Ano XX 01
Dossiê
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HELÔ, SEMPRE PRESENTE

Só se adquire experiência por meio do ensaio, da tentativa, isto é, do experimento. Era o que acreditava a emérita professora Heloisa Teixeira, antes, Buarque de Holanda, eternamente Helô. Era o que ela ensinava. Muitas vezes a ouvi usar o verbo polinizar no sentido de alastrar, divulgar, espalhar o conhecimento. Não tinha olhos para saberes estabelecidos, fechados neles mesmos, preconcebidos, preconceituados, ao contrário disso, acreditava em possibilidades, em novos prismas, sempre aberta a novas interpretações.

Foi o que absorvi dela em 55 anos de convívio próximo, uma longa jornada de permanente aprendizado, o que me permitiu ocupar um posto privilegiado como seu observador. Comecei como aluno, depois colega, e sempre amigo.

No universo das Letras, diferente da maioria dos professores, que se pautavam na ortodoxia literária, Helô se destacou como crítica da cultura, antes mesmo da divulgação dos Cultural Studies entre nós.

Não se fala de Helô no singular, já que era plural, pluriapta, muitas. Seus interesses variados e seu desempenho diversificado se capilarizavam em espaços como a crítica literária e cultural, a arquitetura, a fotografia, o cinema, a moda, as artes gráficas, a curadoria de artes visuais.

Como é impossível abordar tantas frentes em um artigo, dirijo meu foco para a Helô professora, atividade que desempenhava com grande prazer e o fazia de forma superior.

Diferente de grande parte dos professores que se utilizavam do método “magister dixit”, uma voz inquestionável e que tudo sabe, Helô sempre propôs questões para serem discutidas a partir dos diferentes entendimentos dos alunos. Desta forma, se fazia obrigatória a leitura dos textos sugeridos para a efetivação da dinâmica de grupo. Em outras palavras, implicava o exercício da pesquisa coletiva, em processo. Esse método foi utilizado por ela tanto na graduação quanto na pós-graduação. As aulas, melhor dizendo, os encontros, funcionavam como laboratórios de investigação e fóruns de debate.

Outro dado relevante de sua “metodologia de ensino” era que, muitas vezes, fazia-se auxiliar ora por um aluno mais adiantado (monitor), ora por um jovem professor, democratizando o seu “lugar de fala” e incentivando os mais jovens a exercitar a liderança, sempre supervisionados por ela.

Sintonizada com as postulações barthesianas (foi a introdutora da semiologia de Roland Barthes na Faculdade de Letras da UFRJ), dizia só dar aulas sobre o que estava aprendendo, investigando, sobre o que ainda não sabia, sobre o objeto de seu interesse naquele momento. Tal postura está completamente de acordo com o exercício da pesquisa coletiva em processo. Dialoga de forma afinada com o que observa Roland Barthes em sua Lição inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França:

O professor não exerce outra atividade a não ser a de investigar e de falar – direi de bom grado: a de sonhar alto a sua investigação – em vez de julgar, de escolher, de promover, de submeter-se a um saber prescrito. (Barthes, 1988, p.13)[1]

O método de avaliação do desempenho dos alunos sempre se deu inversamente ao padrão tradicional. A exemplo do julgamento das Escolas de Samba, em que se parte da nota máxima, ela computava tanto o envolvimento do aluno durante o percurso quanto o trabalho final. Este não era submetido a correções definitivas e inalteráveis de erro e de acerto, mas a sugestões de encaminhamento. Prova não fazia parte de seu código. Em termos psicológicos, isso fazia uma diferença brutal, na medida em que o estudante se enxergava como alguém valorizado e capaz de desempenhar tarefas que ele mesmo não se sabia apto, além disso, era incentivado a seguir adiante.

As aulas eram ministradas em espaços não convencionais, fora das salas de aula. Era avessa, como dizia, à herança medieval do púlpito religioso e doutrinário reservado ao professor. Era contrária à configuração tradicional da sala de aula. Dava preferência a salas de reunião ou qualquer espaço onde houvesse uma grande mesa. Uma estratégia de romper com a hierarquia na relação espacial professor/aluno. Esses espaços podiam se localizar dentro do prédio da instituição ou fora dele. Dependendo do tema do curso, havia deslocamentos para outros espaços como a Cinemateca do Museu de Arte Moderna, onde ocorria a projeção de um filme com debate com o diretor; em uma butique de roupas alternativas (na década de 1970). Em razão destes deslocamentos, houve quem a criticasse, afirmando que dava aulas na praia e que escolhia os alunos pela roupa. Nas décadas de 1970-80, a maioria dos seus alunos eram os alternativos, cabeludos vestidos ao sabor hippie.

Fachada do projeto de Reidy para o MAM é clássico do modernismo (Foto: Prefeitura do Rio de Janeiro)
Fachada do projeto de Reidy para o MAM é clássico do modernismo (Foto: Prefeitura do Rio de Janeiro)

Possivelmente, a mais radical e ousada experiência didática tenha sido a realização de um programa de televisão veiculado pela TVE. O programa chama-se Culturama: um programa estudantil sem drama. Eu era mestrando em Comunicação, naquele momento, final da década de 1970, início da década de 1980. Assumir o compromisso de produzir um programa de televisão com estudantes inexperientes em uma emissora estatal, sem orçamento, em plena ditadura (governo do Gal Figueiredo) era de uma audácia fora de qualquer parâmetro, totalmente fora da curva e fadado ao fracasso. Porém, a força da inventividade de Heloisa e a confiança que ela nos transmitia eram tamanhas que acabamos ganhando espaço na emissora. Lembro-me de pelo menos três programas. O primeiro era uma reflexão sobre o feminismo, em que transformamos uma sala de aula da Escola de Comunicação em um estúdio de gravação em que reproduzimos o cenário de um programa da TV Globo de grande sucesso chamado “Malu Mulher”. Conseguimos, inclusive, que uma atriz profissional fizesse o papel de Malu, Stela Freitas. Em duas ou três viagens, no meu fusca, levei de casa a maior parte do material cenográfico (almofadas, tapete, quadros e alguns objetos para adereçar o ambiente). O segundo programa foi gravado no pátio interno do edifício do Fórum da UFRJ, na Avenida Pasteur. Lá reunimos um grande número dos chamados “poetas marginais” e os entrevistamos. O ambiente sugeria estarmos em uma feira alternativa do livro. O terceiro programa chamava-se A caminho da Praia, um show, em um palco montado por nós, com a equipe de produção da emissora, em plena Praça da Paz, em Ipanema, que reunia o Trio Elétrico de Armandinho, Dodô e Osmar com Moraes Moreira. Isso depois do grande sucesso da música Pombo Correio, que encabeçava as paradas musicais por todo Brasil. A Praça da Paz virou a Praça Castro Alves de Salvador.

Do projeto Universidade das Quebradas, sabe-se sobre a recepção da comunidade não universitária no espaço acadêmico de ensino superior, dos debates e da troca de saberes motivados por estes encontros. Realizados no espaço físico do Projeto Avançado de Cultura Contemporânea, PACC, sediado, ao longo do tempo, em diferentes endereços da UFRJ (Escola de Comunicação, Colégio de Altos Estudos e Faculdade de Letras) ou em espaços extramuros do Museu de Arte do Rio (MAR). O que não se costuma falar é que nesses encontros havia um momento de confraternização em que era servido um lanche. Chamo a atenção para o fato de não existir a rubrica “alimentação” em todas e quaisquer propostas de evento ou projeto acadêmico em que busque financiamento externo. O lanche das Quebradas, diferente do que acontece em outros encontros, não tinha o caráter de coffee break, era uma forma de complementar as despesas dos visitantes periféricos que, muitas vezes, para chegarem à universidade, não dispunham de verba para o transporte e a alimentação. Isso não era explicitado, o lanche era oferecido como uma forma de boas-vindas, de cordialidade, de acolhimento naquele espaço em que muitos nunca sonharam pisar.

Sou, seguramente, um dos mais antigos alunos de Heloisa que acompanhou sua trajetória de perto, durante meio século. Comecei como seu aluno de graduação, em 1969, na Faculdade de Letras da UFRJ. Nos poucos anos em que estive distante da vida acadêmica, dirigindo o Departamento de Expansão Cinematográfica da Embrafilme, cujo foco era a criação e especialização de mão de obra para o cinema, trabalhamos juntos em projetos voltados para a criação de plateia por todo o país. Fui seu orientando de Mestrado na Escola de Comunicação, no final de 1970, concomitantemente, trabalhando como seu auxiliar na graduação em Letras. Pouco depois de concluída a dissertação, fui indicado por ela para escrever o livro sobre Gilberto Gil, para a coleção Literatura comentada, publicado pela Abril Cultural, um livro de ampla distribuição, vendido em bancas de jornal. A pesquisa deste trabalho serviu de base para meu doutorado sobre a obra do compositor. No início dos anos 2000, foi a supervisora de minha pesquisa de pós-doutoramento junto ao PACC, que se desdobrou na pesquisa que desenvolvi junto ao Centro de Cultura Latino-Americana da Universidade de Tulane, em Nova Orleans, nos EUA, como bolsista da Fundação Rockefeller, entre 2003 e 2004, e, posteriormente, continuei como pesquisador junto ao PACC.

Ainda que, por muitos anos, tenha frequentado seus diários de aula e respondido “presente!” à chamada, é ela quem esteve, está e estará sempre presente na vida dos que tiveram o privilégio de conviver com ela, como eu.

* Fred Góes é compositor, contista, ensaísta e professor-doutor de Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. É membro do Conselho de Cultura do Estado do Rio de Janeiro desde 1999, e autor dos livros Literatura e sociedade: narrativa, poesia, cinema, teatro e canção popular, O novo luxo e Plugados na moda.
Notas
[1] BARTHES, Roland. Lição. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 13.