No dia 30 de outubro de 2020, me preparei para entrevistar Heloisa Teixeira, na época ainda Heloisa Buarque de Hollanda, que nós chamávamos, carinhosamente, de Helô. A intenção era cumprir um plano que soava como uma engraçada determinação bíblica: “Entrevistai-vos uns aos outros, e umas às outras”. Uma ideia que não sei se foi originalmente de Beatriz Resende ou Ilana Strozenberg, à qual aderi com enorme prazer. O fato é que – pelo menos esta é minha percepção – nós quatro combinamos promover aquele encontro virtual não só para produzir conteúdo útil aos pesquisadores do PACC e à Revista Z Cultural, mas porque nos divertíamos quando estávamos juntos. Havia sempre em nossas reuniões – mesmo remotas – um sabor lúdico. Pelo menos para mim, era uma alegria estar com elas – e Helô era o centro em torno do qual gravitávamos no PACC.

Alegria não rima com 2020, ano bolsonarista pandêmico, de tantas tragédias, de tanto sofrimento, por isso mesmo eram tão preciosos os encontros virtuais no PACC e as aulas que eu dava com Felipe Lima no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, da UFRJ, onde atuava como professor visitante e oferecia disciplinas sobre ficção científica (ou, num registro mais pretensioso: literatura especulativa).
O sentimento de impotência grassava enquanto o neofascismo brasileiro passava a boiada, destruindo direitos, florestas e esperança: enfim, tudo o que a limitada, frágil e contraditória democracia havia construído, desde a promulgação da Constituição cidadã, em 1988. Não por acaso eu investia em futuros imaginários. Era preciso sair do claustro físico e mental, e evitar o pânico e o imobilismo político. Era urgente pensar, conversar, organizar lives, estudar, ensinar, aprender e escrever, furiosamente. A internet não poderia servir apenas ao negacionismo e à campanha de ódio e fake news. Nós quatro queríamos participar da resistência. Helô não se conformava e buscava forças, parcerias e motivos para manter o alto astral, sua marca registrada.
Não era a primeira vez que o destino nos jogava na mesma trincheira antiautoritária. Em 1968, ano cuja permanência mestre Zuenir Ventura captaria como ninguém, época em que Helô já esbanjava magnetismo – como ele destaca, já no primeiro capítulo de seu livro mais célebre –, a idade ainda não me permitia entrar na festa que antecedeu a longa noite feroz. Ao longo da travessia dolorosa do período mais brutal da ditadura, antes mesmo de chegar à universidade para estudar literatura, depois ciências sociais, acompanhei a trajetória de Helô, pisando a grama, fora dos scripts, à margem dos clichês, valorizando as margens, a criatividade libertária de jovens poetas, recusando rótulos e receitas, subvertendo a caretice em todas as suas versões. Entretanto, só conheci Helô, pessoalmente, em Nova York, na virada de 1984 para 85, quando o país fervilhava, bipolar, passando do entusiasmo cívico nas ruas pelas diretas à contrição resignada no Colégio Eleitoral: o máximo que mais uma transição pelo alto nos autorizava a celebrar era a vitória de Tancredo Neves, e era muito.
Esse relato sugere uma relação fácil e igualitária, que se traduziria em parceria e amizade. Não começou assim. Sou membro de uma geração que chamava de senhor e senhora os mais velhos e as pessoas a que atribuíssemos autoridade. Dei aulas na pós-graduação da UNICAMP ao lado do professor Roberto Cardoso de Oliveira, um dos pais da antropologia social brasileira, e não conseguia tratá-lo por você, apesar de sua insistência, de sua simpatia inabalável, de sua simplicidade acolhedora. Quando me encontrei com Helô, na Universidade Columbia – queria saber sobre as pesquisas da professora Heloisa Buarque de Hollanda –, tive de tomar coragem para procurá-la. Ela me desarmou completamente. Aquele jeito franco, direto e democrático, me deixou desconcertado e me fez admirá-la mais ainda (Nelson Rodrigues falava da intimidade súbita dos cariocas), num momento em que a institucionalização acadêmica das humanidades no Brasil parecia cobrar mais formalidade e menos camaradagem – como se o ethos corrente nas trincheiras da luta política contra a ditadura não coubesse nas catedrais do saber. A progressão rumo a instituições sólidas, agora sob o Estado de direito, parecia, nas universidades, nos empurrar para trás, nos induzir a vestir máscaras que a geração 68 havia lançado na fogueira. Tacitamente, eu havia feito um juramento a mim mesmo, a que sempre permaneci fiel, sem nenhuma dificuldade: o baile de máscaras não seria minha praia. Jamais trairia esse legado da adolescência, mesmo que fosse só isso, um fiapo de rebeldia pueril. Aliás, aqui, vale abrir parênteses: no lançamento de um de seus últimos livros, ela terminou sua fala indagando à audiência, e eu tomo a liberdade de citar de memória: “Cadê a rebeldia? Onde ela está? Ficou pelo caminho? Quero saber é da rebeldia. O que hoje significa rebeldia?” Volto a 1984. Diante de mim, estava aquela professora, pensadora, pesquisadora, escritora, mulher, brasileira, internacionalista, feminista, militante 24/7 por suas convicções, que me devolvia as perguntas: “E você?” Logo me dei conta de que fazíamos parte da mesma fratria. A moldura formalista que minha insegurança projetava foi se dissolvendo aos poucos nos brunches festivos e generosos que nossa amiga Bela Feldman Bianco, minha colega da UNICAMP, oferecia em seu apartamento, no Sul de Manhattan, aos domingos.
Antes de voltar ao Brasil, estive ainda uma vez com Helô. Assistimos juntos, na Columbia, a uma palestra do professor Paulo Sérgio Pinheiro sobre os riscos a que a transição estava sujeita. Helô tinha outra virtude rara: combinava uma inextinguível disposição para confiar e prosseguir, com a mais realista lucidez. Autoengano não tinha lugar no espírito em ebulição que ela cultivava. Sem a angústia suscitada pelo realismo, talvez não fizesse sentido o otimismo da vontade.
Passaram-se muitos anos em que mal nos víamos, embora eu nunca tenha deixado de acompanhar suas entrevistas e seus livros, e de ter notícias dela por amigas comuns. Voltamos a nos encontrar com assiduidade em 2011, graças à iniciativa do saudoso Ecio Salles e de Julio Ludemir, que nos consultaram sobre a ideia – então ousada – de realizar uma festa literária das periferias, a FLUP. Embarcamos na viagem e nos tornamos padrinhos da FLUP desde a primeira edição, no Morro dos Prazeres, em 2012. Helô não só embarcava em projetos improváveis desde que comprometidos com a inclusão e a diversidade, o antirracismo e a crítica ao patriarcalismo, como concebeu e liderou muitas navegações desbravadoras.
A entrevista de outubro de 2020, em que nos revezaríamos nas posições de entrevistador(a) e entrevistado(a), ficou restrita ao primeiro capítulo, em que coube a mim responder às perguntas. Nas semanas seguintes daríamos continuidade. As questões para Helô, Beatriz e Ilana eu já havia preparado. Por motivos que não recordo, coisas miúdas do cotidiano, compromissos sobrepostos, obrigações que a pandemia acumulava, fui informado de que teríamos de adiar, depois adiamos novamente, e nunca chegamos a gravar a sequência do projeto. Pensando em tudo o que aconteceu, desde então, sobretudo ante a perda de Helô, em homenagem à sua memória e porque as perguntas traziam consigo considerações pertinentes sobre sua trajetória e sua obra, concluo esse breve testemunho compartilhando as questões a que ela não teve oportunidade de responder – imaginar as respostas nos fará tê-la conosco, mais uma vez. E isso basta.
Perguntas para Helô:
01. Uma vida de transgressões criativas e antecipações visionárias representa, do meu ponto de vista, a consolidação de uma trajetória intelectual (pública), trajetória, felizmente, em pleno curso, em pleno vigor. Uma de suas marcas, entretanto, parece ser a de afastar-se tanto dessa identidade (ou rótulo) quanto das limitações acadêmicas. Por outro lado, raras vezes conheci alguém tão apaixonada, encantada, que valorizasse tanto a universidade e seu potencial. Isso me leva a concluir que academia e universidade não são a mesma coisa e, pior, podem se chocar. Como desatar esse nó? O que esse imbróglio significa?
02. Conheci poucas pessoas tão engajadas, politicamente, em sentido amplo, quanto você. Ao mesmo tempo, certamente poucas são tão livres, independentes, empreendedoras de si, com carreiras solo – entretanto, sempre em coletivos, sempre agregando, sempre compartilhando, sempre intervindo em questões públicas e formando o debate público. Como você pensa a relação entre autonomia e engajamento, impulso individual (afetivo, reflexivo, valorativo) e envolvimento orgânico em movimentos, coletivos, entidades, instituições (até mesmo partidos ou campanhas)? Claro que há tensões. Você não parece lhes dar muita importância. Ou estou enganado? Como você lida ou elabora essa questão?
03. Paixão (valor, afeto, convicção) por vezes se choca com estratégia ou tática, o cálculo, a prudência, a política. Como você lidou com os momentos em que a voz e o desejo tiveram de ser sacrificados em benefício da realização dos objetivos ou do êxito dos projetos? Convicção e responsabilidade, a dupla ética weberiana, como a afetou? Você vestiria o fardão de Raquel de Queiroz?
04. A Heloisa que privilegia o método, que se vê como arquiteta ou cenógrafa, poeta dos espaços, criadora da editora Aeroplano, da Universidade das Quebradas, que ama gerir e empreender, que inventa repertório, elenco e dramaturgia, que se inscreveu como personagem na história cultural do país e do Rio, parece o oposto da mulher popular evangélica conservadora, que põe sua energia na resignação. Como seu olhar generoso e empático vê essa população? O que seu trabalho, seu itinerário, sua obra, sua performance oferecem a essa massa de gente? Que lugar esse público ocupa em seus planos de reflexão e ação?
05. O ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, despedindo-se há pouco do Senado e da política, disse que não há sucessão na política: as causas permanecem (eventualmente se renovam), os políticos passam. Você foi e é mais do que uma pessoa devotada a causas. Foi e é criadora de causas. Mesmo assim, você pensa em sucessão? Pensa e prepara novas gerações?
06. O PACC e o futuro: o que está sendo gestado? O que virá? Houve os novos poetas, a valorização das periferias, os novos feminismos, o mundo evangélico, e agora?
