito. (Hollanda, 2018)

A plataforma fundamental do trabalho crítico de Helô é a escuta, não num sentido passivo e imóvel, mas como um posicionamento transformador que abala o modus operandi do conhecimento padronizado, uma vez que não se trata de uma escuta que permanece como reflexão pessoal, sem retirar o ouvinte do lugar de conhecimento e domínio da palavra, mas que garante que ela ecoe de forma a reconfigurar as sensibilidades de seu entorno. Desde sua primeira publicação, a antologia 26 poetas hoje, esse gesto já pode ser percebido, visto que a operação em relação às produções da chamada “poesia marginal” não foi a de “falar sobre”, mas a de montar um dispositivo de escuta a partir da antologização dessas produções.

Em relação às produções de autores das periferias, a escuta assumiu uma forma diferente, fato que evidencia a carga política de que não se escuta sempre da mesma forma. Assim como com os autores de 70, Helô teve a perspicácia de perceber a força dessas produções como um movimento e, mais uma vez, ativou um novo espaço de diálogo que tomou forma com a coleção Tramas urbanas, publicada pela Aeroplano, que dirigiu entre 2007 e 2016. Essa coleção foi baseada na diretriz de que os próprios artistas periféricos deveriam escrever sobre suas produções e contar suas histórias de vida. Ela não escreveu uma palavra em nenhum dos títulos do catálogo. É que a perspectiva conceitual e analítica de Helô em relação aos escritores marginalizados não era a da tutela da palavra/conceito, mas a do diálogo baseado na escuta em um processo de ida e volta, de ginga, que tomava forma no design, no formato, na tipografia, nos logotipos, no título da coleção e no catálogo.

Outro espaço fundamental para a ação crítica baseada na escuta foi a criação, em 2009, da Universidade das Quebradas, concebida, como diz o próprio site, como “um laboratório de tecnologias sociais, baseado na troca entre conhecimentos e práticas de criação e produção de conhecimento, articulando experiências culturais e intelectuais produzidas dentro e fora da academia”. A UQ, tendo Helô como pilar, funciona como um espaço de intervenção onde acadêmicos renomados se encontram com atores-chave de culturas periféricas, com o objetivo de empoderar ambas as partes em uma roda onde podemos acreditar que um outro mundo é possível.

Helô voltou sua atenção também para os feminismos, com um gesto igualmente radical, na forma de um livro intitulado Explosão feminista. Em 2018, em meio à truculenta escalada da direita no Brasil e às agitações das lutas feministas nas ruas, Heloisa se pergunta: “Estamos realmente ouvindo?” (Hollanda, 2018, p. 241).

E o que este livro propõe que escutemos? Ele nos leva a interpretar a quarta onda feminista como uma explosão, ou seja, como a intervenção conjunta e contundente de diferentes correntes de pensamento, corpos, vozes e denúncias de mulheres que estão convencidas de que o patriarcado vai cair e, junto com ele, o racismo e a intolerância. Helô reuniu, neste livro, inúmeras vozes das mulheres feministas contemporâneas, gerando um diálogo inesperado entre elas e também trazendo de volta as vozes das mulheres “veteranas”, como ela chama as “mulheres militantes e acadêmicas de um momento vital do feminismo no Brasil, que foi o período de 1975 até a virada do século” (Hollanda, 2018, p. 444).

Ouvir, para Helô, tem a ver com a criação de uma câmara de eco dentro e fora dos espaços institucionais — o que se torna visível em nossas bibliotecas, que ganham outras vozes; nas salas de aula das universidades, que ganham outros corpos; e, ainda mais recentemente, na Academia Brasileira de Letras, que ganha outros rituais.

PATRULHAS IDEOLÓGICAS

O debate sobre a “liberdade criativa”, que tanto mobiliza os debates intelectuais no tempo presente, tem a sua própria história no contexto das dinâmicas culturais e políticas no Brasil moderno, sobretudo na abertura política no final dos anos 1970.

Naquele momento, Cacá Diegues foi entrevistado pelo Estado de São Paulo para falar sobre as recepções de seu filme Xica da Silva (1976), que sofreu críticas de intelectuais negras, como Beatriz Nascimento, por conta de uma romantização na relação estabelecida entre uma mulher negra e um contratador branco. A entrevista original tinha como título “Cacá Diegues: por um cinema popular sem ideologia”, publicada em 31 de agosto de 1978.

Helô, com sua antena ligadíssima, percebeu que a entrevista de Diegues ao Estadão, comprado pelo Jornal do Brasil, ganhou um novo título: “Uma denúncia das patrulhas ideológicas” em 3 de setembro de 1978. A partir disso, diversos veículos surfaram na onda da polêmica, supostamente preocupadas com o controle, por parte de setores da esquerda, em relação ao projeto de um cinema nacional moderno ou popular: O Globo, Folha de São Paulo, Tribuna da Bahia, Tribuna da Imprensa, Jornal de Brasília, Veja, IstoÉ, Pasquim

O livro organizado por Heloisa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto Messeder Pereira consolida o termo como um conceito próprio, tendo em vista os tensionamentos vigentes na nossa cena cultural, política e ideológica. Sou patrulheiro, patrulhado? O lado comprado pela imprensa é um golpe de publicidade? Um temor de controle? As esquerdas estão cindidas? O que isso implica?

 Helô “olha pelas frestas”, como ela mesma diz, o caso das patrulhas, ao propor entrevistas com intelectuais e artistas, para tentar entender isso que “estava no ar”: uma discussão que vinha de outros tempos, momentos — e continua mobilizando diversas instâncias da nossa cena intelectual de forma bastante acalorada, sobretudo a partir da famigerada “liberdade de expressão”.

POESIA

Por muito tempo, eu citava errado um trecho de Benjamin. Dizia “a questão não é discutir se a fotografia é ou não arte, mas sim que o fato de ela o ser nos obriga a repensar o próprio conceito de arte”. Depois de muito repetir esse trecho, voltei ao texto para pegar a forma exata dele e, bem, não é exatamente isso que Benjamin diz na Pequena história da fotografia. É, porém, o que eu gostaria de ler: uma metodologia de inversão dos pressupostos para a atividade crítica. Simples na aparência, mas bastante radical nos seus desdobramentos: em vez de pressupormos saber o que é a arte e, a partir daí, decidir se algo faz parte desse sistema ou não, decidimos que o objeto em questão é arte e, a partir daí, temos que lidar com todo um novo conceito do que é “ser arte”.

Cito o erro de leitura porque quero reincidir nele. E mais, dobrar a aposta. Não apenas atribuir sua fonte a Benjamin (que não escreveu exatamente isso, mas poderia), mas também propor que a sua prática é a de Helô, pois creio que a forma como ela lidava com o conceito de poesia era esse. Não tanto discutir o que é ou não poesia, mas dar um passo além: decidir que algo o é, e então repensar todo o conceito de poesia.

Em 1975, quando as vanguardas — não apenas a concretista, mas também os já quase esquecidos movimentos Práxis e Poema-Processo — investiam em uma retórica acadêmica bastante autosegura para defender sua posição de ponta de lança na poesia nacional, Helô investia em uma poesia jovem que se misturava com a vida, com o “flash cotidiano” e corriqueiro dos 26 poetas hoje. Enquanto a crítica especializada ainda debatia, em 1980, se aquilo era ou não poesia, Helô já levantava, em Impressões de viagem, o quanto a chancela institucional representada pela sua antologia tinha acabado por diminuir o caráter contestatório daquelas intervenções. A poesia não era só o texto, mas todo o circuito: suas formas de produção, circulação e recepção.

Já nos anos 2000 — quando a academia, finalmente, havia metabolizado a geração dos 70 —, o adjetivo “marginal” voltava à cena, agora para designar um novo circuito, atravessado por figuras como Ferréz, Alessandro Buzo, pelos saraus de periferia e pelo movimento hip-hop. É esse cenário que Helô situa como a nova frente de enfrentamento político a partir da literatura, mergulhando nessa produção — em especial, na nascente cena da spoken word. Novamente, enquanto parte da crítica debatia a natureza da poesia falada — se literária ou performática —, Helô já situava o slam como “a grande novidade” da nova antologia As 29 poetas hoje, uma produção que colocava a poesia novamente no centro da discussão literária brasileira.

Em 2021, em uma entrevista dada à CBN, precisamente por ocasião do lançamento de As 29 poetas hoje, Helô ofereceu duas definições — ou melhor, duas imagens — para a poesia. Primeiro, dizendo que a poesia era “um radar de sua época”, trecho que virou o título da entrevista no site da emissora de rádio; e, em seguida, dizendo que usava a poesia como um I Ching, “pra ver como é que estão as coisas”. Queria ler nessas duas imagens não uma oposição, mas uma gradação: uma passagem de um esboço de um conceito — que seria da ordem do que a poesia é — para uma imagem da metodologia de uma leitura, isto é, um modo de usar.

Primeiramente, o radar. O que temos aqui é um sistema de distanciometria por rádio, uma forma de medir a distância de um objeto a partir da emissão e captação de uma onda refletida. Que a poesia seja um radar de sua época significa que nos situamos em uma noção de tempo espacializado, pensado não tanto como uma instantaneidade planificada, mas, sim, como um objeto dotado de volume, de distâncias internas e texturas. A poesia seria, nesse sentido, uma espécie de mapa dinâmico do tempo, uma forma de explorar as distâncias de uma época para consigo mesma.

Porém, acho que a coisa fica mais interessante na segunda imagem: no I Ching, quando o que está em jogo não é mais o mapeamento, mas a adivinhação. Em primeiro lugar, porque não é tanto uma questão de “o que” as coisas são. Se podemos dizer com relativa segurança que o I Ching foi usado por muito tempo (e esse é o sentido dado por Helô, na entrevista) como um instrumento de divinação, é porque a gente não sabe exatamente dizer o que ele é. Não lidamos mais com um instrumento técnico que se pauta pelas grandezas escalares (o radar), mas sim por uma linguagem oracular, um campo aberto aos enigmas, mal-entendidos (que incluiriam, talvez, as citações lidas erradas), interpretações e apostas. Que a poesia seja usada como um I Ching, “pra ver como é que estão as coisas”, significa, portanto, que importa muito pouco o que ela seja (ou quais textos são ou não são poemas), mas, sim, o que ela demanda: seus usos, suas leituras, os enigmas de sua época.

POMBAGIRA

“O que eu queria era que a universidade OUVISSE alguma coisa que ela nunca tinha OUVIDO, que era a periferia empoderada. A voz dos intelectuais da periferia, que são muitos. O que tem de mestre, doutorado na periferia, é inacreditável e eles [a universidade] não sabem. Porque as pessoas não estão dirigindo a escola, a faculdade de letras, que é o meu caso? Eu acho que se um negro dirigir, essa universidade muda. Se você pegar o feminismo decolonial, por exemplo, você vai ver que a nossa epistemologia é branca e masculina e não tem outra. A gente tem que romper isso, porque a gente vai trazer objetos novos, metodologias novas, teorias novas. Nova experiência social que está sendo posta pra pensar. Essa categoria que a gente tem que levantar. Eu acho que o feminismo decolonial brasileiro tem que ir pra periferia, porque ali tem uma cultura, ali tem ANCESTRALIDADE TERRITORIAL […] A vida toda eu me preparei para isso. Pra fazer isso e fiz. Por isso que eu digo: Está de bom tamanho. Acho que quando eu consolidei as Quebradas, eu realizei meu projeto. (Helô)

Imagine a universidade como um grande e imponente castelo no meio do nada, com suas leis e verdades. O tempo constrói estradas, e ele passa a se localizar numa encruzilhada de encontros e despachos como enfrentamentos — pé na porta que pessoas de fora não podem colocar. Abrir a porta facilita a invasão, e foi isso que Helô fez, como uma iluminada Pombagira: o ser que faz a ligação entre mundos, mentes e afetos.

Com a proposta de estrutura não acadêmica — algumas vezes não compreendida até por alguns alunos, contaminados pela ideia de que decolonizar é tomar posse de um espaço até então negado, o que mudaria somente as figuras dos ocupantes —, consolidar a Universidade das Quebradas foi um trabalho de paciência e inteligência afetiva, onde Helô produziu toda uma costura no problemático tecido da nossa sociedade partida, criando encruzilhadas improváveis onde saberes se encontraram e dialogaram, na valoração da intelectualidade orgânica, percebida por ela como uma parte importante que falta na universidade. Convidada a concorrer à eleição da Academia Brasileira de Letras, disse: “Só vou se as Quebradas vierem comigo”. E levou, lindamente. Na sua posse, houve uma multidão de gente preta, LGBT, com trilha sonora de samba, e mulheres suburbanas. Estava aberta mais uma porta. Pombagira não derruba portas, abre caminhos.

Quando a chamei de pombagira pela primeira vez, ela adorou e perguntou o motivo. Respondi: Pombagira uma entidade mulher na religiosidade afro-indígena brasileira que funciona como mensageira, possibilitando a união do terreno com o “divino”. Diferentemente do Exu, Orixá do Candomblé, Pombagiras foram mulheres que viveram e tiveram suas histórias pessoais atravessadas pela incompreensão, preconceito e machismo. À frente do seu tempo, donas dos seus corpos, foram punidas e não deixaram de cumprir sua missão. Elas gargalham enquanto mudam o mundo, que não percebe o quanto se modifica.

QUEBRADAS

A diferença da Universidade das Quebradas é a escuta, é trabalhar o que já existe — saberes, talentos e sonhos locais. É estabelecer a fala, a interlocução e deixar eles crescerem, ganharem voz, virem para a frente da cena. (Helô)

 Substantivo próprio que quer dizer travessia, escuta, criação coletiva, invenção de si. Conheci a Universidade das Quebradas pelo encantamento que Heloisa Teixeira nos provocava ao falar no assunto. Helô é dessas intelectuais orgânicas que vivem com pressa, margeando o tempo, enxergando no escuro aquilo que ainda não conseguimos ver. Foi ela quem me ensinou que quebradeiro não precisa ser salvo, precisa ser ouvido.

Em 2009, ao lado de Numa Ciro, fundou esse projeto de extensão da Faculdade de Letras da UFRJ — Universidade Federal do Rio de Janeiro — que é também um gesto de ruptura com as formas tradicionais de ensinar e aprender. A UQ, como é gentilmente chamada por seus membros, é um laboratório de saberes marginais: um espaço de encontro entre a universidade e a comunidade, entre o saber acadêmico e as potências das periferias.

Como dizia Helô: “A diferença da UQ é a escuta”. Ali, ninguém é inventado — o que fazemos é promover a liberação de sujeitos que já são artistas, pensadores, empreendedores, mas que ainda não tinham os meios de dizer: eu sou.

Desde 2022, faço parte da equipe da UQ. A cada edição, corpos que narram, palavras que se levantam, territórios que se inscrevem na literatura e na arte marcam presença. Já caminhamos com o pensamento afrodiaspórico (Arte Preta, 2022), com os saberes do sertão (Invenção do Nordeste, 2023), e com a força ancestral da palavra escrita (Machado Quebradeiro, 2024). Esta última edição, feita em parceria com a Academia Brasileira de Letras e a Flup, levou escritores periféricos ao centro simbólico da literatura brasileira.

Como afirmou Helô: “Fazer um curso na ABL tem um valor simbólico da maior importância. Ao mesmo tempo que legitima o trabalho destes aspirantes ao ofício da escrita, mostra o interesse da Academia pela força da literatura emergente”.

Na Universidade das Quebradas, aprendi que a literatura não é um objeto fixo — é corpo em movimento, é memória em disputa, é futuro em voz alta. E, talvez, o maior legado de Helô, em relação às Quebradas, seja fazer da escuta um princípio ético e da palavra um território de liberdade.

Turma Ariano Suassuna na ABL, maio de 2025
Turma Ariano Suassuna na ABL, maio de 2025

REBELDES E MARGINAIS

Um dos traços reconhecidos por Helô na chamada “poesia marginal” seria a valorização do momento, do presente, ou do “aqui e agora”, conforme define. Podemos dizer que esse é também um dos procedimentos e gestos críticos centrais do que propõe a teórica: a atenção ao “aqui e agora”. Em entrevista recente ao podcast da revista literária 451 MHz, define o contato com os seus próprios contextos e interesses, ao longo da vida, como balizador da prática, curadoria e escolhas teóricas. Ali, afirma que sempre se interessou pelo “não era considerado literário”, pelo que ficava às margens da sociedade — o feminismo, a periferia ou, nas suas palavras, “saiu catando o lixo” do que parecia fora dos espaços do cânone, da valorização ou da atenção da crítica na época.

Nessa postura atenta ao “marginal” e ao seu contexto, um dos seus temas principais de pesquisa é exatamente os impasses da cultura brasileira entre os anos 60 e 70. Em um dos seus últimos livros, releitura de outras produções pelas quais ficou conhecida, divide em “rebeldes” e “marginais” as leituras sobre os processos culturais conflituosos de uma sociedade sob ditadura que precisava repensar a sua arte a partir das experiências do autoritarismo e da violência.

Se, a princípio, os rebeldes apostaram no poder revolucionário da arte e da cultura, foi preciso encarar, aos poucos, a necessidade de um recuo diante das ilusões desfeitas. A mudança dos ventos, a falácia de um “milagre brasileiro”, a frustração de projetos revolucionários cede lugar à linguagem da chamada “poesia marginal” — à qual Helô dedicou-se intensamente — e que, assim como ela, questionava as “formas sérias do conhecimento” e as relações estabelecidas até então para a produção cultural. Era preciso criar procedimentos literários inovadores, seja na forma de produção e distribuição, seja na linguagem literária.

A coletânea 26 poetas hoje volta-se exatamente para essa produção de interesse da autora no momento e, mais do que isso, estabelece uma base importante para o tipo de linguagem que mobiliza a teórica na nova produção — As 29 poetas hoje. Ana C. é aquela escolhida na passagem do tempo como legado que interessa, no presente, de um “aqui e agora” que agora reconhece a posição marginal de uma literatura de mulheres majoritariamente excluída do campo literário canônico.

A consolidada e recente “literatura marginal” tampouco ficou de fora dos seus interesses, em Cultura como recurso, por exemplo, sua missão política “traduz um empenho radical dos autores em termos do compromisso com a transformação social”. Como antes, interessa-se pela possibilidade de potencializar o fazer literário e a prática de leitura para além dos muros impostos, observando na posição “marginal” a “real descoberta dos infinitos recursos da palavra enquanto poder e mesmo enquanto arma”.

Se os contatos são muitos, é preciso também diferenciar os sentidos do “marginal” na obra de Helô, que também mudam conforme as conjunturas históricas: na ditadura, a busca por linguagem e um espaço de produção sob opressão; depois, a exclusão das mulheres no cânone; e, enfim, a marginalidade econômica da literatura periférica, que toma de assalto a palavra a partir dessa posição.

* Laboratório de Teorias e Práticas Feministas: Ana Catalina Di Rocco (“Cheio Cultural”), Carol Carvalho (“Antologia”), Drica Madeira (“Quebradas”), Dri Azevedo (“Patrulhas Ideológicas”), Eduarda Rocha (“Encrencas”), Eduardo Coelho (“Aeroplano”), Fernanda Araujo (“Feminismo Agora”), Filipe Manzoni (“Poesia”), Helena A. R. S. (“Mesão”), Isabela Cordeiro (“Cheio Cultural”), Jazmín Bergel (“Explosão”), Lu Colen (“Feminismo Agora”), Luciana di Leone (“Impressão”), Lucía Tennina (“Ouvir”), Lua Gill (“Rebeldes e Marginais”), Mabel Boechat (“Crítica Feminista”; “Limonada”), Manuella Lopes (“Limonada”), Marcela Filizola (“Encrencas”), Mariana Patrício (“Matriarcas”), Mayara Borges (“Explosão”), Orquídea Garcia (“Rebeldes E Marginais”), Rayi Kena (“Eu?”), Rozzi Brasil (“Pombagira”), Suane Mesquita (“Antologia”).
Referências bibliográficas
ARANHA, Luís. Cocktails. Organização, apresentação, pesquisa e notas de Nelson Ascher. Pesquisa de Rui Moreira Leite. São Paulo: Brasiliense, 1984.

CÉSAR, Ana Cristina. Correspondência completa. Rio de Janeiro: s.e., 1979.

KLAXON: mensário de arte moderna – edição fac-similar. Organização de Pedro Puntoni e Samuel Titan Jr.; ensaio de Gênese de Andrade. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2014.

HOLLANDA, Heloisa Buarque (org.). 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 6.ed., 2007.

HOLLANDA, Heloisa Buarque (org.). Esses poetas: uma antologia dos anos 90. 2. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.

HOLLANDA, Heloisa Buarque (org.). As 29 poetas hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

HOLLANDA, Heloisa Buarque (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.

HOLLANDA, Heloisa Buarque (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. Explosão feminista. São Paulo: Companhia das letras, 2018.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. Entrevista: “Heloisa Buarque de Hollanda: a poesia é o radar de sua época”. Disponível em: https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/332877/heloisa-buarque-de-hollanda-poesia-e-o-radar-de-su.htm.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de; BOTELHO, André; COELHO, André; STROZENBERG, Ilana; COSTA, Cristiane (orgs). Onde é que estou? Heloisa Buarque de Hollanda 8.0. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

TEIXEIRA, Heloisa. O ethos Raquel e Dona Fideralina de Lavras. In: LABORATÓRIO DE TEORIAS E PRÁTICAS FEMINISTAS (org.). Por uma história feminista da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2024.
Dossiê
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DISCURSO DE RECEPÇÃO A HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA

Receber Heloisa Buarque de Hollanda (ou Teixeira) entre nós é motivo de festa para esta Casa. De minha parte, e me desculpando pelo tom pessoal, devo dizer que saudá-la com carinho é fácil, tamanha a admiração que tenho por ela e o afeto de que nossa amizade fraterna, ainda que bissexta, se alimenta há décadas. Difícil é cumprir o trato que fizemos, de mantermos bem curtos os nossos discursos nesta solenidade – sobretudo o meu. A dificuldade reside no fato de que a nova acadêmica é multifacetada, não cabe em definições sucintas nem limites claros. Tem sido classificada como escritora, professora, crítica, ensaísta, intelectual pública, animadora cultural mas escapa a todos esses rótulos redutores e estoura as fronteiras das categorias conhecidas. Tem luz própria, ainda que não seja exatamente uma estrela midiática. Arrisco-me a dizer que é uma constelação. Constelação de muitos nomes, como há poucos dias constatamos em entrevista pela imprensa, em que a nova acadêmica revelava que agora passa a se assinar Heloisa Teixeira, destacando o sobrenome materno. Decisão consagrada com um filme documentário sobre ela, O nascimento de H. Teixeira, igualmente anunciado na ocasião. Para os amigos, entre os quais me incluo, sempre Helô. E é assim que me refiro a ela. Na vida e nesta saudação.

Quando começamos a conviver, ainda na década de 1960, logo me impressionou sua capacidade de equilibrar qualidades complementares – por vezes até julgadas opostas pelo senso comum. Como, por exemplo, a clareza racional e a intensidade afetiva. Ou a busca da solidez teórica e o simultâneo respeito ao improviso e à intuição. Aspectos raros de serem encontrados na mesma pessoa de forma balanceada, em configuração que logo aprendi a admirar. E até hoje admiro, cada vez mais, nessa Heloisa que é uma mestra em cruzar fronteiras. Sempre a nos surpreender com grandes guinadas investigativas e criadoras ou suas pequenas rebeldias simbólicas. Desde que a conheci.

A antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil tinha recentemente se desmembrado, tendo então seus 14 ou 15 cursos distribuídos em Institutos e Faculdades autônomas – entre eles a Escola de Comunicação e a de Letras. E lá estávamos nós duas lado a lado, jovenzinhas, iniciando nossas vidas profissionais em ambas, trabalhando com seus diretores, respectivamente José Carlos Lisboa e o acadêmico Afrânio Coutinho, catedrático de Literatura Brasileira numa equipe que contava ainda com Samira Mesquita, Marlene Castro Correia, entre outros. Nesse momento de abandono do enfoque mais tradicional da estilística como ferramenta para o exame dos textos literários, nós todos vivendo em meio à efervescência de uma diversidade de correntes epistemológicas, Helô começou a organizar encontros semanais em sua casa com Clara Alvim e comigo, para um programa de leituras teóricas e discussões. Líamos e discutíamos textos variados, dos formalistas russos a Goldmann, Lukács ou Auerbach, passando por estruturalistas, sociólogos e antropólogos, eventualmente buscando as ideias de Antonio Candido, ou quem mais nos acenasse pelo caminho. A cada semana, nos dávamos uma pauta de textos e por vezes trazíamos novas descobertas ou desafios que mais nos instigassem, como os que mais tarde Heloisa chamaria de o BBB teórico inicial: Walter Benjamin, Roland Barthes, Mikhail Bakhtin.

Corria o ano de 1968 e éramos ativíssimas politicamente. Mas nem por isso deixávamos de nos reunir quase toda semana para discutir ferramentas de análise de textos literários, em meio a eventuais intromissões de nossas crianças pequenas, na eterna prática feminina de perseverança nas conquistas profissionais sem abandonar a inserção na concretude da realidade cotidiana.

Éramos multifacetadas e sabíamos que essa era nossa única maneira de ser. Cheias de perguntas. Ação e reflexão indissolúveis, política e vida absolutamente fundidas. Algo natural para quem vinha de experiências com movimento estudantil, Centro Popular de Cultura da UNE, numa turma preciosa de amigos cineastas, músicos, artistas plásticos, jovens que queriam fazer teatro – circulando entre o Museu de Arte Moderna do Rio, cineclubes que proliferavam, e incontáveis palcos (de arena ou não) a se multiplicar meio no improviso.

Os anos imediatamente após o Ato Institucional Número 5 marcaram nossa geração como tempos de repressão, censura, prisões, exílios, recolhimentos. Mas nessa quadra Helô soube onde garimpar e descobrir plenitudes no aparente vazio. Teve um lampejo e voltou sua atenção de pesquisadora para o que chamou de “as microtendências e seu cruzamento com a política no campo da cultura”. Com esse movimento, consolidou então sua vocação absolutamente notável, talvez sua característica definidora por excelência: a de antena captadora daquilo que estava brotando e ninguém via. Sua sensibilidade para cruzar fronteiras com naturalidade. De olho nas frestas e no que se esgueirava pelas brechas, seu faro fino de pesquisadora imersa no real discerniu com clareza a riqueza das variadas manifestações que começavam a pipocar fora das correntes tradicionais e reconhecidas de criação cultural. E nelas soube destacar as mais férteis e significativas participações incipientes na cultura rebelde da década.

Mais atenta ao processo que a consagração de resultados, Heloisa percebeu de saída a força e o impacto dos primeiros folhetos mimeografados, trazendo aquilo que em seguida se chamaria de poesia marginal. Um fenômeno despretensioso, despreocupado com a permanência ou o reconhecimento crítico, mas que chamou sua atenção, e a cuja irreverência radical Heloisa ainda no calor da hora dedicou uma antologia — destinada, em nossos dias, a se tornar ironicamente canônica, o livro 26 poetas hoje. Manifestação criadora à qual, ao final dessa década, ela deu destaque, em balanço em que a situou ao lado das letras das canções da Música Popular Brasileira e também da literatura infantil que então começava a ser notada, quando organizou em 1980 para a revista Tempo Brasileiro um balanço amplo das conquistas e realizações dos dez anos que então se encerravam.

Em paralelo, Heloisa fazia muitas outras coisas nessa década de 1970 – como sempre. Continuava dando aulas na Faculdade de Letras e na Escola de Comunicação. Terminou a tese de mestrado sobre a leitura de Macunaíma de Mário de Andrade feita pelo filme de Joaquim Pedro. Fez cenografia para alguns filmes. Dirigiu dois documentários. Produziu um programa na Rádio MEC. E terminou a década concluindo seu doutorado, que resultaria no livro Impressões de viagem. Por si só, essa era uma proposta absolutamente inovadora, no tema e no enfoque: um exame minucioso em que o examinador se coloca de forma presente, argumentando e interpretando na primeira pessoa, ao mesmo tempo desafiando os rígidos cânones que ditam a forma e a linguagem dos trabalhos acadêmicos universitários, e assumindo a radicalidade do ensaísta que não se esconde. Quase foi reprovada por mais esse exemplo do que chamo de pequena rebeldia simbólica, mas abriu um caminho precioso – ainda que de raros seguidores.

Helô continuou organizando variados grupos de estudos, claro – é alguém que gosta de trabalhar em equipe e se alimenta do diálogo, do desafio e da escuta. Seguiu participando de equipes de cinema. Fez inquietas reformas em algumas das casas para as quais se mudou – é admirável esse seu lado meio arquiteta, de quem gosta de obra, quebra paredes, abre espaços perfeitos e acolhedores e se movimenta muito à vontade em curadoria de exposições, sobre os mais variados temas. Entre elas, mostras que abrangeram desde a construção de Brasília à estética da periferia, de Chico Mendes ao Teatro Oficina, das mulheres artistas no Brasil ao futuro das águas. Sem parar de seguir publicando livros – tanto os que escreveu como os que planejou, organizou e editou. E sempre disse a diferentes reitores que seu desejo era ser prefeita do campus da UFRJ na Praia Vermelha. Mas nunca foi levada a sério em seu sonho de ali criar espaços de convivência cheios de vida e oportunidades de troca.

Nesses anos de 1980 e início de 1990, Helô assumiu a direção da Editora da UFRJ — além de dirigir o Museu da Imagem e do Som no Rio. Entre otras cositas más, como trabalhar oito anos com o acadêmico Darcy Ribeiro, fazer pós-doutorado em Sociologia da Cultura na Universidade de Columbia, e dar aulas como professora visitante nas de Stanford, de Berkeley e Brown. Até que, perto da virada do milênio, acabou por criar e dirigir com três sócios a Aeroplano Editora e Consultoria. (Ufa!)

Mas ainda quero voltar a uma obra singular na bibliografia de Heloisa, ainda que não exatamente de sua autoria direta. Trata-se de um registro fundamental e inescapável para qualquer estudo que se debruce atento sobre a cultura brasileira. Sob a forma de uma simples coletânea de entrevistas, na verdade é um monumento a sua sensibilidade de descobridora de temas e agitadora cultural, um símbolo de seu olhar perspicaz e inquieto, de sua desconfiança irreverente. Refiro-me a Patrulhas ideológicas: arte e engajamento em debate, livro publicado em parceria com Carlos Alberto [Messeder] Pereira. O que Heloisa aí detectou, iluminou e deixou para o futuro foi um amplo fórum de debates sobre o chamado “caso das patrulhas”. Um fenômeno que deixou marcas profundas e cuja permanência continua assombrosa, como presença inibidora entre nós décadas depois, em outro milênio, nestes tempos de radicalismos, fundamentalismos, sensibilidades exacerbadas, lacrações e cancelamentos. Uma força potente e duradoura que Helô, mestra de estudos culturais, atenta às marés, correntezas e diferentes ondas, percebendo no oceano da cultura tudo aquilo que se mexe, não deixou passar mas registrou logo no nascedouro, no calor da hora, em múltiplas e polêmicas vozes.

A inteligência sensível de Heloisa é uma grande antena, ou um sensível sismógrafo, capaz de captar as ínfimas vibrações e os quase inaudíveis ruídos daquilo que começa a se mover e por vezes ainda nem mesmo nasceu. Nessa prática insistente e sempre aperfeiçoada, a ação de Heloisa sacode o cânone e o alarga. Obriga a um olhar sobre aquilo que até então não era considerado. Incorpora mulheres com seu devido destaque e abarca a ação quase invisível de criadores da periferia. Mas não se deixa limitar por palavras de ordem ou conceitos ditados pelos modismos da ocasião. Desconfia de toda e qualquer embromação retórica, por mais que venha chancelada pelo jargão aplaudido e purpurinado. Incomoda as certezas vindas de qualquer lado, sacode posturas automáticas e superficiais, obriga a pensar. É dessa maneira questionadora e fecunda que, como assinalado pela crítica, “interpela o pensamento feminista com uma força teórica inovadora no campo acadêmico e dotada de forte potencial crítico e político no conjunto da sociedade”.[1]

Nesse processo, outra característica marcante de Heloisa vai ser essencial: gosta de trabalhar em instituições e as valoriza como poucos. Com isso, faz com que elas tenham de incorporar aquilo que não chamava a sua atenção – e esse talvez seja o traço mais revolucionário de sua ação, forçando o establishment a tomar conhecimento do que não queria ver, obrigando-o a engolir o que preferia ignorar. Nesse processo, sua coragem intelectual dribla com ousadia os modismos passageiros e, ao mesmo tempo, se obriga a exigir profundidade e rigor naquilo que está analisando com sua equipe. Sempre deu um jeito de mergulhar fundo em suas propostas aproveitando o arcabouço institucional da universidade – o que, se levarmos em conta a força paralisante dos sistemas burocráticos, é um feito absolutamente espantoso. De uma fecundidade ímpar. E essa talvez seja a marca que a torna uma intelectual única, sem qualquer paralelo no campo do nosso pensamento.

Nessa moldura, nenhum dos projetos e realizações será tão emblemático quanto o da Universidade das Quebradas. Trata-se de uma experiência de compartilhamento de problemas e dúvidas, sob pontos de vista múltiplos – no dizer do professor André Botelho. Uma iniciativa original de aproximação entre os saberes da universidade e as culturas urbanas da periferia, enfatizando as trocas mútuas e a interação. Ou, no dizer da própria Helô, um laboratório de Tecnologias Sociais cuja missão seria articular professores, pesquisadores e alunos da universidade com intelectuais, artistas, ativistas e produtores culturais das regiões periféricas e favelas do Rio de Janeiro, que já tivessem um trabalho relativamente consolidado, com o objetivo de experimentar formas de produção de conhecimento compartilhada.

Em suas entrevistas logo após ser eleita para a cadeira número 30, antes ocupada pela saudosa acadêmica Nélida Piñon, algumas declarações feitas à mídia revelam que o olhar com que Heloisa mira a nossa Casa não se confunde com o da mera satisfação com os aplausos recebidos e a vaidade pela consagração pública. É boa a glória que eleva, honra e consola, sim, como lembrava nosso fundador e primeiro presidente, mas isso não autoriza a esquecer o poderoso efeito constatado ao se entrar nesta casa de olhos bem abertos e atentos: essa circunstância cria novas condições para se arregaçar as mangas e ir à luta. Dá respaldo institucional a quem quer fazer algo. Em uma dessas entrevistas, Heloisa diz que, com sua eleição, desconfia estar assumindo um emprego novo para se somar aos seus inúmeros compromissos. Em outra, faz questão de afirmar que vai trabalhar muito e se compromete, de público, a fazer tudo que puder.

Não são palavras vazias. Seja como Teixeira ou Buarque de Hollanda, Heloisa se sente à vontade em instituições. Sabe muito bem do que está falando. Conhece o que a Academia Brasileira de Letras tem feito e ainda pode fazer em termos de abertura cultural e participação social. Sonha com novas realizações e poderá propô-las de forma concreta a partir da cadeira que, desde hoje, passa a ocupar oficialmente e de direito, nesta instituição cultural mais que centenária e de tão forte presença no imaginário nacional. Há mais de dez anos Heloisa nos vê na FLUP, por exemplo, e sabe que nós, acadêmicos, somos parceiros de primeira hora nessa Festa Literária das Periferias – de cuja criação ela participou (ao lado de Luiz Eduardo Soares, Julio Ludemir e do saudoso Ecio Salles), cujo desenvolvimento incentivou, e em cujas atividades temos estado lado a lado.

Conviver com Helô é sempre estimulante. Não dá para imaginar o que suas ligadíssimas antenas irão descobrir, ou aquilo que seu entusiasmo vai propor fazer, a partir deste momento em que adentra a maior e mais simbólica instituição cultural da nação. Ainda mais com a responsabilidade de suceder a outra força da natureza, a acadêmica Nélida Pinon, primeira mulher a nos presidir, incansável defensora de nossa língua e nossa cultura, guardiã de nossa memória, e cujo zelo na afirmação da importância de nossa literatura nos deixa um modelo inesquecível e desafiador. É assim, portanto, que esta noite, de braços abertos saudamos e acolhemos Heloisa entre nós, agora oficialmente, prontos a nos deixar contagiar por seu entusiasmo e a embarcar com ela em novos projetos que seu detector de desafios nos traga. Que seu olhar para o futuro continue fértil, agora com o apoio desta instituição, ao mesmo tempo nova e venerável, sob as bênçãos de tantos exemplos como os já citados, ao lado de alguns dos quais ela já trabalhou e que passa a ter a responsabilidade oficial de seguir.

Esta casa hoje acolhe você, Helô. A casa de Machado de Assis, um Joaquim que era também Maria. A casa de Nélida, que antecedeu você diretamente. E de Rachel, Dinah, Lygia, Zelia, Ana, Rosiska, Cleonice, Fernanda (em meio a cerca de três centenas de homens, ao longo do tempo). E quem mais chegar, acadêmica Heloisa. Teixeira ou Buarque de Hollanda. Carregada do tanto que já fez ao longo da vida, herdeira de sua própria obra, indelevelmente marcada pelo que construiu por si mesma com qualquer sobrenome – e aqui valem umas aspas para a expressão “nome sem apego nenhum nem pertencências”, como um personagem definido por Guimarães Rosa, acadêmico que também cunhou a máxima de que “nome não dá, nome recebe.” Com o sobrenome da mãe ou dos seus filhos, seja bem-vinda, Helô.

Ana Maria Machado em discurso na posse de Heloisa Teixeira na Academia Brasileira de Letras, no dia 28 de julho de 2023 (Fonte: Acervo ABL).
Ana Maria Machado em discurso na posse de Heloisa Teixeira na Academia Brasileira de Letras, no dia 28 de julho de 2023 (Fonte: Acervo ABL).
* Ana Maria Machado tem mais de cem livros publicados, dos quais 9 romances e 8 de ensaios, editados em vinte idiomas e 26 países. Recebeu, entre outros prêmios, três Jabutis, o Machado de Assis da ABL pelo conjunto da obra (2001), o Casa de Las Americas (1980, Cuba) e o Hans Christian Andersen pelo conjunto de sua obra infantil (2000). Sua tese de doutorado, sob orientação de Roland Barthes, resultou no livro Recado do nome (1976), sobre a obra de Guimarães Rosa.
Notas
[1] Botelho, André. “Heloisa Buarque de Holanda: Ponte e Porta”, posfácio a Heloisa Buarque de Hollanda, Onde é que eu estou? Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
Dossiê
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…HELÔ, NO MEIO DO CAMINHO

Sobre um encontro com uma mulher que transformou a minha trajetória literária.

como é bom ser camaleão
quando o sol está muito forte,
como é bom ser um camaleão
e ficar em cima de uma pedra espiando o mundo.
se sinto fome, pego um inseto qualquer
com minha língua comprida.
se o inimigo espreita, me finjo de pedra
verde, cinza ou marrom.
e, quando de tardinha o sol esfria,
dou um rolê por aí
Chacal
26 poetas hoje (1976)

Meu primeiro encontro com a Helô foi em um livro, no início dos anos 2000, como leitor. Para ser mais preciso, foi em 1968 – O ano que não terminou (1989), de Zuenir Ventura. Estudante de Jornalismo, fui atrás das obras do “mestre Zu”, como Helô gostava de chamá-lo. Foi assim que esbarrei com a professora em sua voz impressa, na apresentação do livro, relembrando o emblemático ano que marcaria sua produção crítica e cultural.

Como o Brasil de então, o réveillon de Helô tinha tudo para dar certo, a começar pela dona da casa. A professora Heloísa Buarque de Hollanda, bonita, culta e de esquerda, era mito e ícone da intelectualidade carioca dos anos 60. Com esses tempos a “Bela Mestra” iria fazer a matéria-prima de sua tese de doutorado uma década depois. Misturando duas viagens – a sua e a da História –, o seu trabalho ensinaria ao meio acadêmico que saber e competência não precisam ser chatos. (Ventura, 1989, p.26)

Esse parágrafo me pegou de jeito. Lido sob a luz de uma luminária fraca, no calor abafado de um quarto alugado em Copacabana, abriu um novo mundo diante de mim. A “Bela Mestra” parecia um tipo de personagem maior do que a vida, dessas que saem das páginas e cruzam os corredores do tempo. Lembro de guardar, em silêncio, um desejo íntimo: um dia conheceria Heloísa.

Naquela época, meu cotidiano era marcado por deslocamentos: dividia apartamento com amigos no Rio de Janeiro, conciliava os estudos na escola de teatro Martins Pena e na faculdade de Jornalismo com o estágio na rádio JB FM e na Rádio Cidade. No tempo livre, me lançava nos sebos do Centro em busca de palavras que pudessem me salvar. E foi ali que encontrei, em meio à poeira e capa gasta, um dos livros mais falados de Helô: 26 poetas hoje (1975). Quando comecei a leitura, compreendi os elogios de Zuenir. Heloísa era, de fato, singular. Tinha algo de rara escuta e ousadia, um faro certeiro para o novo.

Depois vieram Impressões de viagem – CPC, Vanguarda e desbunde 1960/1970 (1980), Esses poetas – uma antologia dos anos 90 (1998), Asdrúbal trouxe o trombone (2004), Explosão feminista (2018)… Eu lia (e ainda leio) Helô como quem entra numa roda de conversa com o país. Uma roda em que todas as vozes têm lugar, mesmo as que o centro costuma calar.

Alguns meses após essas primeiras leituras, em 2007, tive a surpresa feliz de conhecer Heloísa pessoalmente. O encontro aconteceu por intermédio do cineasta Murilo Salles e da poeta Maria Rezende, num debate sobre blogs e literatura — sim, Helô estava sempre conectada ao que fervia. Pouco depois, em 2008, entrei para o Portal Literal (2002), a convite da escritora Cecilia Giannetti. A redação funcionava dentro da Editora Aeroplano, sob a batuta de Elisa Ventura. A equipe ainda contava com Bruno Dorigatti e Valeska Zamboni. Helô era a dona do projeto, a mente pulsante por trás daquela experiência digital, muito antes das redes sociais virarem o que são.

Foi ali que me tornei seu parceiro de viagem — uma expressão que ela gostava de usar. O Literal era mais que um trabalho: era um espaço de invenção, de troca, de riso, de desassossego. Helô nos desafiava o tempo inteiro. Estimulava ideias, plantava inquietações, conectava mundos. Sob sua batuta, me aproximei da obra de Lygia Fagundes Telles, Ferreira Gullar, Rubens Fonseca, Veríssimo… Mas, mais do que nomes, Helô me aproximou de mim mesmo, e me apresentou um mundo de pessoas e livros.

Helô foi a primeira pessoa a prestar atenção à minha poesia. Eu estava prestes a publicar Vinis Mofados (2009), meu primeiro livro, e compartilhei a novidade com ela. Uma semana depois, me chamou e disse: “Fiz uma orelha para os seus Vinis.” Fiquei atordoado. Eu, que nem tive coragem de pedir. Ela, generosa, foi além e me presenteou com palavras que até hoje me escoram: “Ler Vinis mofados de Ramon Mello é acompanhar uma busca. E isso é sempre um momento de delicadeza. Foi assim que me senti ao ler os originais de Ramon” (Hollanda apud Nunes, 2009, n.p.).

O que mais me encantava em Helô era essa disposição afetiva de se deixar tocar pelo novo. “Por você/ virei a página”, dizia que ganhei uma leitura por esse verso. Ela escutava o inacabado, valorizava o processo, sabia reconhecer potência mesmo quando ela ainda estava se formando.

Cada encontro com Helô era uma viagem. Uma viagem alegre, intensa, às vezes esbaforida, mas sempre generosa. Grifei este trecho do prefácio de Impressões de viagem (1992), na primeira leitura: “Viagem. Mais atraente do que chegar a lugares é transitar entre um e outro. Deixei-me onde parti. Intervalei-me” (Hollanda, 1992, p.13). Ela vivia nesse entre-lugar fértil, ensinando a cruzar fronteiras — da academia à favela, da poesia ao ciberespaço, do teatro à rua.

Sua casa (ela mudava e fazia obras com frequência) era uma espécie de laboratório informal onde nasciam ideias. Sentávamos à mesa com café e livros, e dali saíam projetos, antologias, oficinas, conversas intermináveis sobre o que realmente importava. Foi lá que conversamos sobre a ideia de fazer o livro Escolhas – autobiografia intelectual de Heloisa Buarque de Hollanda (2009). A edição ficou por conta de Eduardo Coelho, com textos de Zuenir Ventura e Beatriz Resende. Helô tecia suas memórias com uma clareza desconcertante, reunindo fragmentos de uma trajetória intelectual e afetiva que se entrelaçavam com a história do Brasil.

A epígrafe escolhida por Beatriz, de Susan Sontag, reverberava com perfeição: “Escrevo para definir a mim mesma — um ato de autocriação — parte do processo de tornar-se — num diálogo comigo mesma, com escritores que admiro, vivos e mortos, com leitores ideais…” (Sontag apud Hollanda; Mello, 2009, p.13).

A vida com Helô era isso: um constante processo de tornar-se, de aprender a cada dia, de abrir espaço para o outro e, assim, se transformar.

Com ela, realizei ainda a curadoria do projeto ENTER – Antologia Digital (2009), ao lado de Cecilia Giannetti, Bruna Beber e Omar Salomão. Juntos, reunimos 37 autores que navegavam pela internet e pela literatura com fluidez. Havia de tudo: poetas, músicos, cartunistas, web designers, ativistas. Helô acreditava na legitimidade de cada voz, sem hierarquias. Quando perguntei, em uma entrevista em vídeo para o portal Saraiva Conteúdo, se existia uma literatura específica da internet, ela respondeu com brilho nos olhos: “Antes o poeta colocava o poema na gaveta. Agora, o texto vai ao público, sendo testado a todo instante” (Hollanda; Mello, 2009).

Havia nela uma excitação permanente com o presente. Um tesão em pensar. Horas bordando ideias, girando conceitos, costurando redes.

Não posso deixar de lembrar da ocupação poética A Palavra Toda (2011), realizada no Sesc Copacabana, com curadoria dividida entre mim, Helô e o poeta Chacal, sob a gerência de Maria José Motta Gouvea. Reunimos ali diferentes gerações de poetas, do mimeógrafo às mídias digitais. Foi um acontecimento; um ato político; uma celebração da palavra em suas múltiplas formas e corpos. Helô nos lembrava, o tempo todo, que literatura também é performance, é gesto, é corpo presente.

Com o tempo, nos afastamos dos projetos em comum, mas não da afetuosidade mútua. Ela mergulhou com ainda mais vigor em suas pesquisas sobre feminismos e cultura periférica. Eu me voltei à poesia e à questão do HIV[1], tema que se tornou central na minha trajetória acadêmica e pessoal. Entretanto, estamos ligados pelo pensamento e pela poesia.

Helô nunca pensou a poesia como uma forma cristalizada ou estanque. Ao contrário, sua escuta sensível e sua disposição de caminhar com os poetas das margens, dos morros, das pistas e das ruas a tornaram uma das principais intelectuais a compreender a potência da poesia como linguagem de resistência e invenção. Em sua leitura da poesia contemporânea brasileira, Helô sempre privilegiou a abertura ao novo, ao dissidente, ao periférico — ao que, por muito tempo, esteve fora dos cânones.

Desde a antologia 26 poetas hoje (1976), marco incontornável da poesia marginal dos anos 1970, ela já intuía que a transformação estética da linguagem andava de mãos dadas com as transformações sociais e políticas. Para Heloísa, o valor da poesia não se media por formalismos nem pela obediência a modelos consagrados, mas pela capacidade de dizer o indizível, de dar voz a experiências silenciadas. O poeta, para ela, era aquele que arriscava, que criava “fora da curva”, como costumava dizer.

Nas últimas décadas, Helô se voltou com ainda mais força para as vozes dissidentes — mulheres, LGBTQIA+, escritores negros, indígenas, poetas das periferias —, entendendo (assim como acredito) que a poesia contemporânea brasileira se alimenta dessas fraturas e nelas encontra sua potência. Para ela, a poesia era um território de liberdade radical, em que o corpo, o desejo e a política se cruzam e se contaminam.

Por tudo isso, Helô resolveu lançar As 29 poetas hoje (2021), reunido mulheres que fazem uma poesia híbrida, feminina, feminista e ancestral. Vozes que impressionam pela coragem e furor: Adelaide Ivánova, Maria Isabel Iorio, Bruna Mitrano, Rita Isadora Pessoa, Luna Vitrolira, Mel Duarte, Liv Lagerblad, Natasha Felix, Stephanie Borges, Valeska Torres… Helô contribuiu para se enxergar um feminismo múltiplo, com lógicas mais comunitárias. Ela estava atenta ao caráter estrutural e institucional do racismo e do sexismo presentes na cultura e trazia esse olhar para a literatura. Defendia o caráter autoral da curadoria, da responsabilidade dessas escolhas. Sem dúvida, suas antologias comprovam essa busca.

A poeta como curadora também deixa sua marca: ocupações, saraus, coletâneas, encontros digitais. E, na trajetória de Helô, tudo fazia parte de seu esforço contínuo de conectar poéticas e práticas culturais. Foi por meio dessa escuta múltipla que ela ajudou a legitimar estéticas que antes não eram reconhecidas pela crítica hegemônica. Seu pensamento sobre poesia nunca esteve separado da prática, da ação, do coletivo.

Como pensadora, Helô compreendia que não se trata apenas de analisar poemas, mas de ouvir o que pulsa neles como um grito de existência. Essa escuta política e afetiva é uma de suas maiores heranças. Ao pensar a poesia contemporânea brasileira, Heloísa nos ensina que o verso é uma forma de vida — e, sobretudo, de luta.

Luta essa que pretendo continuar, com as palavras. Foi por incentivo dela que entrei na academia. Inicialmente, tentei a PUC, com cartas de recomendação assinadas por ela e por Affonso Romano de Sant’Anna. Não fui aprovado, mas a semente estava lançada. Mais tarde, com o apoio de Eduardo Coelho — parceiro de Helô e hoje meu orientador —, ingressei no mestrado da UFRJ e, depois, no doutorado.

Em 2015, publiquei uma carta[2] sobre minha sorologia positiva para HIV. Ela me ligou assim que leu: “Adorei o que escreveu, admiro sua coragem. É isso, meu amigo, transforma tudo em literatura. Agora, entra para a UFRJ e vai estudar!”

Essa frase ficou gravada em mim como uma ordem amorosa. Helô vibrava com minhas conquistas, me ligava sempre que uma novidade surgia. Meses antes de falecer, me escreveu para dizer que tinha lido a obra do Cazuza que organizei e que se sentia orgulhosa. Ela não precisava fazer isso — mas fazia. Por pura generosidade.

Helô era uma espécie de antena. Sintonizava o futuro antes que ele chegasse. Não era apenas alguém que falava sobre cultura — ela a praticava, a vivia. Tinha uma capacidade quase mediúnica de perceber o que estava por vir, de farejar o novo nas dobras do agora. E, mais do que isso, tinha a coragem de apostar em linguagens, vozes e presenças que o mundo ainda não estava pronto para ouvir. Quantos nomes ela lançou, quantas sementes plantou? Era impossível não se contaminar com seu entusiasmo, com aquela mistura explosiva de pensamento crítico e intuição afiada. Helô não apenas pensava a cultura — ela a reconfigurava. Seus projetos sempre partiam do desejo de romper muros, de embaralhar fronteiras. Foi assim com Enter (2009), Tramas urbanas (2007), Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC (1994), Universidade das Quebradas (2009)… Nomes que não são apenas títulos de iniciativas, mas formas de pensar o tempo, a memória, o corpo, a criação.

Lembro do brilho nos olhos dela ao falar do Tramas urbanas (2007). De fato, o projeto tem a beleza e a sensibilidade editorial características de Helô. Ela percebeu que uma nova cultura da periferia estava se impondo como um dos movimentos culturais de ponta no país, então resolveu criar Tramas como uma “resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história”. Não cansava de ressaltar a força e o poder de interpelação dessa produção periférica, como fenômeno mais importante da virada do século. Para a curadoria da coleção, Helô escolheu o ninguém menos que o poeta Écio Salles (o criador da Feira Literária das Periferias – FLUPP, junto com Julio Ludemir). O Tramas revelou pensadores importantes da cultura como Marcos Vinicius Faustini, Ericson Pires, Sergio Vaz, Cristiane Ramalho, Alessandro Buzzo….A carreira de Helô é marcada por uma travessia constante entre o saber acadêmico e o calor das ruas, entre o rigor teórico e a experimentação. Professora emérita da UFRJ, fundadora e coordenadora do já citado PACC, Helô foi pioneira ao colocar em diálogo temas como feminismo, cultura digital, literatura marginal, identidade de gênero, movimentos sociais e pensamento decolonial — muito antes desses debates se tornarem correntes.

Era também uma mulher de afetos generosos. Sabia acolher, apoiar, provocar. Gostava de conversar por telefone, de enviar mensagens carinhosas, de vibrar pelas conquistas dos outros. Seu compromisso com as causas que abraçava não era teórico: era visceral. E isso se refletia em tudo o que fazia — dos livros às curadorias, dos projetos digitais aos debates acadêmicos.

A sua entrada na Academia Brasileira de Letras, em 2023, foi emblemática. Não apenas por ser uma mulher em um espaço historicamente masculino. Mas porque, com ela, entraram também as vozes das margens, das travestis, das mulheres negras, dos coletivos periféricos, dos poetas de rua, dos performers. Com ela, entrou um outro Brasil. Um Brasil mais complexo, mais vivo, mais verdadeiro.

No velório de Helô, nas dependências da ABL, o silêncio tinha um peso histórico. Mas também havia canto, risos emocionados, lembranças ditas em voz alta por quem a amou. Ao redor do caixão, mesmo tristes com a passagem de Helô, todos sorriam cúmplices de ter tido a alegria de conviver com uma mulher tão cheia de vida: Omar Salomão, Alice Sant’Anna, Mariano Marovatto, Silviano Santiago, Ana Cecília Impelliziari, Teresa Karabtchevsky, Ana Madureira, Numa Ciro… Eu olhava para aquelas paredes centenárias e imaginava a menina de Copacabana, que tantos diziam bela e inteligente, agora eternizada em um espaço que tantas vezes ignorou as vozes como a dela. E ela ali, multiplicada em nós. Presente em cada afeto que plantou.

Fiquei sentado no banco de madeira por um longo tempo. Lembrei de cada encontro, cada telefonema, cada gargalhada em torno de uma ideia maluca que poderia virar um projeto. Lembrei do dia em que me falou da emoção que sentia ao escutar uma jovem mulher trans recitar um poema na Universidade das Quebradas. Lembrei da vez em que me disse: “Se um texto não te abala, não vale a pena ser lido”. Fiquei ali admirando as imensas coroas de flores que ela recebeu, em uma delas dizia: “Para nós, do Literatura & Liberdade: Helô para sempre”. Eu li e sorri. Era como estivesse ouvindo a voz dela dizendo: “O que importa são as pequenas epifanias, Ramon. Aproveite porque passa rápido, os 80 chegam rápido!”

Coroa de flores no velório de Helô, na ABL (Fonte: Wagner Alonge, 2025).
Coroa de flores no velório de Helô, na ABL (Fonte: Wagner Alonge, 2025).

Após seu velório, tive a oportunidade de assistir ao documentário Helô (2023), dirigido pelo cineasta Lula Buarque de Hollanda, seu filho. É fascinante o orgulho dos filhos com a mãe ilustre, que transformou a cabeça de diferentes gerações. Helô fez diferença por onde passou. Não por acaso, é considerada uma das principais intelectuais brasileiras. Heloisa Buarque de Hollanda, que deixou marcas importantes no pensamento nacional, principalmente na poesia e na cultura brasileira. O documentário ilumina a trajetória de uma mulher-ícone que sempre esteve na vanguarda, como um imenso farol. Impossível esquecer Helô e seu sorriso luminoso. Agradecido, Helô, por tanto.

Em outro documentário, O Nascimento de H. Teixeira (2024), de Roberta Canuto, ela começa o filme falando sobre morte, como se estivesse prevendo a aproximação: “Ninguém pode prever a própria morte, mas eu consigo ver a minha. Tenho enfisema pulmonar; se eu me interno, vou entubada e não saio mais” (Hollanda apud Canuto, 2024).

Nós que perdemos, Helô, sua presença.

Heloisa Maria Buarque de Hollanda. Heloisa Buarque de Hollanda. Heloisa Teixeira. Ou, simplesmente, Helô. Uma mulher que nasceu em Ribeirão Preto, em 1939, mas foi no Rio de Janeiro que construiu sua trajetória intelectual e afetiva mais intensa. Graduou-se em Letras, fez mestrado e doutorado em teoria crítica, e logo se destacou como uma das intelectuais mais ousadas e livres da academia brasileira.

Helô me ensinou a importância de ser atravessado. De não temer as rachaduras, os desvios, os excessos. Ela própria era excesso — no melhor sentido da palavra. Um transbordamento de ideias, de amor, de coragem.

Com Helô (Fonte: Arquivo pessoal, 2017).
Com Helô (Fonte: Arquivo pessoal, 2017).

Hoje, ao escrever estas linhas, sinto que a melhor homenagem que posso lhe fazer é continuar. Continuar a escrever, a estudar, a acreditar no poder transformador da palavra. Continuar a construir redes. Continuar a insistir, como ela, que a cultura é um campo de batalha — e, também, de afeto.

Helô era, como muitos a definiam, uma visionária. Mas talvez o melhor seja dizer que ela era uma mulher em constante estado de reinvenção. Vivia no presente, mas com um olho no que estava por vir. O por vir lhe dava tesão na vida. Sua curiosidade era insaciável. Seu riso, inconfundível. Sua inteligência, contagiante. Pergunte a quem conviveu com ela, era uma mulher que caminhava em diferentes mundos nutrindo curiosidade por tudo e todos.

Helô não era uma mulher de chegada
era uma mulher de travessia
Helô era um camaleão
desses que pintam no verso
do Chacal
com Helô
tudo era novo
e ainda hoje
tudo continua sendo
ela está no meio do caminho
viva
nos encontros
nos livros
nos gestos
nos afetos
nas ideias
nas palavras
na palavra toda
na poesia
toda

* Ramon Nunes Mello (Araruama/RJ, 1984) é poeta, escritor e jornalista. Desde 2012, vive com hiv e é ativista de direitos humanos. É ainda mestre em Letras Vernáculas – Poesia Brasileira (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, 2017), doutorando em Ciência da Literatura na mesma instituição. Entre outros títulos, organizou Escolhas: Uma autobiografia intelectual (2010), de Heloisa Buarque de Hollanda; Tente entender o que tento dizer: Poesia + hiv/aids (2018); Ney Matogrosso: vira-lata de raça – memórias (2018); Meu lance é poesia – Cazuza (2024); e Protegi teu nome por amor – Cazuza – fotobiografia (2024), este último com Lucinha Araujo. Atualmente, é curador da exposição Cazuza: Exagerado, no Shopping Leblon, e realiza mediações do Clube do Livro CCBB-RJ, ao lado de Suzana Vargas.
Referências bibliográficas
CANUTO, Roberto. O nascimento de H. Teixeira.  Brasil: Raccord Produções, 2024. 82min.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. 29 poetas hoje. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil, 1976.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Esses poetas – uma antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil, 1998.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem – CPC, Vanguarda e desbunde 1960/1970. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1980.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Asdrúbal trouxe o trombone – memórias de uma trupe solitária de comediantes que abalou os anos 70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Explosão feminista: Arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Org. MELLO, Ramon Nunes. Escolhas – autobiografia intelectual de Heloisa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Carpe Diem, Língua Geral, 2009.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. HELÔ. Brasil: Conspiração Filmes, 2024. 90min.

MELLO, Ramon. Vinis mofados. Rio de Janeiro: Língua geral, 2009.

VENTURA, Zuenir. 1968 – O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2ª edição, 1988.
Notas
[1] Não estranhe ao ler a sigla “hiv” grafada com letras minúsculas (grande é a poesia). Acompanho a posição adotada pelo escritor Herbert Daniel, contemporâneo do poeta, a respeito da palavra “aids”, quando ela era escrita como uma sigla – com maiúsculas –, e reforço o argumento do autor em seu texto “O primeiro AZT a gente nunca esquece”: “Uso a palavra em minúsculas para chamar a atenção para este significante que quer dizer muito mais do que a doença indicada com a sigla aids” (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 8-10, 30 set. 1990).

[2] NUNES MELLO, Ramon. “O Sentido da Urgência: a necessidade de se conversar sobre o hiv”. blog de Jean Wyllys, Carta Capital, em 1 de dezembro de 2015. Acesso em: nov 2017. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-sentido-de-urgencia-a-necessidade-de-se-conversar-sobre-o-hiv-9676.html
Dossiê
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SOBRE INTELECTUAIS & BISCATEIRAS

1.
“Acho que sou uma biscateira cultural”. Assim, Heloisa Teixeira, ainda Buarque de Hollanda, tentava explicar para Ana Maria Bahiana — e talvez para si mesma — o que fazia no ano de 1979 que então se encerrava. Num raro encontro em que entrevistada e entrevistadora dialogam de igual para igual, a conversa no Jornal do Brasil gira em torno das múltiplas e inquietas atividades de Heloisa. Naquela altura, ela completava quatorze anos ensinando na Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre a Faculdade de Letras e a Escola de Comunicação, com uma ressalva importante: “aprontando desde 1974, quando eu vi que ser professora, naquele modelo tradicional, não dava pé mesmo”.

Nesta era distante, anterior ao produtivismo quantitativo do hommo lattes, Heloisa dizia ter mestrado, doutorado “e o escambau”, por pura estratégia: “eu acho legal porque me legitima as incursões alternativas, cala a boca de quem acha que eu estou brincando”.

Nos últimos tempos, ela havia experimentado televisão (Culturama, um programa estudantil sem drama, na TVE), cinema (na incursão mais recente, a direção de Xaboravalha!, curta-metragem com o Asdrúbal Trouxe o Trombone) e rádio (apresentando o Café com Letras, na MEC). Em produção mais de acordo com o que se esperava de uma intelectual — designação aqui associada ao magistério universitário —, anunciava o lançamento de dois livros para o ano seguinte: Impressões de viagem — CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70 e, em parceira com Carlos Alberto Messeder Pereira, Patrulhas ideológicas marca reg — Arte e engajamento em debate.

A questão que ronda a entrevista do JB não tem resposta óbvia: como, afinal, nomear Heloisa Buarque de Hollanda em momento tão sensível? Ana Maria Bahiana acha que, pelo que “faz — ou apronta”, sua entrevistada merece “status além da biscateira que quer ser.” “Com tanta produção, Heloisa poderia vestir a capa do intelectual e descansar sobre sua obra”, observa a entrevistadora, que prefere vê-la como uma “guerrilheira cultural”, epíteto bem de acordo com a recentíssima história social. Se não chega a abraçar a imagem de combatente, Heloisa conclui com uma declaração de princípios cristalina: “Não tenho o menor compromisso com a obra. Nunca me preocupei com isso. E acho que quem se preocupa já dançou”.

Fazia tempo que Heloisa atuava intelectualmente de forma singular. Para uma professora, não custa lembrar, a tal da “obra”, o trabalho tangível além das aulas e da pesquisa, era sinônimo de livro. Até então, ela já publicara três deles: em 1976, a rumorosa antologia 26 poetas hoje, seguida, dois anos depois, por Macunaíma, da literatura ao cinema. Em 1979, em parceria com o poeta Armando Freitas Filho e com Marcos Augusto Gonçalves, seu orientando, saía Anos 70 – Literatura, segundo volume de uma coleção de cinco livros que pretendiam formar um panorama da produção de música, teatro, cinema e televisão às vésperas da abertura.

Mas voltemos à entrevista com Ana Maria Bahiana. Os dois novos títulos, a sair em 1980, nasceram, como era de se esperar, na universidade — mas dela se distanciavam de forma desconcertante. Adaptação da tese de doutorado em Letras, defendida na UFRJ em 1978, sob orientação de Afrânio Coutinho, Impressões de viagem desestabiliza conceitualmente as relações entre o acadêmico e seu tema, assumindo dois “riscos” por ela explicitados. O mais evidente é “trabalhar a cultura em processo”, a quente, sem a segurança “de uma perspectiva histórica mais definida”; o outro, assumir a “extrema proximidade da análise com seu objeto”, abrindo mão de uma “isenção crítica”, talvez idealizada, para ganhar “pela própria marca ‘suja’ da experiência vivenciada” (Hollanda, 1992, p. 10). O Macunaíma, da literatura ao cinema, é bom lembrar, também tinha relação ambígua com a origem acadêmica: ela o definiria como uma “montagem e desmontagem” da dissertação de mestrado, “um trabalho com alguns escombros da tese e com a experiência de limites que ela me ensinou” (Hollanda, 2009, p. 51).

Patrulhas ideológicas, o outro livro de 1980, é resultado da disciplina Seminário de Documentação Literária, que Heloisa e Carlos Alberto ofereceram na Faculdade de Letras um ano antes. No lugar das aulas tradicionais, a dupla recebia, na universidade, artistas e intelectuais para discutir as “patrulhas” a que Cacá Diegues aludira numa entrevista ao Estado de S. Paulo, depois reproduzida com estridência pelo Jornal do Brasil. Em meio ao trabalho de divulgação de Chuvas de verão, o cineasta criticava “os intelectuais que, em nome de partidarismos ideológicos, tentam impor um tipo de censura à liberdade de expressão” (Hollanda, 1980, p. 7). No livro, os depoimentos colhidos na universidade se misturam a outras entrevistas e textos de origens diversas, flagrando um momento cujos ecos, nos anos 2020, ainda não foram devidamente avaliados.

“Aventuro-me, com a maior irresponsabilidade, em linguagens desconhecidas”, escreveria Heloisa, na década de 1990, ao avaliar aquele momento. “Experimento ficar dentro e fora da universidade”, prossegue ela, “articular estes dois espaços, trabalhar as possibilidades mínimas de intervenção que ainda nos sobram”. Neste movimento, as aulas tornam-se o que ela chama de “laboratórios experimentais”, resultando em roteiros ou curadorias de exposições. O objetivo, descreve ela, era “tornar o espaço acadêmico um espaço de interpelação e discussão das formas e meios de produção cultural” (Hollanda, 1980, p. 7, 2009, p. 55-56).

2.
Ao definir, meio na galhofa, meio a sério, a própria atividade como “biscate” — bico, trabalho avulso —, Heloisa associa o trabalho intelectual à ideia de uma economia informal justamente num momento em que, após reformas burocráticas e pedagógicas, a universidade se consolida como o mercado formal por excelência do intelectual clássico. Como todo mundo que se vira, uma biscateira encontra formas variadas de sobreviver numa precariedade, em geral, compulsória. Ainda que, na metáfora de Heloisa, o perrengue seja voluntariamente abraçado, ele também é consequência direta de um inapelável empobrecimento simbólico do país.

“Enquanto nosso produto interno bruto atinge recordes de aumento, o nosso produto interno cultural estaria caindo assustadoramente”, observava Zuenir Ventura em Vazio Cultural, o polêmico artigo que, publicado em 1971 na revista Visão, pinta com tintas fortes um ambiente intelectual carcomido por censura, exílios, conformismo, consumismo (Ventura; Gaspari, 2000, p. 40). Esse é o momento propício para que Heloisa, reafirmando o que chamaria de “favorecimento do exame das descontinuidades, fraturas e contradições, expressas ou latentes, nos discursos intelectuais e artísticos”, passe a buscar “formas de produção política alternativa que parecem resistir ao vazio cultural do período pós-68” (Hollanda, 2009, p. 57).

Capa do periódico retirada do Acervo Vladimir Herzog
Capa do periódico retirada do Acervo Vladimir Herzog

Naquele momento, a sala de aula estava longe de ser um ponto de vista privilegiado para divisar novas formas no vazio. A estreiteza constitutiva dos cânones dificultava ainda mais a tarefa para uma professora de literatura que começava a perceber, aqui e ali, toda uma produção poética que passava despercebida a censores e revolucionários — frívola aos olhos dos graves e, mais do que grave, cifrada, quase incompreensível, aos olhos dos frívolos. As obras e as formas de circulação alternativa delas, cena que se consagraria como “poesia marginal”, eram, aos olhos de Heloisa, “território privilegiado do testemunho de uma experiência social jovem sob forte controle da censura e do aparato político-institucional então vigente” (Hollanda, 2009, p. 57).

Um novo objeto de análise, é bom lembrar, só se constitui a partir de um sujeito aberto a mudanças, a reconfigurações. Nos melhores casos — como acontece aqui — sujeito e objeto parecem se moldar reciprocamente: poético e político mudam de lugar, se amalgamam, se aproximam e se afastam quando escrutinados por uma leitora que, por sua vez, abriu mão do lugar em que se instalara e que, em última instância, lhe dava identidade. O desenho dessa relação — dinâmica e, muitas vezes, confusa — dificilmente surgiria em artigo acadêmico, dissertação ou tese. A análise vai se configurar nos domínios livres do ensaio, que Roland Barthes definiria como um “gênero incerto em que a escritura se rivaliza com a análise”, ou seja, uma forma tão serpenteante como os raciocínios que se dispuser a expressar.

É precisamente num ensaio — “Nosso verso de pé quebrado” — que vêm a público, não no circuito acadêmico, mas numa revista de interesse geral, a Argumento, as primeiras impressões de uma professora que passara a frequentar menos livrarias do que “eventos e reuniões” da “geração do mimeógrafo”. Na poesia de dicção coloquial, irreverente na barafunda de referências e quase sempre publicada de forma autônoma, à margem do mercado editorial formal, configura-se um objeto estranho e, de alguma forma, indomável pelas estratégias analíticas consagradas.

“(…) os critérios propriamente literários de avaliação passam para segundo plano, e nos defrontamos com um fenômeno que tem, sobretudo, valor de atitude. Neste caso, estar fazendo poesia é mais importante do que o produto final”, escreve ela e Cacaso. “Esta atitude ambígua consolida, no plano ideológico, a necessidade vital de retomar a criação de não se deixar paralisar pelos esquemas paralisantes, de resistir”, prossegue, “essa poesia dispersa é muito mais uma busca de reconhecimento e identidade, maneira precária de dizer que estamos vivos, do que um acontecimento ‘literário’” (Cacaso, 1997, p. 54).

Em fundo e forma, creio estar aqui um ponto de inflexão — o instante decisivo em que, sem abandonar sua origem e formação, a professora de Letras, função cada vez mais associada diretamente à crítica literária, dá lugar a um tipo de intelectual ainda em formação: o crítico cultural. Aquele ensaio inaugural reconhece, como princípio, que os “produtos poéticos” não devem ser tratados com condescendência — “não podem ter sua legitimidade preestabelecida, o que seria uma atitude de tolerância tão discutível quanto as exigências de perfeição formal”. E aponta para uma compreensão mais ampla de sua natureza: “essa dificuldade de se emitir qualquer juízo de valor mais definitivo não é um fato restrito apenas ao campo da poesia, mas tem a ver com a avaliação de qualquer atividade criadora que, no momento atual, apresente características de autonomia” (Cacaso, 1997, p. 55).

Assim, se explica melhor o que muda a partir de 1974, quando Heloisa diz que o modelo da universidade “não dá pé”. Em sua pesquisa, a professora abre mão dos estudos monográficos que, naquele momento, costumavam marcar as carreiras em Letras — pontuadas por especialistas em determinados autores — e ainda dominada pela vigência infindável do modernismo. Às leituras verticais, detalhadas, ela passa às horizontais: travellings, em que autores, teorias, épocas e modas se montam e remontam em paisagens complexas, que só se delineiam a uma distância de difícil calibragem — nem perto demais do objeto, nem demasiado longe dele.

A crítica cultural é menos uma tomada de posição do que um gesto. Ela não instaura um ponto de vista do qual pretenda decodificar o mundo, mas participa ativamente de sua formulação. O exemplo inaugural deste tipo de intervenção — comentário inseparável da ação — é a publicação de 26 poetas hoje. Se a organização de antologias seria a prática mais frequente na carreira de Helô — se estendendo até os anos 2020, também no domínio do ensaio —, as outras atividades da biscateira caminhavam na mesma direção. Para o crítico cultural, o mais importante não é o edifício do prestígio e da autoridade, mas o gesto — rápido e rasteiro, muitas vezes efêmero. Nesta leveza e rapidez está sua força. E sua vulnerabilidade.

3.
A autoridade da crítica cultural é instável por definição, pois depende de complexa equação em que o desembaraço dos protocolos de interpretação e a variedade das formas de expressão e intervenção não resultem em dispersão ou dissolução. Uma das formas de compreender esse equilíbrio turbulento é o tripé de fatores que, para Christy Wampole, são os pressupostos de um ensaísmo consequente: estabilidade pessoal, estabilidade tecnocrática e instabilidade social. Os dois primeiros termos dizem respeito à biografia e à vida social desses críticos, que, para se manterem, devem dispor tanto de meios financeiros quanto de capital simbólico. O terceiro fator, o dado de instabilidade, é tudo aquilo que instiga a análise e a intervenção. Trocando em miúdos: o intelectual público que prefere a aventura à rotina e se arrisca a flagrar o que Wampole chama de “dinâmica social volátil” não pode prescindir de ancoragem material ou simbólico-institucional (Wampole; Pires, 2018, p. 247).

Susan Sontag encarnaria à perfeição esse tipo de intelectual na dinâmica peculiar da arena pública norte-americana. Nascida em 1933, seis anos antes de Heloisa, Sontag estreia na vida literária como ficcionista, publicando, aos 30 anos, O benfeitor, romance coalhado de experimentalismos inspirados pelas vanguardas europeias. Em 1965, ela encerrava uma acidentada história universitária, com passagens por Harvard e Paris e um doutorado inconcluso, para se dedicar, em tempo integral, ao ensaísmo — e, logo, a outras formas de expressão.

Se a estabilidade pessoal ainda era um horizonte distante, a estabilidade tecnocrática se consolidava nos competitivos meios intelectuais novaiorquinos — intelectual e acadêmico ainda não eram sinônimos, e o complexo ecossistema de revistas como Partisan Review, Evergreen Review e Aspen dava lastro a uma espécie de Ivy League ao rés do chão. Nas páginas desses periódicos, Sontag publicaria, pela primeira vez, ensaios decisivos como “Notas sobre o camp”, “Contra a interpretação” ou “A estética do silêncio”. No final da década de 1960, o ativismo político resultaria em viagens ao Vietnã, e a inquietação intelectual conduziria à direção de Duet for cannibals, longa de ficção experimental que abriria caminho a três outros filmes. Sontag também se dedicaria ao teatro (dramaturgia e direção) e, nos anos 1990, voltaria à ficção, tendo vencido o National Book Award pelo romance Na América (1999). A intelectual livre que foi Susan Sontag se legitimava a partir das posições consolidadas no mercado jornalístico e editorial — base para todo tipo de experimentação.

No Brasil sob a ditadura, um ambiente de pura instabilidade social, Heloisa desfrutava dos dois fatores de estabilidade. Do casamento, herdaria o sobrenome de peso patriarcal ao qual renunciaria nos anos finais. Na universidade, mesmo sob ameaças do regime, encontrava respaldo institucional e, nas aventuras intelectuais, a fiança de um eminente orientador: o professor Afrânio Coutinho, desde 1962 membro da Academia Brasileira de Letras. Para ganhar autonomia, a intelectual livre que foi Heloisa Teixeira tinha que se manter aterrada à instituição. E assim o fez por toda a vida, numa estratégia de estar “dentro e fora” — dissidência e mainstream —, que culminaria, não sem provocar estranheza, com a eleição para a ABL, onde entraria como Heloisa Teixeira, assumindo o sobrenome da mãe. O gosto pela deriva, que ela cultivava e lhe conferia personalidade, não se sobrepôs aos movimentos estratégicos que evitariam a dissolução. Da edição, no circuito comercial, de uma poesia que circulava mimeografada à criação de uma autoexplicativa Universidade das Quebradas, o verbo que Heloisa melhor conjugava não era romper, mas tensionar.

4.
Na introdução a Patrulhas ideológicas, Heloisa observa que Sartre e Gramsci são as referências para o debate que se estabelece sobre a função do intelectual num Brasil que tateia caminhos para o fim da ditadura. O intelectual “engajado” sartriano e o intelectual “orgânico” gramsciano pairam sobre “os conceitos que regem, de além-mar, o horizonte teórico do projeto político-cultural dominante em segmentos expressivos da intelectualidade brasileira” (Hollanda, 1980, p. 11). Em sua avaliação, a herança de 1968 resulta, pouco mais de uma década depois, num debate que elege como prioridades “os aspectos talvez menos excitantes da discussão”: “a autonomia criativa do artista, os cerceamentos moralizantes e ‘religiosos’ do dogmatismo ideológico, as perdas e ganhos da relação Intelectual/Estado e assim por diante”. Em seu propósito documental, o livro organiza os principais temas daquele momento: “função e política do intelectual”, “arte e engajamento”, “arte e revolução”, “formação e trajetória do intelectual” e “determinações de mercado e projeto criador” (Hollanda, 1980, p. 10).

O que se interroga é, portanto, o lugar do intelectual clássico em relação a instâncias de organização e poder — quem e como transige com a ditadura, quem e como se opõe a ela, quais as formas de pertencimento ou caminhos de dissidência em relação às lutas organizadas pela democratização. A intervenção de Heloisa, nesse momento, não se pauta pela tomada de um partido e, bem entendido, tampouco pela defesa de uma quimérica “imparcialidade”. Assim como 26 poetas hoje, Patrulhas ideológicas faz parte de um trabalho que, em retrospecto, ela chamaria de “mapeamentos cognitivos”. A expressão, que diz ter “roubado” de Fredric Jameson, serve à perfeição para definir uma modalidade de crítica cultural que ela exploraria nas décadas seguintes com irretocável lógica assistemática (Hollanda, 2009, p. 50).

O “mapeamento cognitivo” que Heloisa faz das escaramuças entre patrulheiros e patrulhados bota na mesa a hipótese, pouco óbvia, de que talvez seja preciso abandonar essa e outras disputas de posições e a busca por soluções unificadoras para agir no miúdo, “na realidade do mercado da produção cultural”. Trata-se de um ambiente inóspito para todo tipo de idealização, posto que “fortemente orientado e controlado pelos interesses de uma indústria cultural com evidentes vinculações com o capital internacional”. Intervir na arena pública é menos fazer prevalecer um juízo sobre as divergências do que se esforçar para exibi-las em tensão, abrindo caminho para soluções provisórias e ações que se alimentam das impurezas indiscerníveis da produção de conhecimento.

Em 1993, ao examinar as “representações do intelectual”, Edward W. Said lembra as fissuras históricas na imagem moderna deste personagem, forjado na França do século XIX a partir do inflamado debate nacional sobre o “caso Dreyfuss”. Quando Émile Zola publica o Eu acuso!, carta-aberta ao presidente da França, nasce o intelectual público, aquele que pausa suas atividades específicas para, na arena comum, assumir responsabilidades coletivas. “Tampouco existe somente um intelectual público”, observa Said, “alguém que atua apenas como uma figura de proa, porta-voz ou símbolo de uma causa, movimento ou posição” (Said, 2005, p. 26).

Numa rápida menção a James Baldwin, Said destaca a concepção, tão cara ao autor de O quarto de Giovanni, do intelectual que se desinveste da função de porta-voz (de uma causa, de um povo) em favor de agir como uma testemunha – “O porta-voz presume que está falando pelos outros. Eu nunca presumi isso – e nunca presumi que poderia fazer isso”, diria Baldwin em entrevista ao escritor e ativista Julius Lester. O intelectual como testemunha, lembra Said, está associado a um impulso documental vinculado à uma “obstinação na erudição”, resultado de intensa atividade de “rastrear fontes alternativas, exumar documentos enterrados, reviver histórias esquecidas (ou abandonadas)” (Said, 2005, p. 17).

A “obstinação na erudição” — ou “erudição implacável”, na tradução do inglês — é invocada por Michel Foucault como um dos nortes do paciente trabalho da genealogia, ponto de vista a partir do qual a história abandona qualquer pretensão à placidez do sentido, “como se esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias”. Do genealogista se espera “a minúcia do saber, um grande número de materiais acumulados” e a reconstrução do olhar crítico:

Marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá−los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história − os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram. (Foucault, 1985, p. 15)

O intelectual como testemunha reúne, organiza, monta, desmonta e remonta documentos de procedência a configurações variadas – jornalismo, artes visuais, literatura, teatro, fotografia, cinema – e com eles constrói dissidências das narrativas dominantes. Este perfil do intelectual com genealogista é desempenhado pelo que podemos chamar de crítico cultural – justo por alguém que, como Heloisa, pode se interessar por literatura, cinema ou teatro e não se fixar como comentador exclusivo de uma ou outra forma de expressão, pois o que a ele interessa não é o objeto em si, mas a relação entre os diferentes objetos.

Premiado com um Pulitzer, em 2017, pelo conjunto de críticas de teatro publicadas na New Yorker, Hilton Als é bom exemplo contemporâneo, na especificidade norte-americana, deste tipo de intelectual. Ao definir-se como “crítico cultural”, atuando em âmbito não necessariamente acadêmico — e, eventualmente, na universidade —, Als vai além de uma simples mudança semântica ou de capricho editorial de uma publicação específica. Hoje, Als combina a escrita ensaística — em seu caso, sempre misturada ao jornalismo — com curadorias de exposições que reiteram, por outros meios, suas mais recorrentes inquietações intelectuais. Dois autores que lhes são caros, James Baldwin e Joan Didion, estiveram no centro de mostras que ampliam as análises para além da escrita. Como vimos anteriormente, sujeito e objeto aqui estabelecem uma relação dinâmica, plástica, um moldando o outro, como ele mesmo observa:

Sempre estamos lidando com estética em algum nível. No fim das contas, tudo isso são diferentes tipos de linguagem, e você precisa entender qual linguagem é apropriada para o evento ou ideia. Então, você está lidando com o lugar onde a linguagem se encaixa melhor. Seja numa sala de aula ou num texto, você está lidando, no fim, com o impulso de comunicar algo. E eu acho que, quando você tem esse impulso, você está lidando com um mundo alegre e acolhedor, porque há todas essas oportunidades de se expressar. Quero dizer, é quase um embaraço das riquezas. Ou, eu diria, um embaraço das oportunidades.[1]

A essas atividades, Heloisa estenderia ainda outra intervenção: a de editoras de livros, inicialmente na direção da Editora da UFRJ e, logo depois, na Aeroplano, onde, no início dos anos 2000, dedicaria uma coleção pioneira às escritas da periferia. A ideia de curadoria presidiria a ainda o Portal Literal, híbrido de acervo de escritores como Rubem Fonseca e Zuenir Ventura e de revista literária, expressivamente batizada Idiossincrasia.

5
Ao lembrar Josefina Ludmer, a poeta e crítica Tamara Kamenszain evoca a distinção entre “a crítica literária como discurso específico sobre um autor ou uma obra” e o que a formuladora do conceito de “literaturas pós-autônomas” entendia como “ativismo cultural”: um tipo de reflexão “que também quer ser ação, que quer intervir”. Para Ludmer, lembra Kamenszain, a especificidade da crítica literária tradicional estaria “vencida”. A posição, tão similar à de Heloisa, suscitava, na Argentina como no Brasil, reações acerbas — às quais Ludmer costumava responder: “Daqui a pouco passa, é que eles devem estar com medo de perder sua lojinha” (Kamenszain, 2020, p. 50).

A ideia do crítico como proprietário de um pequeno negócio, de lucros e ambições modestos — podemos aqui imaginar lojinhas temáticas, dedicadas a um autor ou a aspectos muito específicos deste autor — se contrapõe à informalidade do “biscateiro”, menos estável, porém mais leve e dinâmico em seus interesses temporários, comentários específicos e intervenções pontuais. Não por acaso, tanto o comentário jornalístico de Ana Maria Bahiana (“guerrilheira cultural”) quanto a ideia de Josefina Ludmer (“ativismo cultural”) apontam para o traço intrinsecamente político deste tipo de intervenção.

Pensar no legado de Heloisa Teixeira hoje é, como ela mesma previra nos anos 1970, pensar menos numa obra ou em conceitos aplicáveis a este ou aquele objeto do que numa atitude estratégica. O que está em jogo é, desde sempre, tensionar as relações de poder entre instituição e autonomia intelectual, exigências formais e alcance analítico do texto, consistência e leveza na especulação, entre política e desentendimento.

* Paulo Roberto Pires é jornalista, editor da Serrote, colunista da Quatro Cinco Um e professor da Escola de Comunicação da UFRJ.
Referências bibliográficas
BAHIANA, Ana Maria. Heloisa ataca nos biscates culturais. Jornal do Brasil, Revista de Domingo, 9 dez. 1979.

BALDWIN, James. James Baldwin: The Last Interview and Other Conversations. New York: Melville House, 2014.

CACASO; HOLLANDA, Heloisa Buarque. Nosso verso de pé quebrado. In: CACASO. Não quero prosa. Rio de Janeiro/Campinas: Editora da UFRJ/Editora da Unicamp, 1997.

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

HOLLANDA, Heloisa Buarque; PEREIRA, Carlos Alberto M. Patrulhas ideológicas marca reg. – Arte e engajamento em debate. São Paulo: Brasiliense, 1980.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. Escolhas: Uma autobiografia intelectual. Rio de Janeiro: Língua Geral/Carpe Diem, 2009.

KAMENSZAIN, Tamara. Libros chiquitos. Buenos Aires: Ampersand, 2020.

SAID, Edward W. Representações do intelectual: As conferências Reith de 1993. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

VENTURA, Zuenir. O vazio cultural. In: GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloisa Buarque; VENTURA, Zuenir. 70|80 Cultura em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. p. 40-51.

WAMPOLE, Christy. A ensaificação de tudo. Tradução de Paulo Roberto Pires. In: PIRES, Paulo Roberto (org.). 12 ensaios sobre o ensaio: antologia serrote. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2018.
Notas
[1] Entrevista disponível em https://curator.guide/hilton-als.
Dossiê
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ELOGIO À AMIZADE

Thema Regium (Tema do Rei) da Oferenda Musical de Bach.
Thema Regium (Tema do Rei) da Oferenda Musical de Bach.

Modulações investe no exercício de transformar inspiração em reflexão. Ao longo da série, seleciono trechos de biografias, vivências, etnografias, literatura, entrevistas e outras expressões escritas, mas também pensamentos, desabafos, protestos e outras manifestações da oralidade que, de alguma maneira, tocam uma corda no meu ser. São pontos de partida, impulsos que me propelem a examinar e, com sorte, ampliar certas ideias e dar à consciência crítica o sentido que lhe confere Elena Mustakova-Possardt (Critical Consciousness: A Study of Morality in Global, Historical Context, 2003): um modo de ser que une coração e mente.

Começo esta nova série de colunas na Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) com uma escolha clara que me permite modular sobre a força da amizade. Destaco o livro recém-publicado Helô Teixeira: crítica como vida. É uma homenagem de André Botelho e Caroline Tresoldi à intelectual, figura pública, que encarou e ainda encara de tudo na vida: Heloisa Uma-vez-Buarque-de-Hollanda Teixeira. O livro é a proclamação de uma amizade longa e facetada que muito me inspira a encetar uma jornada de modulações ou variações sobre um determinado tema. Ao ler o livro, ou antes, quando soube que seria escrito em três meses (como realmente foi), por solicitação da própria Helô, me veio à mente, como numa sinapse instantânea, a história de Oferenda Musical, o monumento sonoro de J. S. Bach. Ambas as obras são produto de apelo e dádiva, no sentido maussiano. Ambas retornam a cortesia. Ambas são cativantes. Mas as semelhanças param aí.

Em 1747, com Bach já sexagenário, Frederico II da Prússia propôs-lhe um desafio: expandir uma simplória frase melódica de sua autoria o Thema Regium que julgava tarefa impossível. Quinze dias depois, Bach devolve o insulto na forma de oferenda (ou sacrifício?), contendo um magnífico labirinto de ricercare, cânones e sonata com duração de quase meia hora. Bach compôs a peça, não exatamente por amizade, mas para retribuir o desafio do rei. Se este nunca acusou o recebimento de tal presente, talvez por despeito, os séculos seguintes foram eternamente gratos.

Como gratos são os leitores de Helô.

Assim como Bach demonstrou com a sublime resposta ao desafio do rei, ouvir Oferenda Musical e ler Helô são ocasiões de expansão cognitiva e sensorial. Bach deflagrou uma torrente de meia hora de harmonia e beleza. André e Caroline revelaram, numa casca de noz (in a nutshell), a trajetória de uma jovem tateando uma vocação para chegar à intelectual madura, crítica, arrojada e muito dona de si.

Não é um festschrift como tradicionalmente o conhecemos, ou seja, uma coleção de autores diversos que podem, ou não, ter a pessoa homenageada como objeto de seus textos. Também não é uma antologia propriamente dita, pois não reúne obras da homenageada. A dupla de autores converge num só propósito e a soma de ambos gerou a obra singular que é Helô. Diz a Wikipédia sobre festschrift: “Na Alemanha, considera-se uma honra ser designado a preparar uma coleção. Se o pesquisador homenageado escolhe uma pessoa para fazer este trabalho, pode também significar que o escolhido é o seu sucessor por vocação”! Como estamos no Brasil, tal escolha vem acolchoada numa terna camada de amizade que vai muito além da apreciação intelectual.

Ou seja, o livro Helô é uma ode à amizade, um dos sentimentos mais nobres e duradouros no nosso mundo e em outros (lembro-me da instituição do amigo formal entre os Krahô e outros povos de língua Gê, tão ou mais importante que o parentesco). É uma oferenda, cujo único sacrifício foi a façanha de a produzir em tempo recorde. Uma oferenda de afeto: André e Caroline brindando Heloisa com Helô, utilizando aquilo que melhor os define, a escrita. Pela via intelectual, os autores atingem o alvo: um hino à amizade e à admiração. Então, por que não um subtítulo do subtítulo?: Crítica como afeto.

É verdade que o objeto-tema-propósito do livro é muito apropriado para um elogio à amizade. Helô-livro e Helô-mulher se confundem e misturam num só elemento na pena de André e Caroline. Cada um a seu modo, faz Helô-Helô reverberar na vida desta leitora.

Heloísa Teixeira.
Heloísa Teixeira.

Temos muitos exemplos de dedicatórias, como Beethoven em Für Elise. Ou Jorge Luis Borges numa infinidade de contos. Mas é um privilégio especial ser ao mesmo tempo destinatária e tema de uma obra. Isto é Helô!

Como Heloisa Teixeira, baixei nos Estados Unidos no início dos anos 60. Como ela, vivi aquela alteridade como substância de transformação. Lá aprendi a sair do casulo da primeira juventude, acanhada e ingênua. Já não tinha mais o luxo de me ancorar na inocência e, então, a vida começou para valer. Assisti ao despertar político no campus universitário norte-americano. Não aderi ao feminismo, mas convivi com protestos contra a guerra do Vietnã, com sit-ins, brownbag gatherings, shows de Pete Seeger e Joan Baez, com o movimento free speech e outros atos de rebeldia. Também eu experimentei o “sem chão” que leva a uma carreira cada vez mais independente de ideias recebidas que tolhem a sensibilidade e a visão livre de antolhos.

Assim, leio em Helô aventuras existenciais muito parecidas com as minhas, no processo de amadurecer profissionalmente, sem falar dos atropelos misóginos plantados ao longo do caminho de mulheres com vontade própria.

Aqui não esmiúço o conteúdo do livro à moda de resenha. Ao contrário, focalizo o gesto de fazê-lo, um gesto que inspirou em mim o desejo de me deixar embeber pela sensibilidade e sabedoria alheias, por ideias que, moduladas do meu jeito, me fazem crescer aos meus próprios olhos. De quebra, levanta algumas considerações acadêmicas. Para ser fiel à minha vocação de antropóloga, mudo agora de óculos e examino amizade como vista pela academia.

A secura e aspereza da análise antropológica pode transformar a amizade em sentimento quase espúrio. Ao saltar do pessoal para o social, faz dela um dispositivo de barganha. Vejamos o que diz Eric Wolf. Esse clássico da antropologia norte-americana dedica duas páginas de um capítulo (traduzido por um certo jovem aluno da UnB chamado Ítalo Moriconi) do livro de 1966, The Social Anthropology of Complex Societies. Ali Wolf divide o fenômeno amizade em dois tipos: amizade expressiva ou emocional e amizade instrumental. Passível de tipificação, a amizade transforma-se em recurso social para atingir certos fins. Está estreitamente associada a reciprocidade, um dos conceitos centrais do que dizem ser a “teoria” antropológica. E aí os dois tipos wolfianos se juntam para maior eficácia, pois para a amizade instrumental funcionar, é preciso que seja expressiva ou emocional. Como ele diz, “um elemento mínimo de afeto é sempre importante na relação. Se não está presente, deve ser fingido” (minha ênfase). Mais adiante, “se um favor não é atendido, a relação é rompida e é aberto o caminho para um realinhamento dos laços de amizade… Um desequilíbrio na relação automaticamente a rompe”. Deveras instrumental! Deveras gringamente pragmático! E assim, a sangue frio, constroem-se etnografias, por vezes tornadas clássicas, sobre o notório Outro (no caso de Wolf, esse Outro eram os indígenas e ladinos de Chinautla, Guatemala).

Em outra frente, nem científica, nem literária, a vulgaridade a que está exposto o vocábulo “amigo” tem seu auge nas redes sociais. A ilusão de ter “um milhão de amigos” rouba desses usuários a rica vivência de uma genuína amizade e faz com que, não sentimentos, mas meras sensações ralas, opacas, insubstanciais, flutuem livremente pelo ciberespaço como zumbis feitos de miragens.

Mudo novamente de óculos e volto a ver, agora com mais nitidez, a amizade como a irradiação da empatia, da plenitude existencial, da solidariedade inconteste, da discordância na concordância que, como um ímã, acaba atraindo novos amigos feitos do mesmo material, ou seja, gente de carne e osso, de coração e mente.

Amizade é como o parentesco sem amarras. Mas não deixa de ter seus próprios esteios, seja numa história de interesses comuns, seja num instantâneo reconhecimento recíproco. Há que alimentar uma amizade, como se alimenta o próprio corpo e qualquer outro organismo vivo. Nutrir uma amizade é alimentar aquele órgão invisível responsável pela capacidade de entrega mútua, simétrica, compassiva. Neste sentido, Helô é um banquete!

Os amigos esperam, dia e noite, os novos amigos.
Vinde! É tempo! É tempo!
Friedrich Nietzsche (Além do Bem e do Mal)

Post scriptum

No dia 18 de fevereiro de 2025, Heloisa Teixeira e eu tivemos a primeira e única conversa. São suas estas palavras, formato WhatsApp:

alcida querida, aqui é Helô, o “objeto” do Andre e da Carol. Que texto incrível o seu! A perspectiva q vc pegou é surpreendente! pega pelo pé. E, ao mesmo tempo, teoricamente sustentavel e novissima. fiquei pensando na sua entrada inesperada no Helô e tb sentindo um calor gostoso no coração. tem leitura melhor? parabens!

Respondi:

Nossa, Helô!
Isso era tudo que eu queria: agradá-la.
Ficava lendo sobre sua vida e lembrando da minha em Madison, Wisconsin. E lembrando também de pessoas que me perguntavam se eu conhecia Heloisa Buarque de Hollanda, e eu só conhecia de nome.
Escrever essa coluna ‒ ela também uma oferenda precipitada por uma insinuação do André ‒ foi como, finalmente, conhecê-la em pessoa.
Muito obrigada, Helô.
Grande beijo,
Alcida

E Helô:

Eu sempre te espiei de longe … O bom é q agora nos tornamos amigas de infância ou, como diz minha neta, BFF (best friends forever)

* Alcida Rita Ramos é professora emérita da UnB e referência nos estudos sobre povos indígenas, em especial os Yanomami. Graduada em Geografia pela UFF e doutora em Antropologia pela University of Wisconsin, desenvolve pesquisas sobre indigenismo na América do Sul e a questão indígena em diálogo com as distopias urbanas ocidentais.
Dossiê
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Tempo de leitura estimado: 37 minutos

AS ANTOLOGIAS DE HELOISA: O CÂNONE E O NOVO

Heloisa Buarque de Hollanda, verbete de enciclopédias, dicionários, bibliografias nacionais e internacionais, é referência fundamental em nossas pesquisas sobre literatura brasileira e estudos de cultura; relações entre arte e política; feminismo e, de forma muito especial, a poesia entre nós. Tornou-se uma intérprete privilegiada do Brasil dos anos 1970 a 2025. Transformou-se, ela mesma, em cânone da cultura brasileira, e partiu.

Respeito, admiração e reconhecimento dão sempre o tom quando a tomamos como fonte de pesquisa, ensaios, teses. Fica, porém, a dificuldade em combinar tal referencialidade com a inquietude, a busca pelo novo que atravessou sua vida acadêmica, suas pesquisas, suas formulações, além de certa irreverência, um modo desabrido de falar, que fez dela uma intelectual tão peculiar.

No início de 2023, a própria Heloisa sacudiu o ícone e se propôs a destruir a oficialidade do nome famoso. Ato surpreendente, porém coerente com toda a sua longa trajetória. Surgia a Heloisa Teixeira.

O uso da nova identidade se tornou definitivo quando, em 28 de julho de 2023, tomou posse na Academia Brasileira de Letras. Recebeu, naquele momento, o diploma de imortal das mãos do presidente da ABL já com o nome Heloisa Teixeira. Os colegas que tinham votado em Buarque de Hollanda levaram um susto, mas foi bom para se acostumarem.

Curioso como, apesar do problema que se punha para nossas bibliografias, rapidamente o novo nome se impôs. Heloisa recebia zaps, e-mails e até cartas de mulheres apoiando a nova persona. O último e festejado livro, que retoma pesquisa anterior revista, emblematicamente intitulado Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo (1960-1970), já foi publicado com a nova/mesma autoria: Heloisa Teixeira.

Feminista na teoria e na prática, encontrou na vida pessoal as razões para o desdobrar da identidade. Reconhecendo que o Buarque de Hollanda, herdado do marido, fora uma ajuda importante, um impulso no universo acadêmico, o que seria ingênuo negar, afirma que ao chegar aos 80 anos passara a ser um peso. Teixeira era o nome da mãe que não entrara na certidão.

Em entrevista, afirmou que Buarque de Hollanda tornara-se uma marca, não era mais ela. No convívio com feministas e com mulheres da periferia, especialmente mulheres negras, aprendeu muito sobre a linhagem materna, a importância imensa da mãe, da avó, a ancestralidade feminina como referência. Disse Heloisa:

Aí eu fiquei com uma vontade de resgatar a mãe tão violenta, que falei, tá na hora de mudar de novo. Joguei também meu pai para escanteio e virei Heloisa Teixeira, que é uma coisa que me dá muito conforto. [1]

Naquele momento, quando dissemos a ela que o novo nome era mais uma recusa do cânone, apressou-se em dizer que não era bem assim, era mais complicado. Eu acabara de apresentar um paper em congresso, caracterizando-a como uma intérprete do Brasil que se colocava sempre contra o cânone, mas a tal intérprete, mesmo tendo gostado da argumentação exposta, me disse não ser contra o cânone. Lembrei que André Botelho e Caroline Tresoldi, em Helô Teixeira: Crítica como vida, afirmavam que “a rebeldia de Helô em relação aos cânones não é nenhuma novidade” (Botelho e Tresoldi, 2024. p. 130), mas fiquei decidida a pensar melhor que, no campo da literatura, era uma situação que me parecia paradoxal: uma antologista ser contra o cânone.

Passada certa implicância com a trabalheira que substituição de um nome por outro estava dando, fui percebendo que também aí não se tratava apenas de recusar o nome do primeiro marido, mas de uma recomposição da filiação, uma valorização do nome que não importara por todos os anos de vida. Também em entrevista a ser publicada, Helô falou que após a adoção do Teixeira passara a ver a imagem da mãe como um “pentimento”, “você tira uma camada e aparece outra” (bonito!), numa viagem que para ela ainda não tinha parado.

Daí em diante, conversamos várias vezes sobre sua relação com o nome e com o cânone. A questão da presença/ausência da mãe era complexa e, sim, havia uma certa vingança feminista. Mas a questão do cânone literário, evidentemente, merecia reflexão mais demorada. Nossos últimos encontros, já em abril, foram dedicados aos dois temas com conversas que partiram do fato de Heloisa ter sido homenageada com medalha importante do Conselho de Eméritos da UFRJ a ser recebida em cerimônia elegante. Quando perguntei se ia querer ir, garantiu que sim, que estava feliz, e que se não pudesse receber pessoalmente eu ia ter que ir por ela. Fiquei um tanto espantada com a reação de quem sempre dizia não gostar dessas coisas, e pouco depois acabei tendo mesmo que substituir a amiga que já hospitalizada.

Como foram iluminadoras tais conversas sobre a questão do cânone e como aprendi! O episódio da medalha evidenciava que o tema do cânone se ligava inevitavelmente ao da universidade, obsessão, sob diversas formas, da vida de nossa autora. Na relação de dedicação e crítica, a sua própria universidade, também se revelava a complexidade dessa intelectual absolutamente original que, já Professora Emérita, dizia: “não sou acadêmica”.

Para nós, de Letras, em especial, os grandes debates sobre função, limitação, inevitabilidade dos cânones literários se deram sempre junto com discussões de currículos, de disciplinas, da própria vida universitária e da necessidade de renovação, democratização e a abertura para o conjunto da sociedade que tanto a preocupava.

O convívio com listas e referências canônicas é inerente, de algum modo, à função do professor. Lidamos com bibliografias e indicações de leitura que, de algum modo, se filiam aos cânones vigentes. E, no caso do pensamento e da obra de Heloisa, a questão se torna ainda mais complexa pelo exercício de crítica da cultura e por ter, como sua obsessão permanente pela poesia no Brasil, criando antologias de forte repercussão.

O criador de antologia é sempre, de alguma forma, um elaborador de cânones, ainda que sua publicação só faça sentido se mexer com o cânone instituído, renová-lo. O organizador (curador?) pode ser mais radical e mesmo pretender destruir o cânone até então vigente, de algum modo, porém, haverá um diálogo do presente com o passado, mesmo se for para negá-lo com veemência.

Como intelectual, obras e posturas críticas de Heloisa foram marcadas pelo interesse permanente pelo contemporâneo, com todos os riscos em que isso implica, ao invés de mover-se no campo seguro do já consagrado. Capaz de identificar novas tendências antes mesmo de elas tornarem-se clara, buscou sempre o novo, não gostava de olhar para trás, como firmou:

Nunca olhei, não é de hoje. Nunca olhei, nunca olhei para trás. Você nunca viu uma coisa minha olhando p trás, nenhum trabalho. Olhando para trás, não. Eu não olho porque é uma certa viagem, não é nem porque não queira. (Arijón e Rezende, 2019. p.120)

Tal decisão, a de olhar sempre para a frente, fundadora de sua carreira, manifestou-se em diversas realizações: curadorias, trabalho de edição, ensaios produzidos ao correr dos anos, na ação dentro da Universidade Federal do Rio de Janeiro criando centros de pesquisa, em antologias de textos teóricos e, é claro, nas de poesia.

Proponho, então, releituras desses volumes sob a ótica da relação perigosa que instituíram com os cânones.

O surgimento, já radical e polêmico, de Heloisa, ainda Buarque de Hollanda, como antologista deu-se em 1976. Deixara a Faculdade de Letras da UFRJ para ajudar a criar a Escola de Comunicação (ECO/UFRJ), afastando-se do sólido percurso como professora de Literatura Brasileira, para participar de uma nova unidade e dedicar-se sobretudo ao que chamamos de crítica cultural. Mas nem ela deixa a literatura, nem os estudos literários a deixam, buscando na autora, sempre, leituras inovadoras e não contaminadas pelo que já fora absorvido, o que havia se incorporado aos currículos dos cursos de Letras, ao reconhecido e tantas vezes repetido.

É nesse momento que se inicia a relação que me pareceu paradoxal: buscar o novo significava questionar o que era considerado fundamental, importante e insubstituível, naquele momento, em matéria de poesia, mas significava também indicar outras possibilidades de criação, as que fariam parte da nova antologia.

No entanto, não se tratava de fácil movimento de renovação, como fora derrubar o parnasianismo que rapidamente se tornara velho ou o gosto poético pelo simbólico. O cânone então era a excelente poesia que se seguiu ao Modernismo de 22, este mesmo um movimento iconoclasta que acabou se tornando canônico e presente em todas as antologias. Em 1976, tratava-se do último modernismo, a geração de 45, com destaque para a magnitude de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Vale lembrar que a organização dos estudos literários, sua crítica e história, é feita de uma sequência de cânones em que é sempre perigoso mexer para seguir adiante.

O evento com que Heloisa sacudiu a crítica, diria mesmo a intelligentsia acadêmica, foi o lançamento da polêmica antologia organizada a partir da identificação de 26 jovens poetas que iriam fazer parte do ficou conhecido como “poesia marginal”, a 26 poetas hoje, em 1976.

A seleção proposta foi um momento especial de manifestação do faro de Heloisa para o que estava surgindo, uma sensibilidade peculiar de perceber para onde sopram novos ventos, o que tais ventos levariam adiante. E usava para sacudir e renovar o cânone vigente o modelo favorito para a “canonização”: uma antologia. Na verdade, fui compreendendo aos poucos, assim foi sempre o movimento da nossa intelectual: mexer no cânone a partir da ideia de cânone, na universidade de dentro da universidade, no feminismo a partir do feminismo e assim por diante.

A marginalidade de que falava consistia não na origem social dos escritores, conotação que a expressão receberá posteriormente, mas no modo de produção adotado. Diante das dificuldades de publicação por editoras consagradas, surgira um circuito de criação e venda de livros de poesias independente. Eram textos rodados em mimeógrafos e vendidos de mão em mão, nos cinemas, em encontros ou reuniões estudantis.

Tais circuitos se constituíam em refúgios da cultura que vivia os anos repressivos da ditadura, que, naquele momento, começava a se modificar, mesmo continuando a prender e assassinar. Tempos ainda muito difíceis, mas com um leve sopro de otimismo aparecendo no ar.

A cultura percebia brechas de liberdade que não podiam ser desperdiçadas. A verdade, porém, é que as formas cotidianas e interpessoais de controle e pequenas dominações não eram percebidas como tal, especialmente quando ocorridas entre pares, na política, na academia ou entre homens e mulheres. Aqui me antecipo na relação entre produção artística e literária e a circulação de homens e mulheres, de brancos e negros no espaço da produção do saber. Voltarei a isso outras vezes.

É importante reler a apresentação à 26 poetas hoje, onde a organizadora afirma que poesia é “o artigo do dia”. E era. Cito-a, falando do que pretendera dentro do espaço nobre da poesia na primeira edição publicada:

Dentro da precariedade de seu alcance, esta poesia chega na rua, opondo-se à política cultural que sempre dificultou o acesso do público ao livro de literatura e ao sistema editorial que barra a veiculação de manifestações não legitimadas pela crítica oficial. (HOLLANDA, 1998. 2ª. ed. p.10)

Nesse prefácio, referindo-se ao corpus selecionado, aponta para a “desierarquização do ‘espaço nobre’ da poesia, tanto em seus aspectos materiais gráficos quanto no plano do discurso”. Tratava-se, assim, de uma poesia que descia da “torre do prestígio literário” e buscava uma atuação que “restabelecendo o elo entre poesia e vida”, restabelecia “o nexo entre poesia e público” (idem, p.10).

Em 1998, por ocasião da segunda edição, após anos de debate, reflexões e teses sobre o trabalho de 1976, comenta que o nome poesia marginal foi dado “sob protestos de uns e aplausos de outros”. E faz observação interessante em relação ao cânone, tema a que não se referira anteriormente:

…era uma poesia “não literária”, mas extremamente preocupada com a própria ideia canônica de poesia. Preocupação que se autodenunciava através de uma insistência sintomática em “brincar” com as noções vigentes de qualidade literária, da densidade hermenêutica do texto poético, da exigência de um leitor qualificado para a justa e plena fruição do poema e seus subtextos. (Idem. p.257)

Em 1976, Heloisa tinha afirmado que a subversão dos padrões literários dominantes era evidente. Naqueles poemas, o coloquial era retomado do movimento modernista de 1922, pulando correntes, mesmo as de vanguarda, “que se impuseram de forma controladora e repressiva no nosso panorama literário” (Idem, 11).

Estava comprada a grande briga que ia dos admiradores da poesia moderna mais erudita aos concretistas de São Paulo.

A verdade é que 26 poetas hoje deu visibilidade a poetas até então pouco conhecidos como Cacaso, que se tornaria o teórico do movimento mimeógrafo, e Chico Alvim, que já publicara o importante Sol dos cegos, mas estava longe do reconhecimento como o grande poeta que é. Curiosamente, foi com a poesia marginal que surgiram nomes hoje consagrados, canônicos, poderíamos dizer, como Afonso Henriques Neto, Zuca Sardan, Leila Micolis, além da mitológica e tão estudada Ana Cristina Cesar, incluída na seleção quando ainda era ainda aluna da PUC-Rio. Dos selecionados, dois se tornaram membros da Academia Brasileira de Letras: Antônio Carlos Secchin e Geraldo Carneiro.

Pouco depois do lançamento, em seguida a fortes críticas dos poetas concretos, que se pretendiam os únicos inovadores radicais, Heloisa é entrevistada pelo conselho da revista José, importante referência para a reflexão sobre literatura, no mês de agosto de 1976. Eram críticos – homens, é claro – que formavam a nata do pensamento sobre poesia nos anos 70: Luiz Costa Lima, crítico, Jorge Wanderley, poeta, e Sebastião Uchoa Leite, poeta e crítico. A entrevista, tal como reproduzida posteriormente em livro, é um documento antológico do momento vivido por uma jovem intelectual mulher e sua relação com os misóginos pares. Os editores eram pensadores de esquerda, opositores do autoritarismo, combativos mesmo. Mas eram o mesmo tipo de homens que, para citar episódio tornado célebre, diziam, no corajoso jornal de oposição O Pasquim, que o único movimento de mulheres que respeitavam era o dos quadris. Sobre a importante vinda da feminista Beth Friedman ao Brasil só interessou o que consideravam sua feiura.

Da entrevista, além dos editores citados e da “vítima”, participaram, a convite, dois poetas que faziam parte da antologia: Eudoro Augusto e Ana Cristina Cesar. Geraldo Carneiro também estava presente e colocou-se claramente ao lado dos “inquisidores”.

Para percebermos o tom dos machos-alfa daquele momento: logo no início, Luiz Costa Lima quer saber dos critérios para a seleção realizada pela autora. Sebastião Uchoa Leite afirma que não há uma proposta estética comum, mas sim uma proposta existencial comum; e mais adiante garante que na antologia “o grande assassinado é João Cabral”. Em determinado momento, Jorge Wanderley e Luiz Costa Lima travam diálogo que é termômetro do combate diante de um ataque ao cânone vigente.

O comentário dos editores que, cabe lembrar, tinham, eles mesmos, a convidado a falar, é implacável. Passo a citar a entrevista, que merece ser relembrada. (ARIJÓN e REZENDE, 2019. p.13 a 37)

JW – Há um ponto que vale a pena ainda discutir – se admitirmos por hipótese – que a antologia tenha uma unidade positiva.
LCL – Mas não tem, Jorge.
JW – está provado que não…

Para Heloisa – e aí está a grande perspectiva crítica inovadora – a unidade estava no comportamento antielitista, crítico dos conceitos de “qualidade”, tecnocrático, presente inclusive na universidade, e diz: “tentei inclusive neutralizar aquele namoro com a qualidade, próprio do antologista” (idem, p. 16). Era uma juventude que trocava o futuro pelo aqui e agora, afirma: “Nisso vem o sentido de imediatez, de festa, de liberdade sexual, que se nutre do momento sem futuro, de um momento que se cumpre na sua precariedade” (Idem, p.24). Nada poderia ser mais definidor dos anos 70.

Segundo a transcrição, Heloisa falou pouquíssimo e Ana Cristina teve uma intervenção ouvida e em outra teve a palavra cortada.

Luiz Costa Lima conclui longa fala dizendo:

(…) O que me parece importante é que a falta de programa é tão patente que não se pode sequer discutir. Eu perguntaria então se a inexistência de programa não implicaria numa ausência de reflexão crítica.
Ana Cristina – Eu discordo.
LCL – Sim, mas discorda de que?
ACC- Discordo em que a inexistência de programa tenha a ver com falta de reflexão crítica. (Idem, p. 32)

E muda-se de assunto.
Ao final, Jorge Wanderley afirma com certa maldade: “não se pode fazer um diagnóstico a partir desse registro que antologia é. Mas ela é um registro. Que aliás, deu muito certo comercialmente” (idem, p.37).

Na verdade, registrou o momento, só que foi muito além, terminou por mapear os rumos da poesia dali por diante. Até hoje, é comentado como a inovação da poesia de Ana Cristina Cesar e sua entrada no cânone contemporâneo estiveram sempre ligadas a sua descoberta pela professora.

Decididamente tratava-se de um combate contra o cânone vigente e mais ainda, para usar expressão que era cara ao professor Eduardo Portella, contra os “zeladores do cânone”.[2]

Nos anos 1980, a formação intelectual de Heloisa passa por importante virada, com a ida para os EUA representando novos contatos, novos horizontes críticos, novas epistemologias. Os movimentos sociais se reconfiguravam com a consolidação dos movimentos negro e feminista. Os Estudos Culturais, que tinham surgido no Reino Unido, eram incorporados às universidades americanas. Trata-se de mudanças que se iniciam com o chamado “multiculturalismo” e, impulsionadas pelos movimentos minoritários, irão promover tranformações radicais na intelectualidade e nas universidades americanas.

Heloisa, diferentemente da geração de professores que nós, que fomos seus alunos, tivemos, não teve uma formação europeia, geralmente francesa. Apesar de evocar frequentemente Bakhtin, Benjamin e Barthes como influências, suas experiências no exterior foram sempre relacionadas às universidades americanas, seja nos estudos pós-graduados seja como professora.

Ao falar de sua formação, sempre fala da importância de seu estágio de pós-doutorado na Columbia University, no período de 1984-1985, orientada por Jean Franco (1924-2022) crítica literária fundamental para os estudos feministas preocupados com a América Latina. Foi também momento de discussão importante das ideias de Frederic Jameson, de surgimento de críticos latino-americanos que irão formular as teorias pós-coloniais e decoloniais. Jean Franco, inglesa que se mudara para os EUA, levando experiências dos pioneiros Cultural Studies no Reino Unido, e pesquisadora da literatura latino-americana, era colega e amiga de Edward Said, com quem partilhava as formulações pós-coloniais. George Yúdice, também aluno de Jean Franco, se tornará um interlocutor privilegiado e passará a vir ao Brasil regularmente. Nas diversas vezes em que Heloisa voltou às universidades americanas, sempre participou de debates que incluíam questões relativas à constituição de cânones. Foi também Heloisa quem trouxe Jean Franco e outros intelectuais da mesma linha de pensamento para o Brasil, em seminários decisivos para todos nós, propondo o debate em torno do questionamento do projeto moderno, o incômodo que o pós-modernismo causava, o aparecimento de novos pensadores mulheres e negros, e de escritores de diferentes origens de raça e classe.

Com o surgimento polêmico do Pós-Modernismo, Heloisa buscou o novo na reflexão teórica e, em 1991, publicou livro pioneiro sobre o tema: Pós-modernismo e política.  Pela primeira vez fomos colocados diante do pensamento de Andreas Huyssen sobre a ruptura entre “alta cultura” e “cultura de massa” em ensaio no qual diz que o pós-moderno devia ser salvo de seus defensores e de seus detratores. Temos acesso a Homi K. Bhabha, Henry Louis Gates Jr., Ernesto Laclau e outros que ainda não tinham chegado aos nossos debates universitários. O ensaio de Edward Said incluído no livro foi “O orientalismo revisitado”, sendo que o texto fundamental para as revisões pós-coloniais, Orientalismo, fora publicado apenas um ano antes por aqui. Para não falarmos na grande novidade que era Fredric Jameson de quem a obra fundamental sobre o tema, Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, só será traduzido em 1997.

Todos estes textos inovadores que a organizadora reunira foram antecedidos da introdução corajosa e profunda: “Políticas da teoria”, que se inicia com a autora dizendo: “É raro uma expressão causar tanto desconforto quanto o termo pós-moderno”. No artigo, o caminho que o termo percorrera nos EUA é apresentado como questionamento do próprio poderio americano na forma de “um novo aparato cultural”, o “sistema pós-moderno”, para finalizar falando da necessidade de resposta à:

Situação concreta e desafiadora do quadro político gerado pelo surgimento de um pluralismo neoliberal e do exíguo espaço disponível para a viabilização de uma cultura democrática no contexto de uma cultura e de uma economia multinacionais. (Hollanda, 1991.p. 14)

A seguir, o interesse pelo pós-moderno, expressão que logo foi deixada de lado, transforma-se na pesquisa sobre os emergentes Estudos Culturais a que nós, os que a cercávamos, passamos a nos dedicar, especialmente nos trabalhos desenvolvidos no recém-criado CIEC/UFRJ (Coordenação Interdisciplinar de Estudo Contemporâneos), centro de pesquisa coordenado por ela.

O interesse pela poesia, no entanto, continuara e o desejo de mapear o que ia aparecendo nos anos 90 fez com que Heloisa se voltasse para os poetas que, como sempre, a cercavam, para a eles dedicar sua avaliação e crítica.

O país já completara, bem ou mal, a saída da ditadura. As transformações políticas marcavam a cultura da pós-redemocratização, apontando para o pluralismo, para o surgimento de novas vozes. A crítica ao autoritarismo não era suficiente para que um presidente de esquerda, vindo do mundo operário, fosse eleito, mas governo já democrata instigava o surgimento de novas vozes. Na prosa, o cotidiano das grandes cidades se tornou tema dominante numa ficção ainda prioritariamente masculina, mas onde vozes fortes de mulheres já surgiam.

O tema da globalização parecia trazer esperanças de um mundo mais equilibrado, onde as fronteiras territoriais seriam mais fluidas, ilusões rapidamente perdidas que serão definitivamente sepultadas no 11 de setembro de 2001.

Mas e a poesia? É nessa situação de transição que Heloisa vai procurar o que haveria de novo na poesia. Quem eram os poetas que importavam nesse novo mundo neoliberal.

Penso que, como em várias outras ocasiões nesse país de idas e vindas na modernização da cultura, vivíamos a situação de que fala Antonio Gramsci ao dizer que o velho está morrendo e o novo não pode nascer.

Assim, em 1998, foi publicada a reunião de poesia que estava longe de promover o espanto provocado pela 26 poetas hoje. Trata-se da Esses poetas: Uma antologia dos Anos 90.

Era um momento em que estávamos diante de uma relação completamente diferente com o cânone literário, e não era devidamente percebido entre nós, em situação completamente diferente da vivida nos EUA, o quanto o literário estava ligado às questões que já se evidenciavam no campo dos Estudos Culturais. Não vigia um cânone solidificado, lia-se de tudo e os marginais estavam firmes e fortes. Tratava-se de buscar uma renovação em um momento confuso, de definições políticas e culturais pouco claras. Esses poetas é apresentada como uma antologia da década que se encerrara e fora fértil em poesia. Em 1998 vários dos selecionados já circulavam em diversos circuitos, como Waly Salomão e Carlito Azevedo, e o requisito era que todos deviam ter sido editados pela primeira vez na década de 90.

Heloisa explica o impulso na apresentação:

Essa não é a primeira vez. O fato é que, diante de qualquer formação de consenso a respeito de quedas de vitalidade na produção cultural, sinto-me impelida a organizar uma antologia de novos poetas. (Hollanda,1998. p. 9)

Explica ainda que o neoliberalismo crescente fazia com que os movimentos sociais amadurecidos se organizassem em frentes diferentes, às vezes em confronto. Entre a academia e a militância ia se formando um abismo. O impacto do surgimento de casos de AIDs levantara debates que iam dando nova voz ao movimento gay. O feminismo espalhava-se com novas formulações. A figura da maioria pobre começava a ser investigada como “excluído” ou “excedente”.

A antologia, desta vez, traz poetas que eram profissionais cultos, com formação superior, jornalistas, professores, todo o contrário da geração anterior, antiestablishment. Heloisa afirma que o critério de seleção dos poetas que participaram foi definido por afinidades eletivas da organizadora.

A autora comenta que, junto e a partir das distinções canônicas entre gêneros, linguagens (com o surgimento de experimentos de oralidade e performances) e o que chama de “territórios políticos”, instala-se a complexidade da estética poética manifestada.

A seleção traz a nata do que será a poesia brasileira nos anos que se seguiram. Se há um cânone que vai se estabelecer pela consagração daqueles que começaram a publicar nos anos 90, certamente é encabeçado por Antonio Cicero, poeta, filósofo e letrista. Preocupado com a relação entre poesia e Filosofia, era forte defensor do “critério de qualidade” na literatura, como disse diversas vezes. No entanto, foi igualmente importante para a chamada cultura de massa com seu sucesso como letrista da canção popular na Brasil.

Os limites entre alta cultura e cultura de massa já tinham se embaralhado. Assim como Ana Cristina Cesar se tornou um modelo da poesia da geração dos 26 poetas, Antonio Cicero será a melhor referência dentre os poetas elegantes da Esses poetas. Em 2017, passou a fazer parte da ABL. Em 2024, diagnosticado com Alzheimer, optou pela morte assistida, comovendo a intelectualidade e o universo da música popular.

Dentre os outros selecionados estão Eucanaã Ferraz, Alberto Martins, Arnaldo Antunes, Carlito Azevedo, Ricardo Aleixo e outros poetas já reconhecidos. Nem todos permaneceram como poetas, como é o caso do romancista e roteirista Paulo Lins. Outros ainda continuam poetas bissextos, como Italo Moriconi, professor que se tornou importante no mundo literário por elaborar “listas” elas mesmas das mais potentes: Os cem melhores contos brasileiros do século (2002) e  Os cem melhores poemas brasileiros do século (2001)

Não se pode deixar de observar que o critério de “qualidade”, tantas vezes relativizado, estava aí presente. A pergunta de Heloisa: “o que faz da poesia poesia?” voltava sob outra perspectiva, tornando-se questão que ocupará todo o trajeto da nossa crítica e será frequentemente retomada, reformulada, questionada em função da própria produção que ia surgindo.

Uma nova relação entre o que poderia ser o cânone e a proposta da antologia se evidencia. A pesquisa buscara o que havia de novo na poesia da década, mas não há uma ideia de investigar exclusões do que então circulava nos meios literários, não era esse o caso.

O elenco proposto facilmente cai no gosto da crítica e nele permanecerá. Mesmo entendendo que a sensibilidade livre, diante do novo, é uma forma do pensamento crítico, vale lembrar que o novo o era unicamente em termos editoriais, e este será o caminho para continuarmos a rever as relações perigosas entre as antologias e o cânone. Mais adiante, com as referências à última das antologias, vamos perceber os problemas que a seleção enfrentava ao preservar o que a própria Heloisa designou como “cânone masculino”. Se de 26 poetas hoje participavam apenas cinco escritoras mulheres, a situação da antologia de 1998 era pior: unicamente quatro mulheres foram selecionadas: Claudia Roquette Pinto, Josely Vianna Batista, Lu Menezes e Vivien Kogut.

O que quero chamar atenção é que nas renovações que se faziam necessárias e desejadas no pensamento acadêmico, em especial na academia americana, o importante nesse caso não era descobrir novos autores, mas sim definir que autores, já existentes, deveriam passar a ser incluídos.  Os caminhos de discussão sobre o cânone literário não trilhavam, entre nós, o rumo do debate que foi ganhando cada vez mais espaço com as políticas de reparação nos EUA e como reação às medidas arbitrárias de Ronald Reagan em relação às universidades, com o fim das ações afirmativas, cortes de bolsas e desprezo pelos estudos das humanidades.

Os referenciais teóricos produzidos pelos autores que publicavam nos EUA, como Edward Said, propondo a discussão sobre “os outros”, Gayatri Spivk com a fala dos subalternos, e a leituras políticas que a desconstrução de Derrida recebia provocam debates importantes entre nós. No entanto, ainda que os debates críticos despertados pelos temas que ocupavam prioritariamente os Estudos Culturais – raça e gênero – ocupassem nossas pesquisas e discussões, tais questões demoraram a ser percebidos pela crítica literária, mesmo a mais preocupada com temas e questões sociais. Basta conferirmos a falta de percepção da relação entre diferentes origens étnico-raciais e a produção artística ou as formas de participação das mulheres no mercado editorial.

Nos EUA, nos anos 1980, sob os dois mandatos de Ronald Reagan, os estudiosos de humanidades e de Letras enfrentaram diretamente a necessidade de se organizarem para enfrentar o conservadorismo.

No campo mais restritamente acadêmico, com influência no mundo editorial, na organização de estudos, pesquisa, programa disciplinares e antologia, fervia o debate sobre a formação do cânone literário e seu enfático questionamento. O importante e influente professor de Yale Harold Bloom, conservador e preocupado em garantir privilégios já adquiridos, vai elaborando seu cânone ocidental com a exclusão de todos os escritores em que identifica uma “fuga ao estético”. São, segundo afirma em O cânone ocidental, “corações feministas, afrocentristas, marxistas, neo-historicistas foucaultianos ou descontrutures”, membros da “Escola do ressentimento” que teriam como herói Antonio Gramsci.

A literatura afro-americana, com o rápido sucesso que obtiveram nomes como a romancista Toni Morrison, premiada com o Pulitzer em 1987 e que receberá o Nobel de Literatura em 1993, provoca uma reviravolta nos cânones instituídos. Eram os outros que apareciam apontando para a revisão do cânone nas antologias e nos programas de estudo de literaturas. A exclusão que até então se dava nada tinha de neutra, mostrando que as listas e currículos realizavam posturas ideológicas e culturais movidas pelo ideário da civilização ocidental branca, masculina e patriarcal. A crítica literária, no quadro de epistemologias descoloniais praticadas pelos Estudos Culturais, passava a enfrentar de forma prioritária exclusões e inclusões no cânone, o que não aconteceu entre nós.

Judith Butler, ao tratar da exclusão de mulheres, sujeitos racializados e pessoas LGBT do campo filosófico e cultural, especialmente em Gender Trouble, acrescenta argumentos contra a construção de cânones, expressão do regime de normatividade a ser combatido.

O importante questionador do cânone branco e tradicional Henry Gates Jr., professor e ele mesmo organizador de readers e antologias literárias, em seu livro Loose Canons: Notes on Culture War apresenta o cânone, tido como um “repositório ideal de textos valiosos”, como algo que nunca foi o que propunha. Por essa falsidade, foi fácil de derrubar, a despeito da importância de seus defensores no campo da universidade e do saber em geral. O cânone, para Gates Jr., era uma coleção de textos ideologicamente reunidos, refletindo a sociedade racista e patriarcal e não uma seleção de textos representativos, ou mesmo reunidos por atribuições de qualidade. A deslegitimação do cânone, para ele, deveria ser acompanhada da revisão do conceito de “representação política”. Nos ensaios da obra, Gates Jr. propõe uma revisão total do cânone para que haja a devida releitura e revalorização das estratégias literárias empregadas pelos autores afro-americanos.

Trago aqui a figura de Henry Gates Jr. ao debate justamente por sua participação intensa na vida universitária, como aconteceu sempre com Heloisa. Nem um dos dois foi um crítico outsider a questionar o cânone acadêmico.

Outro intelectual de trajetória semelhante à de nossa autora foi Paul Lauter, autor do fundamental Canons and Contexts. Além de professor, crítico literário, historiador da cultura, Lauter foi organizador de antologia de grande importância e reconhecimento para o estudo da literatura americana, sucessivamente reeditada e adotada pelo ensino americano. Igualmente mobilizado pelo ataque de Reagan às universidades, a obra reúne questões da crítica literária às questões políticas urgentes provocadas pela ascensão do conservadorismo.

No momento atual, quando, sob o governo de uma direita fanática e arbitrária personificada por Donald Trump, acontece o mesmo ataque às universidades, aos imigrantes, ao pensamento independente e ao outro sob formas diversas, vale a pena voltar ao alerta desses intelectuais ligados à arte, cultura e, sobretudo, à literatura. Serve-nos para pensar nas ameaças possíveis a ganhos que o Brasil conseguiu obter, como a política de cotas no ensino e no acesso a empregos, e em como tais conquistas podem ser vulneráveis.

Lauter politiza a luta contra o cânone de maneira enfática, vendo como influencia não apenas a produção editorial como o ensino por meio de distorções conservadoras nos currículos, nas políticas de financiamento e de concessão de bolsas. Defende em suas antologias a inclusão de autores colocados à parte pelos cânones vigentes, declarando que “a diferença, manifestada em raça, gênero, classe e outras categorias de experiência e análise, pode e deve fornecer um modo central de pensar os programas educacionais universitários”. Sobre seus próprios trabalhos de seleção e crítica literária, afirma: “O cânone é construído, não descoberto. Aquilo que consideramos ‘literatura’ é o resultado de escolhas ideológicas feitas em instituições sociais específicas” (Lauter, 1991. p.154).

Entre nós, tais questões só serão importantes a partir dos anos 2000, depois da inclusão de políticas de cota na vida acadêmica e, nos anos que se seguiram, quando se transformarão em polêmicas e discussões (acirradas) em torno de posicionamentos divergentes sobre o identitarismo. Tivéssemos nos ocupado mais e melhor das necessidades de renovação do cânone artístico e literário enquanto nos envolvíamos com as novas questões levantadas pelos Estudos Culturais, teríamos chegado antes à nova atual configuração da literatura brasileira, em que autores negros, mulheres, indígenas, LGBTQIA+ e suas obras literárias são mais do que inovadores, são decisivos.

Voltando um pouco atrás: em 2009, Heloisa aparece como fortemente sintonizada com a novidade que representava a internet como forma de divulgação da literatura e indica que o mundo digital representava, em si, um formato novo de produção poética: a literatura praticada na web. A ideia de criação compartilhada, que continuará a interessá-la por longo tempo, aparecia como uma espécie de utopia possível. Cria, então, uma antologia unicamente virtual, a Enter. Infelizmente não há mais traço da antologia com o desaparecimento do site em que era veiculado. Recuperando escritos da época que permaneceram na Wikipédia, podemos ler parte da apresentação dos 37 autores que iam de jovens escritores a web designers:

…não pude ficar imune à evidente expansão da palavra e da multiplicidade de usos e experimentações com a palavra que crescem hoje em proporção geométrica. Considerei então, como matéria de exame, todas as formas de literatura praticada na web, muitas vezes excessiva e desigual (Wikipédia – Enter: Antologia Digital).

Se a chamada “literatura da internet” não vingou, a circulação em rede teve papel bem interessante. Sites reuniam autores de todo o país que não precisavam se deslocar para o Sul para serem publicados. A crítica, com revistas independentes como a importante No.com, recebeu forte oxigenação e maior sintonia com a produção imediata.

Quando Heloisa prepara a última de suas antologias, As 29 poetas, a consciência de uma renovação efetiva do cânone já estava assimilada. Na verdade, antes de se dedicar a preparar uma seleção de poetas que fossem todas mulheres, Heloisa realiza no campo acadêmico longa trajetória da reflexão sobre feminismo, com vastas publicações, reunindo as principais pensadoras mulheres no Brasil e no exterior. A evidência da inevitabilidade de partilhar novas epistemologias críticas fora iniciada com a publicação, em 1994, de Tendências e impasses: O feminismo como crítica da cultura.

A verdade é que as antologias anteriores traziam um problema que por muitos anos vai ficar atravessada na garganta da própria Heloisa: a pouca participação de mulheres poetas.

A reparação finalmente chegou com As 29 poetas hoje de 2021, que foi publicada pela sólida Companhia das Letras. Dizia As poetas, porque eram 29 mulheres, jovens, muitas inéditas em livro.

O ensaio que apresenta o livro é, ainda uma vez, importante e madura reflexão sobre o cânone literário e discussão questionadora do que é “essa estranha instituição chamada literatura”, como diz Jacques Derrida.

Heloisa começa identificando na poesia contemporânea de mulheres a influência decisiva de Ana Cristina Cesar, lançada naquela sua antologia de 1976. Ana C. serviria como um solo para o que a autora chama, de “jovem cânone de poesia de mulheres”.

No ensaio, a organizadora mapeia as poetas que mereceram destaque nos anos 2020: Angélica Freitas, Alice Sant’Ana, Ana Martins Marques, Marília Garcia e Bruna Beber. Não são essas, porém, que compõem o conjunto das 29 poetas. São, sim, as que mais influenciaram e serviram de referência às poetas mais jovens do aqui e agora, mas não é delas, já consagradas, que a antologia se ocupa. A seleção continua sendo uma aposta no novo, novíssimo. Segundo ela, o diferencial das poetas é conquista do conjunto de obras de escritoras mulheres, no momento em que assumem, no Brasil e no mundo, forte protagonismo. O que é fundamental para a nova literatura de mulheres representa capital inestimável: um ponto de vista próprio e irreversível, o enfretamento sistemático do cotidiano, dos desejos e dos custos de ser mulher, já bem distante do que se conhecia como linguagem e/ou poética de mulheres. A nova experiência com a linguagem é a consequência imediata dessa conquista. As poetas formam uma espécie de coro, falando em voz alta e forte. Segundo Heloisa, tratava-se de: “Vozes fora do eixo dominante, heteronormativo e branco: são vozes lésbicas, vozes negras, vozes trans, vozes indígenas, interseccionais” (Hollanda, 2021, p. 31).

Com essa obra, Heloisa quer mobilizar a crítica canônica e masculina, a partir de toda uma segura e madura formulação de epistemologias feministas. Diz a autora no prefácio:

Estabelecer por livre e espontânea vontade um cânone tem uma quota de ironia, mas me permiti esse abuso porque tomo aqui cânone em seu sentido original de kauóuaV, vara utilizada como medida. (…) até segunda ordem, parecem ser as que mais influenciaram e mesmo se constituíram como referência para a poesia mais jovem praticada entre nós. (idem, p. 12)

O prefácio da última antologia define bem a ideia de cânone que foi amadurecendo e o processo que desenvolve de mexer no cânone a partir do cânone que antecede cada seleção de novos autores. Buscar sim o novo, o novíssimo, não por ser novo, mas pelo espaço que deve ocupar na literatura entendida como experiência viva partilhada com os leitores.

Cuidadosa pesquisa antecedeu a seleção e incluiu o convívio com as jovens escritoras em seminários e encontros, fazendo com que, mais do que uma publicação, fosse uma interpelação da vida universitária e, forçosamente, do cânone literário vigente.

Quatro anos depois do lançamento da antologia de poetas mulheres, as escolhas de Heloisa só fazem se revelar acertadas. A afirmação de que “não há uma linguagem sem o corpo” vai além da poesia, é válida para toda a literatura de mulheres que percebeu que o relato de experiência de vida, legitimado pelos ganhos do feminismo, é importante para sua escrita. Poderia dizer que poetas como Adelaide Ivánova e Luiza Romão já fazem parte do cânone, mas não é isso que importa.

É de Heloisa a “orelha” de Ninguém quis ver, livro de Bruna Mitrano de 2023, que fora uma das participantes da antologia, apresentada no texto como autora cujo foco “são as situações vulneráveis” que formam “a saga de invisibilidade de tantas mulheres”.

Leio no poema que dá título ao livro:

nasci com dentes podres
coisa de família
minha avó ficou banguela
aos vinte e seis
os tios todos
têm dentadura
criança diziam tão bonita mas
assim
não vai arrumar namorado
eu não queria arrumar namorado (Mitrano, 2023, p.35)

E fico pensando nos tantos sucessos que Heloisa conseguiu, nesse caso, negociar com leitores, com a academia e seus currículos, com a crítica cultural e literária um novo cânone. Mais uma vez trouxe o novo, novo que encontrou seu lugar e aí ficou.

* Beatriz Resende, editora da Revista Z Cultural, é professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ e pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC/Letras/UFRJ).
Referências bibliográficas
ARIJÓN, Teresa e RESENDE, Renato. Encontros: Heloisa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Azougue, 2019.

LAUTER, Paul. Canons and Contexts. New York: Oxford University Press, 1992.

GATES JR, Henry Louis. Loose canons. Notes on the culture wars. . New York: Oxford University Press, 1992.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. 26 poetas hoje. (Antologia 1976). São Paulo: Companhia das letras, 2021.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. Esses poetas. Uma antologia dos Anos 90. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. As 29 poetas hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

HOLLANDA, Heloisa Buarque (org.). Pós-Modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

MITRANO, Bruna. Ninguém quis ver. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
Notas
[1] Entrevista gravada por mim, ainda não publicada.

[2] Vale a citação de Portella, mesmo longa: “O scholar, no seu recorte institucional ou na sua avidez apropriativa, vem sendo o dedicado – tão dedicado como sedentário – zelador do cânone. O grande escritor não é o que preserva ou protege o cânone. É o que o implode. Harold Bloom se engana redondamente” (Revista Tempo Brasileiro, 129:5/8, abr-jun., 1997, p. 5).
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HELÔ NA EDITORA UFRJ E NO MEU CORAÇÃO

Era 1990. Eu subia as escadas da Escola de Comunicação da UFRJ, vindo da Ilha do Fundão, com minha carta de apresentação à direção da escola. As professoras Heloísa Buarque de Hollanda[1] e Beatriz Resende desciam as escadas no mesmo momento. Ali seria o meu primeiro contato com a Helô. Ao cumprimentar Beatriz Resende, ela me apresentou à Helô, que imediatamente me perguntou “O que você vem fazer aqui?” E, depois de minha resposta, ela disse: “Vem trabalhar comigo”. Rindo, eu respondi: “Mas eu acabei de chegar!” A partir daquele momento ela me convidou por cinco anos para trabalhar com ela, até que, em março de 1995, fui procurá-la para dizer que era chegada a hora. Desde então, ela me levou para a Editora UFRJ, onde estou até hoje.

Mas a história de Helô na editora tinha começado em 1990, e eu queria saber tudo o que havia se passado…

Foi em julho daquele ano, após a posse do professor Nelson Maculan Filho como novo reitor da Universidade, que a Editora UFRJ foi realocada do campus da Cidade Universitária (Ilha do Fundão) para o Fórum de Ciência e Cultura (FCC), no campus da Praia Vermelha. Consubstanciava-se, finalmente, o Plano de Reestruturação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1967), segundo o qual a Editora Universitária era órgão integrante do FCC – institucionalizado em 1972.

O professor Luiz Pinguelli Rosa foi designado pelo reitor para a função de coordenador do FCC, e a Helô, da Escola de Comunicação (ECO), para a função de diretora da Editora UFRJ. Essa direção estabeleceu, como projeto e diretriz para a editora, “a consolidação de um canal eficaz para a divulgação da produção científica e de atualização do potencial crítico da UFRJ” (RELATÓRIO, 1994).

Sob Helô e Pinguelli Rosa, novos tempos sopraram para a editora. O Conselho Editorial, antes de natureza meramente representativa, passou a ser composto por profissionais indicados em função da atuação relevante em diferentes áreas do saber.

Essa nova composição seria a expressão do “exercício de uma política editorial mais autônoma, com uma maior transparência no processo de avaliação e seleção dos textos a serem publicados” (RELATÓRIO, p. 2). Alguns nomes de peso que o compuseram: Darcy Fontoura de Almeida, Gerd Bornheim, Gilberto Velho, Giulio Massarani, Wanderley Guilherme dos Santos, José Murilo de Carvalho, Margarida de Souza Neves e Silviano Santiago.

Além do Conselho Editorial, Helô instituiu um Comitê Editorial diverso, formado por professores dos cursos da Escola de Comunicação, Letras, Física e Ciências Sociais, além de uma assessoria com um quadro significativo de consultores ad hoc. Essa estrutura refletiu a preocupação da gestão com a reformulação do perfil da Editora UFRJ, baseado na escolha “de títulos exclusivamente por mérito e qualidade científica das obras a serem publicadas” (RELATÓRIO, p. 6).

A Editora UFRJ passa a estabelecer, após instituição do Conselho e do Comitê Editorial, três critérios para seleção ou indicação para publicação: indicação do Conselho; apresentação ao balcão; e indução ou encomenda. Ênfase para este último, que, graças à criatividade de Helô, deu a lume os livros Papéis colados, de Flora Süssekind, Condomínio do diabo, de Alba Zaluar, e A razão nômade, de Sérgio Paulo Rouanet; além da maior parte dos livros da Série Manual, de muito sucesso.

Helô justifica, no relatório, “como inadiável a oportunidade de ampliar o público consumidor da produção acadêmica, provocar e absorver um feedback precioso entre a Universidade e a sociedade”. É nessa direção que a gestão procura estabelecer “uma linha editorial mais agressiva, ampliar o ‘balcão’ da Editora para além das fronteiras da UFRJ, modernizar sua imagem gráfica e infraestrutura de produção e distribuição”.

Com essa visão estratégica de modernização, Helô trouxe para a Editora funcionários da área de programação visual, vindos da Gráfica da UFRJ — servidores e ex-alunos, com forte comprometimento para tornar realidade a produção de livros na universidade.

Dentro dessa política de modernização da produção editorial, foi criada uma nova logomarca, um projeto de identidade visual e um comportamento gráfico (Figura 1). Também foram desenvolvidas quatro séries de publicações com formatos distintos, e a Editora passou a utilizar largamente tecnologia computacional em sua produção.

Figura 1: Mudança da logomarca da Editora UFRJ (Fonte: compilação da autora sobre o acervo da Editora UFRJ).
Figura 1: Mudança da logomarca da Editora UFRJ (Fonte: compilação da autora sobre o acervo da Editora UFRJ).

A modernização da editora proposta por Helô não se deu somente na questão estética. Foi sob sua direção que a Editora UFRJ passou a agrupar as publicações em quatro séries, a saber: Universidade, Paradigma, Manual e Terceira Margem.

A série Universidade tinha como objetivo “absorver e divulgar de forma ágil o resultado de trabalhos, seminários, congressos e pesquisas em curso na UFRJ”. A série Paradigma tinha foco voltado à publicação de textos de apoio ao ensino graduado, pós-graduado e à prática experimental de laboratório. A série Manual era um desdobramento da série Paradigma, definida em função das características de um produto cuja utilização teria como base uma obra de referência e, portanto, de manuseio frequente, produzindo textos de apoio às práticas de laboratório, ou treinamentos, das diversas áreas de conhecimento. Por fim, a série Terceira Margem refletia “as fronteiras das tendências daquele momento, na reflexão e na pesquisa, na reedição de obras clássicas ou seminais da produção do conhecimento”.

A inauguração de uma livraria comercial — a Livraria Riomarket — nas dependências do Palácio Universitário, em 1992, com contrato de cessão por quatro anos, permitiu à Editora UFRJ o começo de uma parceria para divulgação e distribuição de suas novas publicações.

O ano de 1992 significou uma movimentada agenda para a Editora UFRJ. Com a contratação de serviços de assessoria de imprensa, ampliaram-se a divulgação e a visualização de suas ações, com a organização de lançamentos de livros em encontros acadêmicos e a presença da editora em eventos importantes na cidade do Rio de Janeiro. Entre eles, o considerado de maior destaque, nessa nova fase da editora, foi o Projeto Café Literário Poesia em Pânico (Figura 2), durante a VI Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, em agosto de 1993. A editora ocupou um estande de 36m² para organizar, no âmbito da programação oficial da Bienal, a montagem do Café Literário Multimídia, apoiado pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros.

No estande, decorado com mobiliário e obras de arte do patrimônio do Palácio Universitário da UFRJ, e com a referência “Poesia em Pânico” em homenagem a Murilo Mendes, foram realizadas discussões, pequenas palestras, encontros e bate-papos com personalidades do mundo literário, como Rachel de Queiroz, Autran Dourado, João Ubaldo Ribeiro, Armando Freitas Filho, Antônio Torres e Afrânio Coutinho. Nessa Bienal, a Editora UFRJ esteve como visitante, e não comercializou seus livros, apenas realizou a divulgação.

Figura 2: Café Literário Poesia em Pânico (Fonte: Relatório de Gestão Editora UFRJ 1990-1994).
Figura 2: Café Literário Poesia em Pânico (Fonte: Relatório de Gestão Editora UFRJ 1990-1994).

A UFRJ e o Fórum de Ciência e Cultura desenvolveram uma parceria com o movimento Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida (AÇÃO, 2021), liderado por Herbert de Souza, o Betinho, e levaram para a Bienal o debate sobre a ética e a cidadania, que “teve grande repercussão entre o público visitante e a imprensa” (UFRJ, 1994a, p. 64). O primeiro volume de cada lançamento da Editora UFRJ ocorrido na Bienal recebeu o autógrafo do autor e o de Betinho, como doação, em projeto denominado Autógrafo Zero (Figura 3). Toda a renda arrecadada pelo leilão dessas obras foi revertida para a Campanha contra a Fome.

Figura 3: Autógrafo Zero na VI Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro (Fonte: Relatório de Gestão Editora UFRJ 1990-1994).
Figura 3: Autógrafo Zero na VI Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro (Fonte: Relatório de Gestão Editora UFRJ 1990-1994).

Com o novo ciclo de gestão da UFRJ, de 1994 a 1998, assume a reitoria o professor Paulo Alcântara Gomes, da Coppe, e, como vice-reitor, o professor José Henrique Vilhena, do IFCS, mantendo a professora Heloísa Buarque de Hollanda na direção da editora. Na Coordenação do FCC, assume a professora Myriam Dauelsberg, da Escola de Música.

As diretrizes da Editora UFRJ, para esse período, foram redefinidas tendo em vista a reestruturação da política editorial com o compromisso de publicação de livros didáticos voltados à sala de aula; além da aprovação do nome do professor Carlos Lessa, do Instituto de Economia, para a renovação do Conselho Editorial, que passa a ser composto por Fernando Lobo Carneiro (Coppe/UFRJ), Gilberto Velho (Museu Nacional/UFRJ), Margarida de Souza Neves (História/PUC-Rio) e Flora Süssekind (Teatro/Unirio).

As dificuldades orçamentárias marcam o cenário desse período. Desde o início dos anos 1990, a crise econômica e a falta de recursos nas universidades transformaram modos eficazes de divulgação da produção científica — como congressos, seminários e palestras abertos ao público em geral — em canais modestos e poucos abrangentes.

É em março de 1995 que chego à Editora UFRJ e, no mesmo dia, Helô me passaria duas tarefas importantes: representar a editora na reunião anual da Associação Brasileira das Editoras Universitárias (ABEU) e preparar o estande da editora na XII Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, que ocorreria em agosto daquele ano. Mas o que seria uma tarefa considerada simples vinha com um detalhe importante: “Fernandinha, quero uma múmia do Museu Nacional no nosso estande”. Dali para frente, foram quatro meses em que eu sonhava — e tinha pesadelos — com a múmia.

Organizamos também, em 1995, o lançamento do livro Educação não é privilégio, de Anísio Teixeira, durante a exposição sobre a vida do grande educador baiano no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. O evento foi o ponto zero da Coleção Anísio Teixeira, já que a família de Anísio confiou à Helô a reedição da obra completa do educador. A presença do presidente da República, do ministro da Educação, da família de Anísio Teixeira, das autoridades locais e da UFRJ marcou a importância da obra e do projeto para a Editora da UFRJ — e para a própria universidade — no cenário nacional.

Figura 4: Lançamento do livro Educação não é privilégio (Fonte: Jornal O Dia)
Figura 4: Lançamento do livro Educação não é privilégio (Fonte: Jornal O Dia)[2]
Em julho de 1995, após décadas de litígio judicial, a UFRJ comemorou a possibilidade de reconquista do espaço situado ao lado do Canecão, ocupado pela Associação dos Servidores Civis do Brasil (ASCB) desde 1937 (AGÊNCIA ESTADO, 2008). Na ocasião, em face da pressão da sociedade sobre a futura utilização do espaço, a Reitoria da UFRJ assumiu sua destinação para a nova sede da Editora da UFRJ. Helô recebeu a chave do local e, imediatamente, me disse: “Fernandinha: ali será nossa primeira livraria, vamos pensar em como conseguiremos dar vida a esse espaço”.

Entretanto, por um recurso judicial, a área retorna à ASCB, em disputa que só é completamente encerrada em 2010, com a decisão do Supremo Tribunal Federal em reconhecer a validade do Decreto-lei nº 233/1967, segundo o qual todo o terreno — inclusive o do Canecão — pertence à UFRJ (CONJUR, 2010).

A VII Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro realizou-se de 16 e 27 de agosto, no Riocentro, junto a comemoração de 75 anos da UFRJ. Em consonância com as diretrizes aprovadas pelo Conselho Editorial, relativa à participação em eventos, a administração superior da UFRJ autorizou o pagamento da locação de estande na Bienal, o que possibilitou a comercialização de todo o catálogo.

A editora ocupou, então, um espaço de 30m² e colocou em exposição uma peça rara do acervo do Museu Nacional da UFRJ: uma múmia pré-histórica, Chiu Chiu[3] (Figura 5), além de alguns móveis patrimoniados do Gabinete do Reitor, como as poltronas Barcelona.[4] A peça em exposição foi escolhida pelo conselho deliberativo do Museu Nacional e assegurada pelo Banco do Estado do Rio de Janeiro (Banerj).

Conseguimos levar a múmia, fazer o seguro (somente um banco do Estado viabilizou o seguro, nenhum outro banco privado aceitou, já que a peça tinha um “valor inestimável”) e colocá-la em local seguro dentro do estande, na madrugada do dia 15 de agosto.

As crianças ficaram encantadas; os adultos, surpresos. Tivemos que fazer um corredor de segurança para que não derrubassem a múmia. As pessoas queriam tirar fotos com ela e, durante os onze dias, posso confessar: eu só pensava na múmia — em como devolvê-la sã e salva ao Museu Nacional. Helô conseguiu. Nosso estande era o mais visitado, o mais falado; a alegria de todos era contagiante.

Naquela semana da Bienal, o Rio de Janeiro foi atingido por fortes chuvas que alagaram parte do Museu Nacional, exatamente no setor onde as múmias estavam expostas ao público. O fato de a múmia Chiu Chiu (Figura 5) estar em exposição na Bienal do Livro, cedida à Editora UFRJ, e ter se salvado da enchente, foi amplamente noticiado pela imprensa nacional, resultando em uma maior visibilidade para o estande da Editora UFRJ — e para a própria universidade — no cenário editorial, acadêmico e científico. Saímos do Riocentro escoltados pela polícia militar e perseguidos pela imprensa até o retorno da múmia ao Museu Nacional. Após a devolução, dormi por 24 horas seguidas.

Trabalhar com a Helô era assim: todos os dias, uma grande emoção, as ideias surgiam a todo instante. Ela fazia a gente pensar, ousar, não temer. Enxergava na gente algo que nem nós mesmas enxergávamos. Ela ensinava e aprendia e, mais que tudo, valorizava o trabalho de quem estava ao lado. Te elogiava, te colocava para cima, e criava um espaço onde todos pudessem brilhar — e, discretamente, se recolhia. Abria espaço, mas a gente queria sempre que ela estivesse junto.

Figura 5: Participação da Editora UFRJ na VII Bienal do Livro RJ (Fonte: Compilação da autora).
Figura 5: Participação da Editora UFRJ na VII Bienal do Livro RJ (Fonte: Compilação da autora).

A Editora UFRJ, a partir daquele ano, passou a participar ativamente, com estande próprio, das Bienais do Livro do Rio de Janeiro e de São Paulo, e iniciou também uma participação contínua em eventos acadêmicos e científicos, com presença nos encontros anuais da Associação Nacional de Programas de Pós-graduação de: Educação (ANPEd), Ciências Sociais (Anpocs), Filosofia (Anpof) e História (Anpuh), assim como na reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Helô, com o apoio do Conselho Editorial, passou a investir na tradução de livros de autores latino-americanos, como os argentinos Néstor Garcia Canclini[5] (Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização) e Beatriz Sarlo[6] (Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e videocultura na Argentina), além do antropólogo Jésus Martin Barbero[7], nascido na Espanha e radicado na Colômbia (Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia).

Helô viria a declarar que “a publicação de autores latino-americanos faria acontecer um debate na academia e fora dela” e que o foco em estudos culturais insistiria numa “articulação entre a academia e a sociedade” (BOTELHO et al., 2019, p. 40). De fato, esses autores continuam a constituir a bibliografia de diversos cursos de graduação e pós-graduação no país, e se mantêm no catálogo da Editora UFRJ.

Helô viabilizou o livro Cartas (1964-1974) – Lygia Clark/Hélio Oiticica, organizado por Luciano Figueiredo e publicado pela Editora UFRJ em 1996, e reeditado em 1998. Trata-se das correspondências trocadas pelos dois artistas — expoentes do neoconcretismo brasileiro — que foram guardadas pelas respectivas famílias, reunindo quarenta cartas escritas ao longo de uma década de intensa colaboração e amizade.

Foi o livro da Editora UFRJ que obteve o maior destaque na mídia impressa (Figura 6). Essa publicação, inclusive, serviu de inspiração para o espetáculo Exposição, contemplado no Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2012, dirigido por Cândida Monte e Gustavo Bitencourt, em parceria com o diretor e dramaturgo Dimis Jean Soares.

Figura 6: Lygia Clark e Hélio Oiticica – Cartas 1964-74 (Fonte: Acervo Editora UFRJ e André Seffrin, Coluna Livros, Jornal do Brasil, março de 1997).
Figura 6: Lygia Clark e Hélio Oiticica – Cartas 1964-74 (Fonte: Acervo Editora UFRJ e André Seffrin, Coluna Livros, Jornal do Brasil, março de 1997).

Atualmente, o livro encontra-se esgotado e é considerado uma raridade, com exemplares usados sendo vendidos por preços elevados em sebos online. Em março de 1998, Helô despediu-se da direção da Editora UFRJ, antes do término do mandato do reitor Paulo Alcântara Gomes, em julho daquele ano.

[…] Em 1992, 1993, e fiquei por duas gestões, a do reitor Nelson Maculan Filho e a do Paulo Gomes. Saí por um motivo interessante. Comecei a pensar em publicar a correspondência entre Hélio Oiticica e Lygia Clark. Foi um empreendimento quase impossível. A família da Lygia Clark não deixava, a do Hélio também não. Foi um ano de idas e vindas. Mas a gente fez o livro, que também teve o projeto gráfico de Luciano Figueiredo, que na época era curador do acervo Hélio Oiticica. Foi uma publicação que nasceu clássica. Do meu ponto de vista, uma contribuição absurda para a cultura brasileira. Pois bem. O livro foi lançado, deu capa em todos os jornais, no país inteiro, e o que eu ouvi foi: “Uma editora de universidade não é para fazer esse tipo de livro. Editora de universidade é para publicar aqueles professores que não conseguem publicar”. Eu falei “eu acho que eu estou no lugar errado”, fui embora e criei a Aeroplano… (Botelho; Costa; Coelho; Strozenberg, 2019, p. 41)

Os motivos de seu afastamento, registrados acima, ilustram um debate que ainda permeia o universo editorial universitário: qual o perfil e o viés editorial que as editoras universitárias deveriam assumir?

Recentemente, quando a Editora UFRJ, sob a direção de Marcelo Jacques de Moraes, publicou o livro Hélio Oiticica: Cartas 1962-1970, idealizado por Cesar Oiticica Filho e organizado por Tania Rivera, Helô aplaudiu e me mandou mensagem: “Que bárbaro, Fernandinha, muito feliz”.

Helô teve um papel fundamental na transformação da Editora UFRJ. Como intelectual e crítica literária, atuou ativamente na modernização de sua linha editorial, ampliando o foco para além das publicações acadêmicas tradicionais.

Durante sua gestão, buscou democratizar o acesso ao conhecimento e dar espaço a temas contemporâneos, aproximando a universidade da sociedade e tornando a editora mais relevante no debate público.

Aquela minha primeira tarefa de representar a Editora UFRJ na reunião da ABEU, me levou a participar da direção da entidade por duas vezes, garantindo sempre a presença da UFRJ no cenário editorial universitário.

Ao sair da editora, me disse “Gostaria que você fosse comigo, mas não posso fazer isso com a editora…” Ela sabia que eu amava estar ali — e ali estou até hoje.

Nunca perdemos contato. Às vezes eu recebia um whatsapp dela, “Deu uma vontade grande de te ver… faço o quê?” ou ainda “Querida, fiz um Lab da Palavra na Letras que está bombando… Acho um crime, um absurdo, um escândalo que eu não tenha ainda proposto uma articulação sensacional com a editora, que vai morar, assim como você, para sempre no meu coração. Estou fazendo também um Fórum Mulheres na UFRJ em que preciso de você! Marcamos?”

Tenho muita gratidão e respeito pela Helô. Com ela, descobri o que ela viu ali em 1990, naquela escada da Escola de Comunicação. Vou sentir muita saudade. Ela irá, para sempre, morar no meu coração.

* Fernanda Almeida Ribeiro é diretora adjunta da Editora UFRJ e mestre em Memória Social pelo PPGMS/UNIRIO. Colaboradora no Curso de Graduação de Produção Editorial da Escola de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), é responsável pelo módulo Editoras Universitárias desde 2011.
Referências bibliográficas
AGÊNCIA ESTADO. Começam as eleições na UFRJ. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 maio 2003. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,comecam-as-eleicoes-na-ufrj,20030519p58273. Acesso em: 23 jun. 2022.

BOTELHO, André; COSTA, Cristiane; COELHO, Eduardo; STROZENBERG, Ilana. Onde é que eu estou? Heloísa Buarque de Hollanda 8.0. Rio de Janeiro: Editora Bazar do Tempo, 2019.

BRASIL. Decreto n. 60.455-A, de 13/03/1967. Aprova o Plano de reestruturação da UFRJ. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, p. 4321, Seção 1 – 13/4/1967. Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-60455-a-13-marco-1967-401280-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 18.mar. 2021.

CONJUR. Terreno onde funcionava o Canecão pertence à UFRJ.  Consultor Jurídico, 26 maio 2010. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2010-mai-26/terreno-onde-funcionava-canecao-pertence-ufrj-decide-stf. Acesso em: 16 jun. 2022.

CUNHA, Luis Antônio. O ensino superior no octênio FHC. Educ. Soc., Campinas, v. 24, n. 82, p. 37-61, abr. 2003. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em: 13 mar. 2022.

LIVRO. O Dia, Rio de Janeiro, 17 mar. 1995. Seção Informe.

RIBEIRO, Fernanda Almeida. Editora UFRJ: memória institucional em construção. 2023. Dissertação (Mestrado em Memória Social) – Programa de Pós-graduação em Memória Social, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: http://www.repositoriobc.unirio.br:8080/xmlui/handle/unirio/13639.

UFRJ. Relatório de Gestão Editora UFRJ 1990-1994. Rio de Janeiro: [s. n.], 1994. 89 p.
Notas
[1] Heloisa manteve o sobrenome Buarque de Hollanda até 2023, quando passou a adotar o sobrenome de solteira, Teixeira.

[2] Jornal O DIA, seção Informe, publicado na edição de 17 de março de 1995, acervo da editora.

[3] A Múmia Chiu Chiu cedida pelo Museu Nacional, de indivíduo do sexo masculino, era originária do deserto de Atacama, norte do Chile, e está entre os bens patrimoniais perdidos com o incêndio ocorrido no Museu em 2018 (Fonte: Museu Nacional).

[4] A Poltrona Barcelona é uma poltrona originalmente desenhada pelo arquiteto Mies Van der Rohe e sua sócia Lilly Reich para o Pavilhão Alemão da Exposição Internacional de Barcelona de 1929 com a intenção de acomodar o rei Alfonso XIII e a sua esposa Edna. A partir de 1950 passou a ser produzida em escala (Fonte: Cadeiras Design).

[5] Néstor García Canclini é pesquisador da cultura popular mexicana, o antropólogo e ensaísta argentino.

[6] Beatriz Sarlo é professora de literatura argentina, na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires.

[7] Jesús Martín Barbero é semiólogo, antropólogo, filósofo e referência em pesquisas da área de comunicação, nascido na Espanha e radicado na Colômbia.
Dossiê
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BREVE HOMENAGEM A HELÔ – UM TESTEMUNHO PESSOAL

No dia 30 de outubro de 2020, me preparei para entrevistar Heloisa Teixeira, na época ainda Heloisa Buarque de Hollanda, que nós chamávamos, carinhosamente, de Helô. A intenção era cumprir um plano que soava como uma engraçada determinação bíblica: “Entrevistai-vos uns aos outros, e umas às outras”. Uma ideia que não sei se foi originalmente de Beatriz Resende ou Ilana Strozenberg, à qual aderi com enorme prazer. O fato é que – pelo menos esta é minha percepção – nós quatro combinamos promover aquele encontro virtual não só para produzir conteúdo útil aos pesquisadores do PACC e à Revista Z Cultural, mas porque nos divertíamos quando estávamos juntos. Havia sempre em nossas reuniões – mesmo remotas – um sabor lúdico. Pelo menos para mim, era uma alegria estar com elas – e Helô era o centro em torno do qual gravitávamos no PACC.

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Alegria não rima com 2020, ano bolsonarista pandêmico, de tantas tragédias, de tanto sofrimento, por isso mesmo eram tão preciosos os encontros virtuais no PACC e as aulas que eu dava com Felipe Lima no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, da UFRJ, onde atuava como professor visitante e oferecia disciplinas sobre ficção científica (ou, num registro mais pretensioso: literatura especulativa).

O sentimento de impotência grassava enquanto o neofascismo brasileiro passava a boiada, destruindo direitos, florestas e esperança: enfim, tudo o que a limitada, frágil e contraditória democracia havia construído, desde a promulgação da Constituição cidadã, em 1988. Não por acaso eu investia em futuros imaginários. Era preciso sair do claustro físico e mental, e evitar o pânico e o imobilismo político. Era urgente pensar, conversar, organizar lives, estudar, ensinar, aprender e escrever, furiosamente. A internet não poderia servir apenas ao negacionismo e à campanha de ódio e fake news. Nós quatro queríamos participar da resistência. Helô não se conformava e buscava forças, parcerias e motivos para manter o alto astral, sua marca registrada.

Não era a primeira vez que o destino nos jogava na mesma trincheira antiautoritária. Em 1968, ano cuja permanência mestre Zuenir Ventura captaria como ninguém, época em que Helô já esbanjava magnetismo – como ele destaca, já no primeiro capítulo de seu livro mais célebre –, a idade ainda não me permitia entrar na festa que antecedeu a longa noite feroz. Ao longo da travessia dolorosa do período mais brutal da ditadura, antes mesmo de chegar à universidade para estudar literatura, depois ciências sociais, acompanhei a trajetória de Helô, pisando a grama, fora dos scripts, à margem dos clichês, valorizando as margens, a criatividade libertária de jovens poetas, recusando rótulos e receitas, subvertendo a caretice em todas as suas versões. Entretanto, só conheci Helô, pessoalmente, em Nova York, na virada de 1984 para 85, quando o país fervilhava, bipolar, passando do entusiasmo cívico nas ruas pelas diretas à contrição resignada no Colégio Eleitoral: o máximo que mais uma transição pelo alto nos autorizava a celebrar era a vitória de Tancredo Neves, e era muito.

Esse relato sugere uma relação fácil e igualitária, que se traduziria em parceria e amizade. Não começou assim. Sou membro de uma geração que chamava de senhor e senhora os mais velhos e as pessoas a que atribuíssemos autoridade. Dei aulas na pós-graduação da UNICAMP ao lado do professor Roberto Cardoso de Oliveira, um dos pais da antropologia social brasileira, e não conseguia tratá-lo por você, apesar de sua insistência, de sua simpatia inabalável, de sua simplicidade acolhedora. Quando me encontrei com Helô, na Universidade Columbia – queria saber sobre as pesquisas da professora Heloisa Buarque de Hollanda –, tive de tomar coragem para procurá-la. Ela me desarmou completamente. Aquele jeito franco, direto e democrático, me deixou desconcertado e me fez admirá-la mais ainda (Nelson Rodrigues falava da intimidade súbita dos cariocas), num momento em que a institucionalização acadêmica das humanidades no Brasil parecia cobrar mais formalidade e menos camaradagem – como se o ethos corrente nas trincheiras da luta política contra a ditadura não coubesse nas catedrais do saber. A progressão rumo a instituições sólidas, agora sob o Estado de direito, parecia, nas universidades, nos empurrar para trás, nos induzir a vestir máscaras que a geração 68 havia lançado na fogueira. Tacitamente, eu havia feito um juramento a mim mesmo, a que sempre permaneci fiel, sem nenhuma dificuldade: o baile de máscaras não seria minha praia. Jamais trairia esse legado da adolescência, mesmo que fosse só isso, um fiapo de rebeldia pueril. Aliás, aqui, vale abrir parênteses: no lançamento de um de seus últimos livros, ela terminou sua fala indagando à audiência, e eu tomo a liberdade de citar de memória: “Cadê a rebeldia? Onde ela está? Ficou pelo caminho? Quero saber é da rebeldia. O que hoje significa rebeldia?” Volto a 1984. Diante de mim, estava aquela professora, pensadora, pesquisadora, escritora, mulher, brasileira, internacionalista, feminista, militante 24/7 por suas convicções, que me devolvia as perguntas: “E você?” Logo me dei conta de que fazíamos parte da mesma fratria. A moldura formalista que minha insegurança projetava foi se dissolvendo aos poucos nos brunches festivos e generosos que nossa amiga Bela Feldman Bianco, minha colega da UNICAMP, oferecia em seu apartamento, no Sul de Manhattan, aos domingos.

Antes de voltar ao Brasil, estive ainda uma vez com Helô. Assistimos juntos, na Columbia, a uma palestra do professor Paulo Sérgio Pinheiro sobre os riscos a que a transição estava sujeita. Helô tinha outra virtude rara: combinava uma inextinguível disposição para confiar e prosseguir, com a mais realista lucidez. Autoengano não tinha lugar no espírito em ebulição que ela cultivava. Sem a angústia suscitada pelo realismo, talvez não fizesse sentido o otimismo da vontade.

Passaram-se muitos anos em que mal nos víamos, embora eu nunca tenha deixado de acompanhar suas entrevistas e seus livros, e de ter notícias dela por amigas comuns. Voltamos a nos encontrar com assiduidade em 2011, graças à iniciativa do saudoso Ecio Salles e de Julio Ludemir, que nos consultaram sobre a ideia – então ousada – de realizar uma festa literária das periferias, a FLUP. Embarcamos na viagem e nos tornamos padrinhos da FLUP desde a primeira edição, no Morro dos Prazeres, em 2012. Helô não só embarcava em projetos improváveis desde que comprometidos com a inclusão e a diversidade, o antirracismo e a crítica ao patriarcalismo, como concebeu e liderou muitas navegações desbravadoras.

 A entrevista de outubro de 2020, em que nos revezaríamos nas posições de entrevistador(a) e entrevistado(a), ficou restrita ao primeiro capítulo, em que coube a mim responder às perguntas. Nas semanas seguintes daríamos continuidade. As questões para Helô, Beatriz e Ilana eu já havia preparado. Por motivos que não recordo, coisas miúdas do cotidiano, compromissos sobrepostos, obrigações que a pandemia acumulava, fui informado de que teríamos de adiar, depois adiamos novamente, e nunca chegamos a gravar a sequência do projeto. Pensando em tudo o que aconteceu, desde então, sobretudo ante a perda de Helô, em homenagem à sua memória e porque as perguntas traziam consigo considerações pertinentes sobre sua trajetória e sua obra, concluo esse breve testemunho compartilhando as questões a que ela não teve oportunidade de responder – imaginar as respostas nos fará tê-la conosco, mais uma vez. E isso basta.

Perguntas para Helô:
01. Uma vida de transgressões criativas e antecipações visionárias representa, do meu ponto de vista, a consolidação de uma trajetória intelectual (pública), trajetória, felizmente, em pleno curso, em pleno vigor. Uma de suas marcas, entretanto, parece ser a de afastar-se tanto dessa identidade (ou rótulo) quanto das limitações acadêmicas. Por outro lado, raras vezes conheci alguém tão apaixonada, encantada, que valorizasse tanto a universidade e seu potencial. Isso me leva a concluir que academia e universidade não são a mesma coisa e, pior, podem se chocar. Como desatar esse nó? O que esse imbróglio significa?

02. Conheci poucas pessoas tão engajadas, politicamente, em sentido amplo, quanto você. Ao mesmo tempo, certamente poucas são tão livres, independentes, empreendedoras de si, com carreiras solo – entretanto, sempre em coletivos, sempre agregando, sempre compartilhando, sempre intervindo em questões públicas e formando o debate público. Como você pensa a relação entre autonomia e engajamento, impulso individual (afetivo, reflexivo, valorativo) e envolvimento orgânico em movimentos, coletivos, entidades, instituições (até mesmo partidos ou campanhas)? Claro que há tensões. Você não parece lhes dar muita importância. Ou estou enganado? Como você lida ou elabora essa questão?

03. Paixão (valor, afeto, convicção) por vezes se choca com estratégia ou tática, o cálculo, a prudência, a política. Como você lidou com os momentos em que a voz e o desejo tiveram de ser sacrificados em benefício da realização dos objetivos ou do êxito dos projetos? Convicção e responsabilidade, a dupla ética weberiana, como a afetou? Você vestiria o fardão de Raquel de Queiroz?

04. A Heloisa que privilegia o método, que se vê como arquiteta ou cenógrafa, poeta dos espaços, criadora da editora Aeroplano, da Universidade das Quebradas, que ama gerir e empreender, que inventa repertório, elenco e dramaturgia, que se inscreveu como personagem na história cultural do país e do Rio, parece o oposto da mulher popular evangélica conservadora, que põe sua energia na resignação. Como seu olhar generoso e empático vê essa população? O que seu trabalho, seu itinerário, sua obra, sua performance oferecem a essa massa de gente? Que lugar esse público ocupa em seus planos de reflexão e ação?

05. O ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, despedindo-se há pouco do Senado e da política, disse que não há sucessão na política: as causas permanecem (eventualmente se renovam), os políticos passam. Você foi e é mais do que uma pessoa devotada a causas. Foi e é criadora de causas. Mesmo assim, você pensa em sucessão? Pensa e prepara novas gerações?

06. O PACC e o futuro: o que está sendo gestado? O que virá? Houve os novos poetas, a valorização das periferias, os novos feminismos, o mundo evangélico, e agora?

* Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e escritor brasileiro. Atualmente é professor da Pós-graduação em Literatura da UFRJ e já lecionou na UERJ, no IUPERJ e na UNICAMP.
Poesia
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PARA A TITULAR DOS MEUS AFETOS

Sabe amiga, tem dia que a falta é tanto
Sem acalanto
Um vazio se instala
Estala
Grita em silêncio
Ecoa na aragem
Desta paragem
De ventos parados
Da ausência barulhenta
De tempos idos
Tão longe Tão pertos
Que nem a memória alcança
De tão pertos os idos
De tão pertos os já tão longes
Os vividos e tão hoje sentidos
A finitude não se anuncia
Por metáforas. Mas por perdas
Sem nos darmos conta que cada minuto de vida e vida que se esvai
A perda da amada dói mais
Que o presságio que nós estamos indo bem
Filha de Iemanjá
Helô volta para a espuma do mar
Sua sedução e estímulo
Ficam? Será?
Helô e a Universidade das Quebradas
E a esperança nas jovens da comunidade
Que querem tanto dominar o verbo
E nosso arauto feminista
por um mundo libertário
Imortal bagunçou a Academia
Estou órfã da alegria
Helô não afirmava
Perguntava
“Maricota, o que você acha?”
Se entusiasmava
Com o funk das meninas
Com as jovens
Eterna aprendiz
E agora que será de mim
De nós sem Helô?

Mary Maricota Garcia para a amada Helo Teixeirinha

Foto divulgação do Filme Heloisa Teixeira em Helô
Foto divulgação do Filme Heloisa Teixeira em Helô
Notas
Mary Garcia Castro, socióloga que aos 84 anos se inclina para a poemetização. Pesquisadora visitante emérita na UERJ/PPCIS/NUDERJ com bolsa Faperj. Associada à FLACSO Brasil no campo de juventudes e gênero. Avó de 3 netos e 1 neta.
Entrevista
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OS CAMINHOS DE CORRESPONDÊNCIA COMPLETA ATÉ A LITERATURA FEMININA

Conversar com Heloisa Teixeira sobre Ana Cristina Cesar é abrir delicadamente uma correspondência que ainda pulsa. Entre Londres, a PUC-Rio e as praias da zona sul do Rio de Janeiro, Ana Cristina atravessou o sufoco da ditadura carregando consigo um pacto silencioso com a tradição literária. Nesta entrevista, revisitamos, em uma conversa generosa, a geração de Ana Cristina, um diálogo enriquecedor, mais de quarenta anos após a publicação do minilivro Correspondência Completa, de 1979. Helô reconstrói o clima festivo e tenso da Poesia Marginal, o retorno de Gil e Caetano, a perplexidade pós-AI-5 e, sobretudo, o refúgio que Ana Cristina encontrou na escrita. Nesta entrevista oito meses antes de sua morte, Heloisa Teixeira relembra a parceria e sua contribuição para a criação daquele livro de 1979, além de destacar a importância de Ana Cristina Cesar como referência de literatura feminina na poesia brasileira contemporânea.

Foto da entrevista do dia 30 de julho de 2024 via Zoom
Foto da entrevista do dia 30 de julho de 2024 via Zoom

Bruno Oliveira Couto: Minha primeira pergunta é sobre o contexto da geração da Ana Cristina. Em 1969, Gilberto Gil e Caetano Veloso foram exilados e foram viver em Londres. No mesmo ano, Ana Cristina tinha 17 anos e estava no projeto missionário na Inglaterra. Sabemos que, em 1971, ela começou a graduação em Letras na PUC-Rio, e, em 1972, Gil e Caetano retornaram ao Brasil. Como você descreveria o sentimento da juventude nessa época com o retorno deles, especialmente no círculo da Ana?

Heloisa Teixeira: Falando especificamente da Ana Cristina, acho que foi um momento muito eufórico. Tivemos 1967 e 1968 com o Tropicalismo, que chegou com tudo e, depois, desmoronou. Foi um projeto que colapsou e deixou as pessoas desorientadas. Mas eles voltaram em 1971 ou 1972?

BOC: Eles voltaram em 1972. Ela começou na PUC em 1971.

HT: Em 1971, quando ela entrou na PUC, já havia uma conjuntura pedagógica muito interessante. Ana era muito próxima da professora Clara Alvim, que era casada com Chico Alvim, poeta da Poesia Marginal. Através de Clara, ela entrou em contato com o grupo do Silviano Santiago. Eles estavam muito conectados ao que estava acontecendo na época. Então, o retorno de Gil foi como um recomeço. Era como se algo novo estivesse começando, porque o período entre 1968 e 1971 foi muito sombrio.

Na PUC, já havia uma agitação considerável, com exposições de poesia. A poesia tinha uma vantagem, pois, naquele momento, não era alvo de censura. A censura não se preocupava tanto com a poesia, então os poetas podiam se expressar com mais liberdade. Isso permitiu que a poesia crescesse bastante. Era algo que não estava no radar da censura, porque era fora dos padrões convencionais de oposição. Assim, a poesia emergiu como uma celebração, e o retorno de Gil foi como combustível para essa festa.

A PUC, por ser uma instituição de elite na zona sul, talvez tenha se mantido um pouco à margem da censura. Ali, havia espaço para exposições de poesia, e essa arte começou a florescer naquele ambiente. Mais tarde, o Cacaso também começou a dar aulas lá. A PUC se tornou o ponto de partida para a poesia, o que não aconteceu na UFRJ, na UERJ, ou em outras universidades. A PUC foi o berço inicial da Poesia Marginal, embora ela tenha migrado para outros lugares depois.

Mas, no começo, a poesia nasceu ali, em um clima festivo. As manifestações e festas estavam entrelaçadas de maneira conceitual, algo muito próximo. Não era exatamente festa, mas também não era ativismo. Era um “tricô” importante, algo que se consolidou em espaços como a praia e, depois, a PUC. Por isso, encontramos a Ana Cristina nesse ambiente. Mas você tem outra pergunta, não é?

BOC: Minha segunda pergunta vem de uma fala do Chacal no filme Bruta aventura em versos. Ele disse que “o sentimento dos anos 70 era o de abrir novos caminhos, outros caminhos que não os da tradição”. Ele completa dizendo: “Nós achávamos que tínhamos que fazer um pacto com a revolução, e não um diálogo com a tradição”. O que você pensa sobre isso?

HT: Espera aí, repete essa frase.

BOC: Claro. Ele disse: “Nós achávamos que tínhamos que fazer um pacto com a revolução, e não um diálogo com a tradição”. É uma fala do Chacal. O que você pensa sobre isso, considerando que a Ana Cristina, por exemplo, estabeleceu um contato forte com a tradição literária e os clássicos? Como você enxerga esse confronto entre tradição e revolução?

HT: Eu acho que nenhum dos dois está inventando a roda, porque tudo isso é uma ideologia contracultural, um pacto contra a revolução comportamental, social, etc. É um pacto forte da contracultura, principalmente a norte-americana, que tem figuras como Ginsberg (Allen Ginsberg), com um conjunto de expoentes importantes. Na América Latina inteira, houve poesia marginal nos mesmos moldes de confecção artesanal de livros, evitando o mercado. Era uma ideia de ser antissistema muito forte, muito forte mesmo. Foi uma linguagem que, depois… não sei se me expresso bem, mas, em 1968, o AI-5 foi como um golpe na nuca: você não sabia para onde ir, ficou perplexo.

O Charles encarna essa perplexidade, porque ele é meio bobão, né? De todos, ele é o mais “Pateta”, digamos. Eu acho o Charles, para falar a verdade, o melhor. Mas a atitude, a performance dele, era uma performance “Pateta”. É o Charles quem mais encarna esse sentimento pós-AI-5: o que fazer? Para onde olhar? Vão me pegar. Estão me observando… o que eu estou fazendo? Vou fugir, vou. Sabe? Essa perplexidade, que a gente chama de “geração do sufoco”, é encarnada para mim magistralmente. O Chacal, por exemplo, era proativo, era malandrinho; ele não era “Pateta”. “Pateta” era o Charles, que foi pego de surpresa, ficou pendurado, sem saber o que fazer.

A alternativa de se filiar ou de se deixar influenciar, ou de se fascinar pela contracultura internacional, foi uma saída para a perplexidade do AI-5. Não era uma oposição direta à ditadura, o que criava uma brecha, um espaço, mas era uma posição diretamente contra o sistema. A ditadura e a tradição literária estavam dentro desse sistema. Eles nomeavam sua postura como uma luta contra o sistema, contra o sistema editorial e literário, que buscava a imortalidade. Eles se caracterizavam como descartáveis – qualquer coisa que agredisse o sistema, eles abraçavam.

Essa geração usou muitos elementos que vemos na contracultura norte-americana, mas não de forma igual. Lá, havia um Ginsberg, uma intervenção no sistema. Aqui, não: saltaram fora, recriando uma literatura com um “pacto com a revolução” que não tinha conexão com a tradição. O pacto com a revolução contracultural não era a mesma coisa da “revolução” de 64, que a gente ainda via como uma revolução. Era um pacto com mudanças comportamentais e culturais.

Outra coisa importante que lembro agora é que muitos do grupo morreram precocemente, o que é interessante de observar. Eles não eram radicais nas drogas, como os americanos, e você não tinha um Mick Jagger aqui. O pacto era mais suave, um pacto com a ideia de comportamento que já tinha ocorrido. Veja, por exemplo, Bruno, a diferença entre a revolução comportamental de Gil e Caetano, que usavam batom, faziam rebolado, falavam sobre homossexualidade e travestilidade. Na poesia marginal, no entanto, era “menino e menina, papai e mamãe” – tudo certinho. Eram jovens universitários, coisa que não ocorria na radicalidade norte-americana, onde havia o “drop out”, o afastamento da universidade. Aqui, essa geração não saiu de casa, não foi para a estrada. Foi tímida, mas estratégica, o que eu adoro, pois era uma contracultura estratégica, e não uma contracultura real, como pregavam os ideólogos.

Ana Cristina Cesar, por exemplo, era muito influenciada pelo contexto familiar. Ela vinha de uma família conservadora, protestante, com pai e mãe religiosos, o que a tornou uma figura muito contida. Sua questão homossexual, por exemplo, não se manifestou até o fim. É complicado tratá-la agora como uma artista queer, porque não me parece que ela gostaria dessa classificação. Ela poderia ser uma inglesa lésbica, algo muito mais tradicional. Colocá-la como exemplo queer é ingênuo; ela nunca teria gostado disso. Mesmo sem ser católica ou protestante praticante, ela tinha uma sólida base familiar.

A questão moral e ética era marcante para ela. Bruno, voltando ao ponto: o que mais me interessa em Ana Cristina são os personagens que ela se autoimpõe. Nas imagens do meu livro Correspondência Incompleta, por exemplo, ela adota a persona da menininha. Aqueles retratos dela são uma tese em si, não precisa falar nada. Ela falava a partir do lugar da literatura, que é enlouquecedor. Imagine, Bruno, não falar sobre seu próprio “eu”. O “eu” de Ana Cristina parece ter sufocado. Ela encontrou, na escrita, um espaço onde podia sonhar e testar seus limites. Escrever era seu passe livre naquela família repressora. Na escrita, ela voou.

BOC: É muito curioso porque muitas pessoas que leem Ana Cristina Cesar não entendem, por exemplo, as expressões dos desenhos e como a mãe dela datilografava as historinhas que ela escrevia.

HT: Sim, era um ponto de fuga que ela encontrou dentro da família.

BOC: Exatamente! Ela, ainda criança, escrevia sobre um Conde que “tinha um Rei na Barriga”, o que é muito interessante. Ela provavelmente ouvia constantemente que era egocêntrica, e as pessoas muitas vezes não enxergam o valor nisso. É realmente curioso.

HT: Claro! Acho que esse aspecto familiar da Ana Cristina é muito mais revelador do que o contexto nacional em si. Parece-me que Ana Cristina nunca aderiu completamente à Poesia Marginal. Ela gostava de estar no grupo, de ir para a Fazenda do Lui, de namorar alguns poetas, de conviver com eles, mas não vejo isso refletido em sua obra. Ela era muito mais ligada à tradição literária inglesa que sua mãe, professora, lhe transmitiu. Se você buscar uma filiação literária para Ana Cristina, não será no modernismo brasileiro, nem entre os seus colegas marginais. Ela tem uma escrita muito mais próxima da tradição inglesa, e ela lidava muito bem com isso. Era uma poeta extraordinária.

BOC: Exatamente! E por isso perguntei sobre o rompimento com a tradição. Acredito que isso é algo muito forte. As pessoas esquecem que Ana Cristina também foi professora, o que lhe deu uma bagagem canônica muito rica.

HT: Sim, muito forte! Ana era uma menina estudiosa, foi assim que me apresentaram a ela. Quando Clara Alvim me apresentou, disse: “Eu tenho uma aluna muito aplicada que também escreve poesia, quer ver?” Ela tinha esse perfil de estudante dedicada, filha de uma professora de literatura inglesa e de um pai que lecionava sobre religiões. Eram dois professores sérios, ligados à tradição. Ana sempre se expressou através da literatura, desde pequena. Como você mesmo observou, já aos sete anos ela usava a literatura para dizer o que não podia verbalizar de outra forma. Isso, do ponto de vista psicológico, é muito interessante, mas também angustiante. Ela sempre se comunicava através de personagens, nunca diretamente como ela mesma.

BOC: Interessante! Esse “fantasiar-se” através da literatura parece realmente central para ela.

HT: Exatamente. Ana Cristina nunca falava de seu ponto de vista pessoal, falava sempre a partir de um lugar literário, como uma forma de escapar. E isso a distanciava da Poesia Marginal, que é muito focada no “eu”, no cotidiano. Na obra de Ana, não vemos o cotidiano. Sua vida pessoal era um tanto sombria, cercada de obrigações familiares. Por exemplo, ela tinha que ler a Bíblia para sua avó cega todos os dias. Esse tipo de compromisso pesava muito nela. Ela considerava isso normal, nunca questionava. Ela tinha um pacto com a família, com a tradição. Sua relação com a literatura inglesa era grande, claro, devido à influência da mãe, mas suas escolhas literárias também eram muito próprias. Ela procurava escritoras lésbicas, figuras literárias que a assustavam ou que desafiavam convenções. Mas sempre dentro da literatura, nunca diretamente da vida dela.

BOC: Muito se fala que o ponto de encontro da geração dos poetas marginais é uma rejeição à estética cabralina. Como você enxerga isso?

HT: Acho que faz sentido. Foi uma clara opção por bandeira, em contraste com João Cabral de Melo Neto. A Poesia Marginal buscava colocar a vida dentro da arte, enquanto em Cabral há uma separação imensa entre vida e arte. Ele esculpia a vida, trabalhava a partir dela de uma maneira muito elaborada, algo que ia contra a busca da Poesia Marginal por uma expressão mais direta da vida.

BOC: Quando você mencionou “Bandeira”, fiquei na dúvida se estava fazendo um jogo de palavras com o poeta Manuel Bandeira, que, de fato, tem uma estética muito diferente da de Cabral.

HT: Não, eu não estava, mas faz sentido. Ana Cristina, no entanto, era mais ligada a Drummond do que a Bandeira, eu diria.

BOC: Talvez um Drummond mais discreto?

HT: Isso, exatamente. Tudo em Ana era mais discreto, muito mais sutil. Ela nunca podia ser escancarada, e essa palavra “discreto” realmente define muito bem a sua postura literária.

BOC: Um texto frequentemente utilizado para criticar o “anticabralino” é Poesia e Composição de 1952. Neste texto, João Cabral menciona a palavra “homem” 18 vezes e o plural 10 vezes, totalizando 28 referências ao termo “homem” ao longo do texto. Em paralelo, Cabral é conhecido por seus críticos como o “engenheiro”. Curiosamente, uma pesquisa da Unesco de 2018 revelou que 90% das mulheres acreditam que a engenharia é uma profissão masculina. Cabral, portanto, é frequentemente associado à figura do homem, ao masculino. No início da nossa conversa, você mencionou que há um movimento para enquadrar Ana Cristina Cesar na literatura queer. Atualmente, há um debate intenso na universidade sobre questões éticas e estéticas. Alguns professores defendem a pureza da literatura e focam na estética, enquanto outros destacam questões identitárias, como literatura homoafetiva, queer e feminina. Parece que Poesia e Composição de Cabral é usado para desviar a discussão estética e focar em uma crítica ética que ele estaria produzindo. Qual é a sua opinião sobre isso?

HT: Acho lamentável essa abordagem. É importante distinguir entre as questões. A descoberta identitária, por mais relevante que seja, não deve misturar-se com a apreciação da qualidade poética. Cabral, de fato, tem uma perspectiva muito masculinista e não dá espaço para a mulher, que permanece silenciada em seu trabalho. No entanto, ele é um grande poeta. É problemático tentar rebaixá-lo ou julgá-lo unicamente a partir de uma perspectiva identitária. Hoje, é provável que Cabral não escreveria da mesma forma, pois o contexto cultural e a consciência evoluíram desde os anos 50 e 60. Naquela época, a consciência sobre a presença feminina na literatura era limitada; eu mesma fiz uma pesquisa sobre isso, e as mulheres eram extremamente raras na literatura dos anos 60. Muitas delas não se declaravam feministas, mesmo quando suas ações refletiam esse posicionamento. A Rita Lee, por exemplo, mesmo desafiando normas de gênero, negava ser feminista. Portanto, a consciência identitária que temos hoje não existia na época de Cabral, e isso deve ser levado em conta ao avaliar seu trabalho. A análise deve contextualizar o momento histórico em que ele escrevia, sem julgá-lo por padrões atuais. A literatura masculina de então estava condicionada por esse contexto histórico.

BOC: É interessante que, no acervo de Ana Cristina Cesar, há o Museu De Tudo do Cabral, que está todo riscado e comentado…

HT: Ana era apaixonada por literatura; para ela, a literatura era o espaço onde podia se expressar, se nomear e se contar. Ela lia e escrevia compulsivamente, utilizando a literatura como um refúgio e um lugar seguro. Era um espaço onde ela podia ser quem era, algo que não conseguia fora da literatura. O espanto é ver como a literatura foi um refúgio importante para ela, uma jovem lésbica que poderia ter encontrado felicidade e não ter tomado a decisão trágica que tomou.

BOC: O livro Correspondência Completa é estruturado em formato de carta, um gênero textual frequentemente associado à expressão feminina, muitas vezes caracterizado por fofocas, mentiras e um vocabulário informal. Ana Cristina Cesar se refere a artistas como Shakespeare e Walt Whitman e inclui relatos menores em comparação com textos canônicos. Você acha que Ana utiliza o gênero epistolar para responder à crítica que Cabral levanta e ao que ele considera cânone?

HT: Não, eu acredito que Ana não escreve cartas no sentido convencional; ela escreve Literatura. E, como ela mesma diz na orelha de Correspondência Incompleta, “para mim, cartas são mais importantes do que a literatura”. O gênero da carta é Literatura, e se você ler as cartas em Correspondência Incompleta, verá que um mesmo fato é narrado de quatro formas diferentes, uma para cada amiga. As cartas não são sobre a vida cotidiana, mas sobre a literatura que ela está criando. Ela diz o que cada uma quer ouvir. Para mim, ela fala de um jeito; para a Clara, de outro. É impressionante como essas comparações mostram que ali ela não está simplesmente escrevendo uma carta. Uma carta geralmente transmite uma informação direta, como “nasceu uma Margarida aqui do lado”, mas ela escreve quatro versões diferentes disso. O papel da carta na vida de Ana Cristina não é a intimidade, a fofoca ou o afeto, mas a carta literária, a que vai ser publicada.

O contexto de Correspondência Completa foi o seguinte: eu estava passando um fim de semana em Búzios e, enquanto estávamos inventando um livro para Ana, sugeri que fizéssemos um livro que não existisse. A ideia era criar um livro chamado Correspondência Completa com apenas uma carta. Ana já tinha milhares de cartas, então havia uma ironia no título: uma carta só. Criamos um livrinho pequeno, fizemos a capa em casa e utilizamos um estilo de selagem que era comum para material pornográfico em banca de revista na época. Então, a gente copiou isso e botou uma coisa muito pior para os bibliógrafos, a segunda edição e ficamos as duas rindo porque achando que os bibliógrafos, os pesquisadores iam procurar a primeira edição o resto da vida e não tinha, a gente começou pela segunda edição para chatear os bibliográficos. Foi um livro que desafiou o sistema literário formalmente e de conteúdo.

Ana escreveu uma carta para mim e para Armando, sua mãe e pai, respectivamente. Armando chegou tardiamente à vida de Ana, mas teve um papel importante como seu preceptor. Ele era um poeta da Práxis, um movimento que radicalizava o concretismo e era mais formal e político. Sua influência em Ana Cristina foi significativa, mesmo que ele não tenha sido incluído nas antologias de Poesia Marginal. Ana pediu a proteção paterna de Armando, o que é notável do ponto de vista literário, considerando a combinação de Ana Cristina com a Práxis.

Esse livrinho que você escolheu é brilhante. Ele aborda muitos temas e, se você o analisar mais a fundo, verá que ele discute tudo: o cânone, a série literária, as influências de Ana, e até mesmo a ideia de elevar a carta à literatura.

Heloisa Buarque de Hollanda e Ana Cristina Cesar em Búzios, c. 1970, por Cecília Londres (Arquivo Ana Cristina Cesar/Acervo IMS).
Heloisa Buarque de Hollanda e Ana Cristina Cesar em Búzios, c. 1970, por Cecília Londres (Arquivo Ana Cristina Cesar/Acervo IMS).

BOC: Fala de gênero quando ela diz “my dear”, é uma discussão de gênero de interlocutor. Quem é esse destinatário?

HT: Exatamente, a discussão sobre o interlocutor é fundamental. Acho que você fez uma escolha brilhante ao selecionar este livro.

BOC: Minha grande questão está relacionada à maneira como Cabral argumenta que a poesia não precisa de inspiração ou imaginação, em contraste com Ana Cristina Cesar, que institucionaliza a fofoca. Quando ela menciona estar cansada do “pau do Thomas”, há uma fofoca sem valor literário aparente, mas há uma construção estética interessante.

HT: Sem dúvida, isso se torna literatura. Ana não dá um passo em falso; ela mobiliza você. Ao encontrar o texto da Ana, você se pergunta: onde está ela?

BOC: É curioso que a carta seja assinada por Júlia, mas a capa do livro, que tenho em fac-símile, está assinada por Ana Cristina Cesar.

HT: Fui eu quem fiz! Ficou muito bonito. A Companhia das Letras fez uma reedição, mas a cor original do livro, que era Amarelo Kodak, foi alterada para creme, pois não sabiam a cor original.

BOC: O que você acha da discussão entre literatura feminina e literatura feminista atribuída a Ana Cristina Cesar?

HT: Vamos ver, então, o que estamos chamando de feminismo. Feminismo é um ativismo, é uma forma de juntar uma porção de gente, pegar uma causa ou uma questão — seja o aborto, seja a falta de presença no mercado cultural, enfim, seja qual for a causa — e tentar lutar por ela. Isso é o feminismo: uma luta por direitos humanos, por direitos civis. Aliás, desculpe, uma luta por direitos civis que visa mudar a sociedade.

Agora, chamar uma literatura de feminista é complicado, pois isso implicaria um ativismo interno. Eu não vejo isso. Vejo uma literatura de mulher, que coloca a questão: “Existe literatura feminina porque as mulheres existem?” Ela foi atrás do caso das poetas que já existiam, não me lembro qual foi o nome, mas ela viu os prefácios que foram feitos para a Cecília Meireles, se não me engano, ou algo equivalente. Ela percebeu que toda a crítica masculina em relação às mulheres dizia que elas escreviam flores, que era gentil, que a literatura delas era empenhada. Tecnicamente boa, mas era uma discussão muito voltada para a delicadeza. Mulher não é isso. Esses homens estavam reduzindo a mulher a um sentimento ou uma característica, algo que não existe. A literatura masculina está pressionando a literatura feminina. Ela (a crítica) dizia que as mulheres até hoje fazem um estilo de mulher, mas não falam de temas de mulher. E temas de mulher não existiam até então. Ana Cristina César, em seu texto, coloca um pouco essa questão, mas não muito. Ela fala de ginecologista, fala um pouco de sexo de maneira leve, mas não explicita.

Se você abrir a última leva de poetas que está no As 29 poetas hoje, verá que os temas abordados são menstruação, sexo do ponto de vista da mulher (e não do homem, como sempre foi), silêncio, parto. Há um poema sobre parto da Marília Kosby que é extraordinário. Ela é o que? Como se chama a mulher que faz parto? Não é parteira, mas tem outro nome… Bom, enfim, ela trabalha com gado. Ela tem uma fazenda e realiza partos de vacas, então descreve o nascimento de um bezerro, com tudo o que envolve, não é só “saiu um bezerro de dentro de uma vaca”. Ela faz esse poema, que é magistral, e impacta a ideia de parto, imediatamente, não só como um parto, mas também sobre o que é ter um filho na vida de uma mulher, um filho que vai durar até ela morrer, porque não para. Você teve um filho? Ele será seu o resto da vida, vai dar trabalho, vai dar problema, e não vai acabar nunca. Esse parto do bezerro, por exemplo, é algo exemplar, é um tema de mulher, que Ana Cristina pedia, e que essas novas poetas estão trazendo. Mas, na obra de Ana Cristina, não há ainda muitos temas de mulher; há sombras de temas que, só agora, estão sendo escancarados com essa quinta onda feminista. No entanto, eu não diria que o poema da Marília é um poema feminista. Eu estou fazendo uma leitura feminista, mas você pode ver esse poema e interpretar de outra maneira, sem chegar à afirmação de ser um poema de mulher.

BOC: Mas você não acha que, por exemplo, quando Ana Cristina cita Ângela Melim com “estou cansada de ser homem”, ela está respondendo a essa pergunta?

HT: Que pergunta?

BOC: A pergunta sobre a existência de uma literatura feminina, que você mencionou.

HT: Vamos analisar o que entendemos por feminismo. O feminismo é um ativismo, é uma forma de reunir pessoas em torno de uma causa, seja ela o aborto, a falta de representação no mercado cultural, entre outras questões. É uma luta por direitos civis e humanos que busca mudar a sociedade. Chamar uma literatura de feminista implica em um ativismo interno, o que eu não vejo presente. Vejo, sim, uma literatura feminina que levanta a questão: “existe uma literatura feminina?”.

Ana Cristina Cesar observou a crítica masculina que desconsiderava as mulheres como autoras relevantes, reduzindo suas obras a temas delicados e características femininas. Ela questionou a pressão da literatura masculina sobre a literatura feminina. Ana Cristina identificou que, mesmo que as mulheres escrevam de um ponto de vista feminino, os temas abordados ainda não refletem de maneira ampla a experiência feminina. Ela mencionou temas como ginecologia e sexo, mas de forma sutil.

As novas poetas, no entanto, estão explorando esses temas de maneira mais explícita. Por exemplo, em As 29 poetas hoje, encontramos temas como menstruação, parto e sexo do ponto de vista feminino. Um poema notável é o da Marília Kosby sobre o parto de um bezerro, que oferece uma visão impactante sobre o nascimento e a maternidade. Embora eu faça uma leitura feminista desse poema, ele não é necessariamente um poema feminista. O que vemos é uma evolução na exploração de temas femininos na literatura, que começou com Ana Cristina Cesar e está se aprofundando agora com a nova geração de poetas.

BOC: Sou professor de português para estrangeiros e dou aulas para pessoas de todo o mundo. Tenho uma conexão com a classe média desses países. Uma vez, durante uma aula para uma russa, no intervalo com outros professores, ela disse: “Ah, eu preciso ir à farmácia.” Imediatamente perguntei: “Você está se sentindo bem? Precisa de ajuda?” Ela respondeu: “Não sei se posso falar sobre isso perto de você, porque você é homem.” Ela tinha um pudor em mencionar que estava “naqueles dias” na minha presença.

HT: Bruno, as mulheres enfrentam muitas dificuldades e restrições. Ana Frango Elétrico tem um poema maravilhoso sobre menstruação. Isso reflete a questão que Ana Cristina Cesar abordava: sua posição na vida não era uma posição ativista, embora ela tivesse uma consciência muito aguda das questões feministas. Ela era mais uma pensadora do que uma ativista, e sua poesia não se expunha explicitamente a essas questões. No entanto, você pode fazer uma leitura feminista de sua obra. A voz feminina na sua poesia é muito poderosa e curiosa, e mesmo que não haja uma ação explícita, há uma presença feminina forte.

BOC: Em algum momento da nossa história contemporânea, entendemos que certos gêneros textuais, como manifestos com frases no imperativo e comandos claros direcionados aos leitores, se tornaram inviáveis, principalmente aqueles que buscam indicar uma nova ordem estética. Você acha que Correspondência Completa possui alguma pretensão nesse sentido, como um texto-base para um manifesto relacionado à Poesia Marginal?

HT: Não, não acho que tenha essa pretensão. O projeto do livro, Correspondência Completa, foi inicialmente irônico. Era uma tentativa de criticar o sistema literário e a produção literária em geral, abordando cada aspecto com ironia. Não havia a intenção de criar um manifesto. A ideia era mais uma crítica do que uma proposta de nova ordem estética.

BOC: Quando penso na Poesia Marginal, considero que Correspondência Completa antecipa todos os outros poetas dessa geração. Há um anticabralismo muito forte no livro, uma discussão sobre gênero, e uma mistura da música popular com o cânone literário que não era comum na poesia brasileira antes. Ana Cristina coloca Roberto Carlos em primeiro plano e Shakespeare e Whitman em segundo plano, até escreve o nome de um deles errado. Isso expressa a vontade da juventude de forma intensa. Por isso, pensei que Correspondência Completa tem uma forte conexão com a Poesia Marginal. Mas você não vê isso como um manifesto?

HT: Não, não considero um manifesto. A obra foi criada e, ao longo do tempo, você pode interpretá-la como um manifesto. A interpretação depende da leitura que se faz do livro. Eu, do ponto de vista prático e real, estava com Ana Cristina criando o livro, e não pensávamos nele como um manifesto. Era um trabalho mais intuitivo e brincalhão. No entanto, é possível recuperar e reinterpretar o livro sob essa perspectiva.

BOC: Parece que todos os princípios presentes em Correspondência Completa foram retomados por poetas como Chacal e Cacaso. Há um humor e uma leveza que também remetem à poesia modernista da primeira fase, o que é muito interessante. Mas eu sempre me pondero: se eu tivesse que definir as características da Poesia Marginal, começaria por Correspondência Completa. Só mais uma pergunta, professora, prometo. Pensando na questão anterior, parece que Ana Cristina Cesar, com sua abordagem intelectual e formação acadêmica, estaria mais interessada em uma discussão profunda e em reivindicar uma nova literatura. Qual era, de fato, a literatura da época, e qual é o lugar que Ana Cristina ocupa nesse contexto?

HT: A nova literatura é uma retomada da questão que mencionei anteriormente: “qual é o limite mínimo entre arte e vida?”. Tenho certeza de que isso é o que a Poesia Marginal representa, e é algo que foi explorado em vários momentos da história. O modernismo também tentou fazer essa aproximação, mas não de forma tão radical quanto na Poesia Marginal. Essa aproximação entre vida e arte é uma questão estética complexa. Ana Cristina, apesar de pertencer social e culturalmente ao grupo da Poesia Marginal, não a vejo como uma poeta marginal em termos literários. Sua obra e sua vida não fazem a mesma pergunta que a literatura marginal faz.

BOC: Você comentou que as festas eram um ambiente importante na construção desse contexto. Você acha que, por ela estar em um espaço mais reservado, por causa da religião e da família, ela não se encaixava totalmente?

HT: Ela pertencia totalmente ao ambiente das festas, mas não aderiu a ele da mesma forma. Havia uma diferença entre pertencer e aderir plenamente.

* Bruno Oliveira Couto, graduado em Letras (Português-Literaturas) pela UFRJ, atualmente faz mestrado em Teoria e História Literária na UNICAMP. Sua pesquisa é dedicada a Ana Cristina Cesar e à Poesia Contemporânea.
Vale a pena ler de novo
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POLÍTICAS DA TEORIA

No segundo semestre de 2020, a Revista Z Cultural deu início à publicação de uma nova seção, Vale a Pena Ler de Novo, sob curadoria de Heloisa Teixeira, então Buarque de Hollanda. A ideia era republicar textos que marcaram época e valiam a pena ser retomados (como “Eztetyca da fome”, de Glauber Rocha) ou que dialogavam com questões contemporâneas (como o belo texto de Conceição Evaristo sobre o nascimento de sua escrita). Neste número que homenageia Heloisa, publicamos a apresentação do livro Pós-modernismo e política, que ela organizou em 1991 – um dos muitos ensaios de Helô que acreditamos merecer ser lidos e relidos, tanto pelo que diagnosticavam de sua época quanto pelo que nos dizem sobre o presente.
Equipe da Revista Z Cultural

É raro uma expressão causar tanto desconforto quanto o termo pós-moderno. Partindo do senso comum, é quase impossível escapar da marca antagonizante e pessimista que define este momento como o “fim da ideologia”, “cultura do consumo”, “amnésia histórica” ou apenas mais uma moda a esta altura já ultrapassada. Entre essas indagações, impõe-se, como inevitável, a pergunta sobre o seu caráter de mistificação ou mesmo sobre a existência ou não de um pós-modernismo. Na Europa, o debate, ironizado como a polêmica entre Frankfurters e French Fries, polariza-se entre as correntes alemã e francesa em suas versões mais extremadas, tendo como representantes Jürgen Habermas e François Lyotard. A primeira, empenhada no resgate do poder emancipatório da razão iluminista, identifica os pressupostos pós-modernos com a emergência de tendências políticas e culturais neoconservadoras. A segunda, determinada na valorização da “condição pós-moderna”, avalia com otimismo o declínio do prestígio das narrativas-mestres, como o marxismo e o liberalismo, e a liquidação dos traços iluministas do projeto moderno. Nos Estados Unidos, essa discussão se expande de forma contundente e pragmática, evidenciando uma consonância sintomática com os questionamentos, cada vez mais recorrentes, acerca da estabilidade do poder americano e com a estratégia de disseminação de um novo aparato cultural, o “sistema pós-moderno”, veículo de novas formas de hegemonia cultural e política.

No Brasil, como em geral em toda a América Latina, a ideia de uma cultura pós-moderna, expressão do capitalismo tardio, vem acrescida de um forte sentimento de inadequação, no sentido de ser uma “importação indevida”, e é experimentado, na maior parte das vezes, como uma tendência política e moralmente problemática.

As próprias variedade e amplitude que podem ser observadas nas discussões sobre o pós-moderno sugerem que não há apenas uma via de abordagem do problema, ou mesmo um eixo central de questões, mas, ao contrário, uma expressiva heterogeneidade de colocações, tensões e campos de interesse aí envolvidos. De forma geral, a nova sensibilidade pós-moderna dirige suas forças para a desconstrução sistemática dos mitos modernistas, questionando não só o papel do Iluminismo para a identidade cultural do Ocidente, mas também o problema da totalidade e do totalitarismo na epistemologia e na teoria política modernas. A agenda teórica pós-moderna abriga ainda um elenco de questões em torno dos efeitos gerados pela perda da credibilidade nas metanarrativas fundadoras e do processo de erosão e desintegração de categorias até então inquestionadas, como as noções de identidade e autoria, ou mesmo das ideias de ruptura, novo ou vanguarda que se constituíram como critério-chave da estética moderna, privilegiando os caminhos críticos apontados pela revalorização da história no exame das ideologias que estruturam as formações discursivas e os processos de construção das subjetividades.

Não me parece que as diversas polêmicas, ou mesmo as próprias formas de descrição das características pós-modernas, sejam isentas de uma forte coloração política. As possibilidades lógicas envolvidas nos julgamentos ideológicos sobre o pós-modernismo, ligadas quase invariavelmente ao tipo de avaliação que realiza sobre o projeto moderno, já definem, com nitidez, pelo menos duas atitudes opostas: uma que procura desconstruir o modernismo e resistir ao status quo, e outra que repudia o modernismo para celebrar o status quo, ou seja, um pós-modernismo de resistência e um pós-modernismo de reação. Este último é o que geralmente informa o senso comum sobre a noção de pós-moderno. E aquele que, liderado pelos neoconservadores, rejeita o modernismo em nome dos males da modernização e impõe uma cultura “afirmativa”. O pós-modernismo de resistência, por sua vez, surge como uma contraprática não só da cultura oficial do modernismo, mas também da “falsa normatividade” de um pós-modernismo reacionário. Preocupa-se com a desconstrução crítica da tradição em lugar de instrumentalizar apenas pastiches de formas pseudo-históricas, com a crítica das origens, não com uma volta a elas. Em resumo, procura problematizar mais do que manipular os códigos culturais, interpelar mais do que dissimular as articulações políticas e sociais.[1]

Na área específica da produção artística, entra em pauta o aspecto extremamente delicado da perda de uma negatividade crítica, muitas vezes percebida como “natural” da obra de arte, o que põe em xeque a eficácia de uma arte de vanguarda ou de uma literatura de oposição e, consequentemente, sugere a reformulação das ideias correntes acerca de sua função social. Por outro lado, registra-se também, na recepção da obra de arte, o declínio do que Jameson define como a “emoção hermenêutica” marcada pela ideia de uma fascinação “inerente ao objeto artístico diretamente vinculada à “natureza” de seus conteúdos e subtextos cuja densidade requer uma interpretação especializada. Esta emoção, que diz respeito à noção de profundidade da obra de arte, estaria sendo substituída por um novo tipo de percepção estética centrada não mais em “sentimentos” cognitivos, mas em níveis variados de intensidade receptiva.[2]

Outro tema nevrálgico desta agenda é o que se refere à quebra da divisão categórica entre as chamadas cultura culta e cultura de massa, discurso dominante da estética modernista entre o final do século XIX e os primeiros anos da década de 20 e que retorna, com novo vigor, nas duas décadas que se seguem à Segunda Guerra Mundial. Esse “grande divisor”, como define Huyssen, com todas as suas implicações morais, estéticas e políticas, poderia ser visto, na realidade, como a característica mais aguda da concepção de uma arte moderna e, como tal, um caminho mais eficaz para a definição do modernismo do que as várias tentativas de diagnóstico a partir de cortes históricos, periodizações e distinções paradigmáticas como vem sendo realizado pela crítica em torno da distinção moderno/pós-moderno.[3] Faz-se necessária, portanto, uma especial atenção às diferenças estruturais que orientam as relações do modernismo e do pós-modernismo com a cultura de massa e com as vanguardas, para que se possa compreender, de maneira mais acurada, o novo esquema de relações e configurações discursivas que informam a produção cultural mais recente.

De forma flagrante, o que se pode perceber como uma constante nesta polêmica é a necessidade inadiável de uma reavaliação extensa e radical dos pressupostos da arte moderna. Assim, menos do que uma ruptura entre dois projetos culturais e políticos — e nisso se vê a justeza do termo pós-moderno —, as novas políticas de produção cultural evidenciam uma constante negociação com os termos das várias modernidades possíveis.

Um dos conflitos mais calorosos e controversos que permeiam a polêmica pós-moderna é a defesa acirrada dos valores modernistas, pelas elites intelectuais, em nome de uma suposta bastardização da arte, em consequência da possível perda da profundidade da obra de arte e da fragilização dos limites entre a cultura de elite e a cultura de massa. O choque em torno da culturalização dos produtos artísticos é um exemplo eloquente e revelador de uma questão de fundo nem sempre explicitada com clareza: em que extensão esse debate pode ser percebido como um debate sobre a possibilidade, ainda que limitada, de se estabelecer valores democráticos no quadro de uma sociedade de consumo ou mesmo, ampliando a questão, como uma discussão sobre os valores e crises da democracia ocidental contemporânea. E é precisamente neste ponto que a questão pós-moderna na América Latina adquire maior interesse.

Já me referi anteriormente às frequentes recusas em se refletir sobre o pós-moderno no Brasil ou em qualquer dos países que se pensam a partir do modelo metrópole/periferia. No caso da América Latina, temos mais um complicador: o caráter altamente problemático da participação democrática e da multiplicação dos espaços públicos em sociedades até muito recentemente marcadas pelos estados militares. Assim, além da associação usual com as posições conservadoras e “politicamente incorretas”, que identificam o pós-moderno de forma direta com as ideologias do consumo e com as políticas neoliberais, em se tratando de países periféricos esse debate adquire intensidade e gravidade particulares.

Em toda a América Latina, são cada vez mais visíveis as alterações de base por que vêm passando o pensamento teórico e político-ideológico em relação à questão democrática. A lógica do conflito entre Estado e sociedade civil parece substituir a lógica da contradição e das vias revolucionárias, assim como os conceitos de classe e dominação política são reatualizados no debate sobre movimentos sociais e hegemonia. Põem-se de lado as explicações estruturais como aquelas que envolvem as ideias de subdesenvolvimento e dependência para insistir-se no tema do pacto político-social e na complexa problemática da democratização nos “países capitalistas de desenvolvimento médio”.[4] Por outro lado, a questão democrática nestas sociedades vem sendo intimamente comprometida pelos efeitos gerados por sua estreita inclusão no circuito internacional do capital financeiro, pela permanência quase inalterada dos mesmos blocos dominantes no poder e pela concentração intensiva da propriedade e da riqueza, o que torna a discussão sobre a crise da modernidade aparentemente supérflua, mas extremamente pertinente quando vista através da perspectiva da reavaliação da importância das instituições democráticas.

A temperatura política das esquerdas brasileiras frente à crise do socialismo utópico e às dificuldades concretas que se apresentam para a instauração de um socialismo real no país pode ser medida pelo comentário de Maria da Conceição Tavares sobre a reorientação do debate político de oposição hoje no Brasil:

As energias utópicas andam escassas, mas a ética e a democracia substituem com vantagem as certezas ideológicas. Hoje, no Brasil, a esquerda é unânime em relação aos direitos permanentes dos cidadãos e à necessidade de democratização política e partidária como forma de organização da sociedade. Dadas as dificuldades reais de modificação substantiva no que diz respeito aos direitos de cidadania, será preciso aguentar fortes conflitos.[5]

Por outro lado, a natureza colonial e neocolonial da cultura latino-americana coloca em cena a preocupação com o estatuto, e, mesmo com a sobrevivência de nossas histórias e culturas. Questões atualíssimas como o papel do letrado na colônia, a função do barroco no estabelecimento do Estado latino-americano e a própria relação da cultura com o humanismo renascentista, enquanto prática ideológica do Estado absolutista podem certamente contribuir para uma melhor avaliação do desconcerto ideológico gerado pelas políticas da colonização. Na mesma direção, a possibilidade, hoje aberta, de estabelecer-se, com clareza, a diferença entre a noção de história como feito e a de história como discurso sobre a história, ou seja, a compreensão do conceito de história enquanto instituição, pode contribuir de forma decisiva para o refazer das várias histórias “silenciadas” e para a proliferação de intervenções setoriais. […]

* Heloisa Teixeira foi uma das mais importantes intelectuais brasileiras contemporâneas. Ensaísta, escritora, editora e crítica literária, seu trabalho destacou-se nas áreas culturais e feminista e das relações raciais e das culturas marginalizadas. Formada em Letras Clássicas pela PUC-Rio, com doutorado pela UFRJ e pós-doutorado na Universidade Columbia, fundou o Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ) e criou a Universidade das Quebradas, projeto que articula saberes acadêmicos e periféricos. Em 2023, foi eleita membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 30 da instituição.
Notas
[1] Hal Foster. Introdução de The anti-aesthetic, Bay Press, 1995.

[2] Anders Stephenson. “Regarding postmodernism — A conversation with Frederic Jameson”, Social Text, n. 17, 1987, pp. 29-54.

[3] Ver a respeito o trabalho de Andreas Huyssen, After the Great Divide. Modernism, mass culture, postmodernism. Indiana Press, 1986.

[4] Carlos Rincón, “Marginalia sobre posmodernidad”, Trabalho apresentado no encontro “Crítica literária na América Latina”, Casa de las Américas, Havana, 1989.

[5] Maria da Conceição Tavares, Jornal do Brasil, Caderno Ideias/Encontros, 4 de março de 1990, p. 6.
Dossiê
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SESSENTA ANOS DO GOLPE DE 1964: INTERFACES ENTRE LINGUÍSTICA E LITERATURA

A literatura de testemunho e gêneros correlatos, tais como biografias e autobiografias, dominam o processo de construção da memória da ditadura militar instaurada no Brasil em 1964 e que perdurou até o final dos anos 70. São dezenas de narrativas dos que lutaram contra a ditadura ou foram por ela perseguidos, presos, supliciados, exilados, ou por causa dela perderam amigos, pais e irmãos. Uma produção incessante que continua até nossos dias, mais de meio século após o golpe.

Falam de si, de sua experiência, e falam pelos que não sobreviveram à ditadura ou sobre ela não conseguem falar. Testemunhas participantes, não meramente contemplativas, dos eventos que relatam, o que é uma característica demarcadora do gênero. Suas narrativas frequentemente atingem a fronteira do impensável, do que não se pode expressar por palavras.

O gênero está associado aos eventos traumáticos do século XX, em especial as duas grandes guerras e o Holocausto. É a escrita dos vencidos, dos derrotados, dos que perderam. Embora de natureza essencialmente pessoal, desencadeia processos de construção da memória coletiva ao evocar um passado traumático que a sociedade dos vencedores frequentemente faz por esquecer ou ocultar. Uma escrita naturalmente contra-hegemônica.

Os estudiosos da literatura de testemunho apontam como duas de suas características principais a ênfase no registro factual e histórico e a sinceridade dos relatos, que devem ser entendidos, no entanto, como exercícios da memória, com todas as armadilhas disso decorrentes. Uma escritura também memorialista.

Os estilos são em geral singelos e desprovidos de ambições estéticas. Não obstante, carregam na indignação contra iniquidades e atrocidades cometidas. E um forte compromisso com uma ética humanística. O apelo comum implícito nos testemunhos é o de que “nunca mais” se repita o que aconteceu.

Com frequência, o narrador expressa rancor e vergonha pelas humilhações sofridas e, mais sutilmente, sentimento de culpa por ter sobrevivido ou por não ter feito mais ou melhor por seus companheiros ou familiares mortos ou desaparecidos. É uma literatura de catarse. Tem, muitas vezes, função terapêutica, de elaboração de um trauma ou busca de sua superação.

As obras mais notáveis dessa literatura são justamente as marcadas pela função terapêutica, tais como É isso um homem, de Primo Levi, considerada paradigmática do gênero. Entre nós destaca-se Memórias do Esquecimento, de Flávio Tavares. Diz ele que tinha pesadelos recorrentes que só cessaram depois de escrever seu testemunho.

Capa de Querida família, de Flávia Schilling. Editora CooJornal, 1978.
Capa de Querida família, de Flávia Schilling. Editora CooJornal, 1978.

Na primeira fase dessa produção numerosa, predominaram entre nós os que chamo de livros-exílio. Com a instauração da ditadura, o exílio será a primeira vivência traumática de intelectuais, acadêmicos, pesquisadores e ativistas políticos, cassados, despojados de direitos políticos, demitidos de seus empregos ou na iminência de serem presos. E não eram dezenas e sim centenas de exilados, certamente passando da casa dos mil e quinhentos.

Memórias do Exílio, de Arthur José Poerner, foi publicado em Lisboa em 1976. Nos dois anos seguintes surgem Tempo de Ameaça, de Rodolfo Konder, cujo subtítulo é “(autobiografia Política de um Exilado)”, o primeiro tomo das memórias de Gregório Bezerra, exilado na União Soviética, onde permaneceu até a Anistia, em 1979, e Querida Família, de Flávia Schilling.

Livros-exílio refletem em primeiro lugar o espanto por se verem repentinamente afastados de seus amigos e famílias, destituídos de seus empregos e desprovidos de uma renda do trabalho. São narrativas de travessias, algumas longas e sem retorno, outras repletas de peripécias. Expressam carências, dificuldades de sobrevivência e de adaptação, e obviamente nostalgia e saudade. Alguns, como Bezerra, voltam a vivências anteriores ao trauma que os levou ao exílio e até à primeira infância, no intuito de melhor entenderem o sentido tomado por suas vidas.

O exílio seguirá habitando a literatura de testemunho pelos anos afora, mesmo nas obras em que o tempo mais longo vivido não é do exílio, como em Um Gosto Amargo de Bala, de Vera Gertel, publicado em 2013. O último livro-exílio que me chega às mãos é de 2024: Encontrar seu Lugar, de Bernardo Boris Vargaftig, minucioso testemunho das perseguições sofridas por intelectuais e cientistas assim que se instaurou o golpe de 64. Esse médico e biólogo passou os quarenta anos seguintes de sua vida em instituições de pesquisa da Europa, entre elas o Instituto Pasteur.

Com a anistia no horizonte, vai se dar uma nova onda de literatura de testemunho. Em 1979 surge O que é isso companheiro, de Fernando Gabeira, que provoca um frisson por romper com os dogmas da esquerda. Nos anos seguintes sucedem-se Camarim de Prisioneiro, de Alex Polari, e Os Carbonários, de Alfredo Syrkis, Tirando Capuz, de Álvaro Caldas, Guerra é Guerra, de Índio Vargas, e Pedaços de Morte, de Flávio Koutzii. Predomina nessa fase a denúncia das atrocidades da ditadura. Mas, já está presente a autocrítica da luta armada.

Mais de uma década depois surgiria uma segunda onda de autobiografias, começando pela coletânea de 32 depoimentos de militantes presos no Presídio Tiradentes. Seguem-se a autobiografia de Dom Paulo Evaristo Arns, Da Esperança à Utopia, e O Baú do guerrilheiro, de Ottoni Fernandes Junior, Por um Triz, de Ricardo Azevedo, Minha Vida de Terrorista, de Carlos Knapp, O Assalto aos céus, de Takao Amano, Resistência atrás das grades, de Maurice Politi, Percursos Irregulares, de Carlos Botazzo, O cão morde a noite, de Emiliano José. Em 2022, Roberto Elizabetsky publica Um dia esta noite acaba, que se detém em episódios decisivos da época, entre eles o do justiçamento de Boilesen, o empresário envolvido com a repressão.

É como se cada um que passou pelos cárceres da ditadura, ou amargou o exílio, ou perdeu amigos e parentes, sentisse a necessidade de se explicar. São confissões, ajustes de contas, algumas consigo mesmo, outras com filhos e netos, que conheceram pais e avós como pessoas, mas não como personalidades políticas. E há as que dirigem aos espíritos de companheiros mortos ou desaparecidos.

Talvez se tivesse ocorrido desde cedo um acerto de contas coletivo sobre as atrocidades da ditadura, nem todos teriam necessidade de fazer seu acerto pessoal. A tragédia que foi nacional e coletiva, acabou se manifestando, na elaboração histórica, como um sem-número de tragédias pessoais e familiares.

Antonio Candido aponta três características dos relatos dos presos do Presídio Tiradentes: nenhum de seus autores se coloca como vítima, todos tentam ser sinceros e todos escrevem num tom de “eloquência discreta”.

São narrativas de sobrevivência na dor: “Escrever sobre fatos tão dolorosos como a prisão, tortura, anos afastado da sociedade é muito doloroso. Pior ainda quando se assiste, da prisão, impotente, ao assassinato de tantos companheiros de luta”, escreve Ottoni na apresentação de suas memórias.[1]

Alguns relatos são terríveis, porque terríveis eram os métodos da repressão, poucas vezes igualados na história. Muitos foram levados à loucura ou suicidaram-se anos depois, alguns já no exílio, suas psiques irremediavelmente despedaçadas. Vários vivem até hoje no exílio, e há os que vivem numa espécie de exílio mental, não conseguindo se libertar das sequelas psíquicas da tortura e da perda de companheiros mortos e desaparecidos. “Mais de quarenta anos depois, essas lembranças ainda causam arrepios e lágrimas”, diz o deputado Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, também ex-preso político, numa breve memória recém-publicada.[2]

Ressalto a brutalidade de tudo isso porque ela explica talvez a ausência de ambições literárias nessa produção autobiográfica. É como se não se pudesse fazer poesia com coisa tão sórdida. Theodor Adorno já questionara, em 1949, se era possível fazer poesia após Auschwitz. No estilo, que Antonio Candido educadamente chama de “eloquência discreta”, a eloquência está nos fatos, a discrição está no estilo.

Irmã da autobiografia é a biografia escrita por amigos, parentes, ex-companheiros ou admiradores dos biografados, também numerosas na produção da memória da ditadura. Caracterizam-se pela técnica do jornalismo investigativo, com pesquisa de arquivos e entrevistas com familiares, amigos e companheiros dos biografados. São homenagens aos biografados. São livros-lápides.

Capa de Lamarca, o Capitão da Guerrilha, de Oldack Miranda e Emiliano José. Editora Global, 10ª edição.
Capa de Lamarca, o Capitão da Guerrilha, de Oldack Miranda e Emiliano José. Editora Global, 10ª edição.

Uma das primeiras é a de Lamarca, O Capitão da Guerrilha, pelos jornalistas Oldack Miranda e Emiliano José, de 1980. O Revolucionário da Convicção, biografia de Joaquim Câmara Ferreira, foi publicada por Luiz Henrique de Castro e Silva em 2010. A mais recente é a do principal líder da luta armada, Carlos Marighella, pelo jornalista Mario Magalhães, publicada em 2012. Também nesse ano foi publicada Antes do Passado, em que Liliane Haag Brum reconstitui a trajetória, até a morte, do seu tio Cilon Brun, desaparecido no Araguaia.

Há três biografias dedicadas ao jornalista Vladmir Herzog, escritas por seus colegas de ofício: o Dossiê Herzog, de Fernando Pacheco Jordão (1979), Vlado, 30 anos, de João Batista de Andrade, um roteiro de filme na forma de livro, e As duas guerras de Vladmir Herzog, de Audálio Dantas, publicado no ano passado, prêmio Jabuti.

Também homenagens são as biografias do líder de esquerda de Belém do Pará, Pedro Pomar, escrita por Luiz Maklouf e outros, e de Ricardo Zaratini escrita por José Luiz del Roio.

Renato Martinelli publicou talvez a mais tocante dessas biografias de amigos, a de Márcio Leite de Toledo, fuzilado pela própria organização a que pertencia, a ALN, por suspeita falsa de ter se tornado informante, tema já abordado por Jacob Gorender no antológico estudo da luta armada contra a ditadura, Combate nas Trevas, de 1987, mas que havia permanecido um tabu.

Em 2012, Cristina Chacel publicou a história do desaparecimento de Carlos Alberto Soares de Freitas e no mesmo ano saiu Um Homem Torturado, a biografia de Frei Tito, que se suicidou no exílio, escrita por Leneide Duarte Plon e Clarisse Meireles. Em 2015, é publicado Cova 312, de Daniela Arbex, história do militante Milton Soares de Castro, integrante da guerrilha de Caparaó.

A última que nos chega é Tempo dos Cardos, de Celso Horta, publicada em 2023. Cardos são uma espécie espinhosa de cactos. O livro investiga o mistério do desaparecimento de João Leonardo, um dos últimos militantes da MOLIPO e mergulha na história da própria MOLIPO e seu massacre pela ditadura.

Quase livros-lápide são as biografias que homenageiam militantes ainda vivos, entre elas Flávio Koutzii, biografia de um militante revolucionário, de Benito Bisso Schmidt, e a recentíssima José Genoíno, uma vida entrevista, de Silvio Kotter e Nicodemo Sena. Ambas têm base em longas entrevistas com o biografado.

* Bernardo Kucinski é jornalista e professor aposentado da Universidade de São Paulo. É autor de obras sobre economia, política e jornalismo e foi assessor da Presidência da República entre 2003 e 2005. Lançou, aos 74 anos, K: Relato de uma busca — seu primeiro livro de ficção, finalista de vários prêmios literários nacionais e internacionais — e, mais tarde, Os visitantes, ambos publicados pela Companhia das Letras.
Notas
[1] OTTONI, Fernandes Júnior. O baú do guerrilheiro: Memórias da Luta Armada Urbana no Brasil. São Paulo: Record, 2004.

[2] DIOGO, Adriano. Bagulhão – A Voz dos Presos Políticos Contra os Torturadores. São Paulo: Comissão da Verdade do Estado de São Paulo (Rubens Paiva), 2014.
Editorial
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De 1964 a 2024: Caminhos, atalhos, barricadas

Dando continuidade às discussões em torno dos 60 anos do Golpe de 1964, iniciadas pelo encontro “Ecos Contemporâneos de 1964”, realizado em abril de 2024, este número de Revista Z Cultural apresenta o dossiê “De 1964 a 2024: caminhos, atalhos, barricadas”. Em ambos os casos, no evento presencial e na presente publicação, o propósito era e é duplo: por um lado, reavivar a memória do arbítrio e da violência de Estado instaurados pelo regime militar – os anos de chumbo –; por outro lado, investigar ou apontar para dimensões de violência e autoritarismo que marcam a sociedade brasileira, confrontando o momento 1964 com o momento atual, passadas seis décadas, sendo quatro delas já em regime civil democrático.

A história do regime é recuperada pelo artigo de Bernardo Kucinski e pelo contundente depoimento de Dulce Pandolfi, em entrevista concedida a Beatriz Resende, Italo Moriconi e Lucas Bandeira. Diga-se de passagem que a presença de Kucinski se deu tanto como palestrante principal no evento de abril como através do texto aqui publicado, um verdadeiro roteiro da ampla literatura de testemunho publicada no Brasil sobre a tortura e os embates mais duros da oposição à ditadura. Uma história que não pode ser esquecida pelas gerações mais jovens. Já o depoimento de Dulce Pandolfi é particularmente relevante, por ter ela sobrevivido a sessões terríveis de tortura, tendo sido capaz, depois, de desenvolver uma trajetória exemplar de vida profissional e de engajamento com as lutas populares.

Um dos temas recorrentes quando se faz a história da ditadura militar, ao mesmo tempo ponto culminante e parte de uma história permanente de violência em nosso país, diz respeito ao conservadorismo na área de costumes e comportamento. Misoginia, homofobia, transfobia, temas ainda tão contemporâneos, foi o que não faltou durante os anos de chumbo. Comportamento e sexualidade dissidente eram oposição política a priori para os órgãos policiais repressivos da ditadura. A resistência LGBTQIA+ se dava na imprensa alternativa (que teve como marco o surgimento do jornal Lampião da Esquina em 1978), nos locais de encontro e nas ruas. Ela é aqui recuperada pelo artigo de Dri Azevedo e pela bela entrevista do grande escritor e militante da causa gay João Silvério Trevisan concedida a Sandro Aragão.

Na entrevista de Trevisan, vale ressaltar a conexão que ele lembra existir entre a repressão comportamental na ditadura e a política bolsonarista nos dias de hoje. Como consequência, temos assistido ao aumento do número de episódios de agressão e repressão no campo da cultura. Um caso recente e rumoroso foi o ocorrido no Prêmio Sesc de Literatura, aqui relatado pelo criador da premiação, o produtor cultural Henrique Rodrigues. Seja como for, a cultura sempre é campo de resistência aos obscurantismos. Também no pior da ditadura, ela desempenhou seu papel, apesar de cada vez mais perseguida, censurada, agredida, exilada. Incluem-se aqui dois documentos históricos interessantes nesse sentido: o manifesto de Glauber Rocha sobre “estética da fome”, na seção Vale a Pena Ler de Novo, e a recuperação do clima daqueles anos no livro Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo, de Heloisa Teixeira, resenhado por Felipe Quintino.

O dossiê é complementado por artigos que levam a problemática para o campo da crítica literária e cultural. Gabriel Martins comenta as circunstâncias da escrita de Em liberdade, de Silviano Santiago, romance no qual se entrançam diferentes momentos autoritários da história brasileira. Pedro Süssekind e Claudia Lage, ao refletirem sobre seus próprios processos de escrita, puxam fios que revelam aspectos cruciais na anamnese da experiência autoritária brasileira. A abordagem do tema “anistia” permite a Süssekind confrontar a memória da ditadura, aliás trazida à tona pela Comissão da Verdade por ele mencionada, com os tempos bolsonaristas, iluminando a dialética entre a pretendida superação histórica e a retomada da distopia autoritária. O jogo entre utopia e distopia é o tema de Lua Gill da Cruz, a partir da leitura que faz do romance Tupinilândia, de Samir Machado de Machado. Já Claudia Lage entrelaça a vivência da política à vivência do corpo feminino. O corpo, essa realidade dita individual, porém atravessada pelas vicissitudes sócio-históricas do gênero, também fica em primeiro plano no artigo de Catarina Lara Resende sobre cinema pornô/erótico no período da ditadura.

Como nota de pesar, registramos o falecimento, quando finalizávamos a revista, do grande fotógrafo Evandro Teixeira, que gentilmente cedeu as fotografias que ilustraram o material de divulgação do encontro “Ecos Contemporâneos de 1964” e a capa desta edição da Z. Agradecemos ao IMS pela disponibilização  das imagens. Teixeira produziu as imagens definitivas do embate entre repressão e resistência, registros que impediram e impedem que a memória se perca. Imagens que ressoam no poema de Mary Garcia Castro que abre o dossiê: “Ficaram memórias / E nossas mãos / Uma a outra / Bem dadas / E aquela manifestação / E como gritávamos”

Danielle Corpas e Italo Moriconi
Curadores do dossiê

Dossiê
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RÉ MEMORANDO

Sabe amiga
Aquela rebeldia
Onde deixada?
Netos e netas
Não a retomam
São outras suas batalhas
Lutamos a justa luta
Justa para quem?
Para muitos para muitas
Que não pediram que a lutássemos
Mas não colho
Frustrações
Ficaram memórias
E nossas mãos
Uma a outra
Bem dadas

E aquela manifestação
E como gritávamos

Capa do livro de poemas Eu, nosotras, de Mary Garcia Castro (Amitié, 2024).
Capa do livro de poemas Eu, nosotras, de Mary Garcia Castro (Amitié, 2024).
* Mary Garcia Castro é Ph. D. em Sociologia pela Universidade da Flórida, pesquisadora Visitante Emérita (FAPERJ/UERJ/NUDERG), professora aposentada da UFBA e pesquisadora na FLACSO-Brasil.