Ano XX 01
Dossiê
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SOBRE INTELECTUAIS & BISCATEIRAS

1.
“Acho que sou uma biscateira cultural”. Assim, Heloisa Teixeira, ainda Buarque de Hollanda, tentava explicar para Ana Maria Bahiana — e talvez para si mesma — o que fazia no ano de 1979 que então se encerrava. Num raro encontro em que entrevistada e entrevistadora dialogam de igual para igual, a conversa no Jornal do Brasil gira em torno das múltiplas e inquietas atividades de Heloisa. Naquela altura, ela completava quatorze anos ensinando na Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre a Faculdade de Letras e a Escola de Comunicação, com uma ressalva importante: “aprontando desde 1974, quando eu vi que ser professora, naquele modelo tradicional, não dava pé mesmo”.

Nesta era distante, anterior ao produtivismo quantitativo do hommo lattes, Heloisa dizia ter mestrado, doutorado “e o escambau”, por pura estratégia: “eu acho legal porque me legitima as incursões alternativas, cala a boca de quem acha que eu estou brincando”.

Nos últimos tempos, ela havia experimentado televisão (Culturama, um programa estudantil sem drama, na TVE), cinema (na incursão mais recente, a direção de Xaboravalha!, curta-metragem com o Asdrúbal Trouxe o Trombone) e rádio (apresentando o Café com Letras, na MEC). Em produção mais de acordo com o que se esperava de uma intelectual — designação aqui associada ao magistério universitário —, anunciava o lançamento de dois livros para o ano seguinte: Impressões de viagem — CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70 e, em parceira com Carlos Alberto Messeder Pereira, Patrulhas ideológicas marca reg — Arte e engajamento em debate.

A questão que ronda a entrevista do JB não tem resposta óbvia: como, afinal, nomear Heloisa Buarque de Hollanda em momento tão sensível? Ana Maria Bahiana acha que, pelo que “faz — ou apronta”, sua entrevistada merece “status além da biscateira que quer ser.” “Com tanta produção, Heloisa poderia vestir a capa do intelectual e descansar sobre sua obra”, observa a entrevistadora, que prefere vê-la como uma “guerrilheira cultural”, epíteto bem de acordo com a recentíssima história social. Se não chega a abraçar a imagem de combatente, Heloisa conclui com uma declaração de princípios cristalina: “Não tenho o menor compromisso com a obra. Nunca me preocupei com isso. E acho que quem se preocupa já dançou”.

Fazia tempo que Heloisa atuava intelectualmente de forma singular. Para uma professora, não custa lembrar, a tal da “obra”, o trabalho tangível além das aulas e da pesquisa, era sinônimo de livro. Até então, ela já publicara três deles: em 1976, a rumorosa antologia 26 poetas hoje, seguida, dois anos depois, por Macunaíma, da literatura ao cinema. Em 1979, em parceria com o poeta Armando Freitas Filho e com Marcos Augusto Gonçalves, seu orientando, saía Anos 70 – Literatura, segundo volume de uma coleção de cinco livros que pretendiam formar um panorama da produção de música, teatro, cinema e televisão às vésperas da abertura.

Mas voltemos à entrevista com Ana Maria Bahiana. Os dois novos títulos, a sair em 1980, nasceram, como era de se esperar, na universidade — mas dela se distanciavam de forma desconcertante. Adaptação da tese de doutorado em Letras, defendida na UFRJ em 1978, sob orientação de Afrânio Coutinho, Impressões de viagem desestabiliza conceitualmente as relações entre o acadêmico e seu tema, assumindo dois “riscos” por ela explicitados. O mais evidente é “trabalhar a cultura em processo”, a quente, sem a segurança “de uma perspectiva histórica mais definida”; o outro, assumir a “extrema proximidade da análise com seu objeto”, abrindo mão de uma “isenção crítica”, talvez idealizada, para ganhar “pela própria marca ‘suja’ da experiência vivenciada” (Hollanda, 1992, p. 10). O Macunaíma, da literatura ao cinema, é bom lembrar, também tinha relação ambígua com a origem acadêmica: ela o definiria como uma “montagem e desmontagem” da dissertação de mestrado, “um trabalho com alguns escombros da tese e com a experiência de limites que ela me ensinou” (Hollanda, 2009, p. 51).

Patrulhas ideológicas, o outro livro de 1980, é resultado da disciplina Seminário de Documentação Literária, que Heloisa e Carlos Alberto ofereceram na Faculdade de Letras um ano antes. No lugar das aulas tradicionais, a dupla recebia, na universidade, artistas e intelectuais para discutir as “patrulhas” a que Cacá Diegues aludira numa entrevista ao Estado de S. Paulo, depois reproduzida com estridência pelo Jornal do Brasil. Em meio ao trabalho de divulgação de Chuvas de verão, o cineasta criticava “os intelectuais que, em nome de partidarismos ideológicos, tentam impor um tipo de censura à liberdade de expressão” (Hollanda, 1980, p. 7). No livro, os depoimentos colhidos na universidade se misturam a outras entrevistas e textos de origens diversas, flagrando um momento cujos ecos, nos anos 2020, ainda não foram devidamente avaliados.

“Aventuro-me, com a maior irresponsabilidade, em linguagens desconhecidas”, escreveria Heloisa, na década de 1990, ao avaliar aquele momento. “Experimento ficar dentro e fora da universidade”, prossegue ela, “articular estes dois espaços, trabalhar as possibilidades mínimas de intervenção que ainda nos sobram”. Neste movimento, as aulas tornam-se o que ela chama de “laboratórios experimentais”, resultando em roteiros ou curadorias de exposições. O objetivo, descreve ela, era “tornar o espaço acadêmico um espaço de interpelação e discussão das formas e meios de produção cultural” (Hollanda, 1980, p. 7, 2009, p. 55-56).

2.
Ao definir, meio na galhofa, meio a sério, a própria atividade como “biscate” — bico, trabalho avulso —, Heloisa associa o trabalho intelectual à ideia de uma economia informal justamente num momento em que, após reformas burocráticas e pedagógicas, a universidade se consolida como o mercado formal por excelência do intelectual clássico. Como todo mundo que se vira, uma biscateira encontra formas variadas de sobreviver numa precariedade, em geral, compulsória. Ainda que, na metáfora de Heloisa, o perrengue seja voluntariamente abraçado, ele também é consequência direta de um inapelável empobrecimento simbólico do país.

“Enquanto nosso produto interno bruto atinge recordes de aumento, o nosso produto interno cultural estaria caindo assustadoramente”, observava Zuenir Ventura em Vazio Cultural, o polêmico artigo que, publicado em 1971 na revista Visão, pinta com tintas fortes um ambiente intelectual carcomido por censura, exílios, conformismo, consumismo (Ventura; Gaspari, 2000, p. 40). Esse é o momento propício para que Heloisa, reafirmando o que chamaria de “favorecimento do exame das descontinuidades, fraturas e contradições, expressas ou latentes, nos discursos intelectuais e artísticos”, passe a buscar “formas de produção política alternativa que parecem resistir ao vazio cultural do período pós-68” (Hollanda, 2009, p. 57).

Capa do periódico retirada do Acervo Vladimir Herzog
Capa do periódico retirada do Acervo Vladimir Herzog

Naquele momento, a sala de aula estava longe de ser um ponto de vista privilegiado para divisar novas formas no vazio. A estreiteza constitutiva dos cânones dificultava ainda mais a tarefa para uma professora de literatura que começava a perceber, aqui e ali, toda uma produção poética que passava despercebida a censores e revolucionários — frívola aos olhos dos graves e, mais do que grave, cifrada, quase incompreensível, aos olhos dos frívolos. As obras e as formas de circulação alternativa delas, cena que se consagraria como “poesia marginal”, eram, aos olhos de Heloisa, “território privilegiado do testemunho de uma experiência social jovem sob forte controle da censura e do aparato político-institucional então vigente” (Hollanda, 2009, p. 57).

Um novo objeto de análise, é bom lembrar, só se constitui a partir de um sujeito aberto a mudanças, a reconfigurações. Nos melhores casos — como acontece aqui — sujeito e objeto parecem se moldar reciprocamente: poético e político mudam de lugar, se amalgamam, se aproximam e se afastam quando escrutinados por uma leitora que, por sua vez, abriu mão do lugar em que se instalara e que, em última instância, lhe dava identidade. O desenho dessa relação — dinâmica e, muitas vezes, confusa — dificilmente surgiria em artigo acadêmico, dissertação ou tese. A análise vai se configurar nos domínios livres do ensaio, que Roland Barthes definiria como um “gênero incerto em que a escritura se rivaliza com a análise”, ou seja, uma forma tão serpenteante como os raciocínios que se dispuser a expressar.

É precisamente num ensaio — “Nosso verso de pé quebrado” — que vêm a público, não no circuito acadêmico, mas numa revista de interesse geral, a Argumento, as primeiras impressões de uma professora que passara a frequentar menos livrarias do que “eventos e reuniões” da “geração do mimeógrafo”. Na poesia de dicção coloquial, irreverente na barafunda de referências e quase sempre publicada de forma autônoma, à margem do mercado editorial formal, configura-se um objeto estranho e, de alguma forma, indomável pelas estratégias analíticas consagradas.

“(…) os critérios propriamente literários de avaliação passam para segundo plano, e nos defrontamos com um fenômeno que tem, sobretudo, valor de atitude. Neste caso, estar fazendo poesia é mais importante do que o produto final”, escreve ela e Cacaso. “Esta atitude ambígua consolida, no plano ideológico, a necessidade vital de retomar a criação de não se deixar paralisar pelos esquemas paralisantes, de resistir”, prossegue, “essa poesia dispersa é muito mais uma busca de reconhecimento e identidade, maneira precária de dizer que estamos vivos, do que um acontecimento ‘literário’” (Cacaso, 1997, p. 54).

Em fundo e forma, creio estar aqui um ponto de inflexão — o instante decisivo em que, sem abandonar sua origem e formação, a professora de Letras, função cada vez mais associada diretamente à crítica literária, dá lugar a um tipo de intelectual ainda em formação: o crítico cultural. Aquele ensaio inaugural reconhece, como princípio, que os “produtos poéticos” não devem ser tratados com condescendência — “não podem ter sua legitimidade preestabelecida, o que seria uma atitude de tolerância tão discutível quanto as exigências de perfeição formal”. E aponta para uma compreensão mais ampla de sua natureza: “essa dificuldade de se emitir qualquer juízo de valor mais definitivo não é um fato restrito apenas ao campo da poesia, mas tem a ver com a avaliação de qualquer atividade criadora que, no momento atual, apresente características de autonomia” (Cacaso, 1997, p. 55).

Assim, se explica melhor o que muda a partir de 1974, quando Heloisa diz que o modelo da universidade “não dá pé”. Em sua pesquisa, a professora abre mão dos estudos monográficos que, naquele momento, costumavam marcar as carreiras em Letras — pontuadas por especialistas em determinados autores — e ainda dominada pela vigência infindável do modernismo. Às leituras verticais, detalhadas, ela passa às horizontais: travellings, em que autores, teorias, épocas e modas se montam e remontam em paisagens complexas, que só se delineiam a uma distância de difícil calibragem — nem perto demais do objeto, nem demasiado longe dele.

A crítica cultural é menos uma tomada de posição do que um gesto. Ela não instaura um ponto de vista do qual pretenda decodificar o mundo, mas participa ativamente de sua formulação. O exemplo inaugural deste tipo de intervenção — comentário inseparável da ação — é a publicação de 26 poetas hoje. Se a organização de antologias seria a prática mais frequente na carreira de Helô — se estendendo até os anos 2020, também no domínio do ensaio —, as outras atividades da biscateira caminhavam na mesma direção. Para o crítico cultural, o mais importante não é o edifício do prestígio e da autoridade, mas o gesto — rápido e rasteiro, muitas vezes efêmero. Nesta leveza e rapidez está sua força. E sua vulnerabilidade.

3.
A autoridade da crítica cultural é instável por definição, pois depende de complexa equação em que o desembaraço dos protocolos de interpretação e a variedade das formas de expressão e intervenção não resultem em dispersão ou dissolução. Uma das formas de compreender esse equilíbrio turbulento é o tripé de fatores que, para Christy Wampole, são os pressupostos de um ensaísmo consequente: estabilidade pessoal, estabilidade tecnocrática e instabilidade social. Os dois primeiros termos dizem respeito à biografia e à vida social desses críticos, que, para se manterem, devem dispor tanto de meios financeiros quanto de capital simbólico. O terceiro fator, o dado de instabilidade, é tudo aquilo que instiga a análise e a intervenção. Trocando em miúdos: o intelectual público que prefere a aventura à rotina e se arrisca a flagrar o que Wampole chama de “dinâmica social volátil” não pode prescindir de ancoragem material ou simbólico-institucional (Wampole; Pires, 2018, p. 247).

Susan Sontag encarnaria à perfeição esse tipo de intelectual na dinâmica peculiar da arena pública norte-americana. Nascida em 1933, seis anos antes de Heloisa, Sontag estreia na vida literária como ficcionista, publicando, aos 30 anos, O benfeitor, romance coalhado de experimentalismos inspirados pelas vanguardas europeias. Em 1965, ela encerrava uma acidentada história universitária, com passagens por Harvard e Paris e um doutorado inconcluso, para se dedicar, em tempo integral, ao ensaísmo — e, logo, a outras formas de expressão.

Se a estabilidade pessoal ainda era um horizonte distante, a estabilidade tecnocrática se consolidava nos competitivos meios intelectuais novaiorquinos — intelectual e acadêmico ainda não eram sinônimos, e o complexo ecossistema de revistas como Partisan Review, Evergreen Review e Aspen dava lastro a uma espécie de Ivy League ao rés do chão. Nas páginas desses periódicos, Sontag publicaria, pela primeira vez, ensaios decisivos como “Notas sobre o camp”, “Contra a interpretação” ou “A estética do silêncio”. No final da década de 1960, o ativismo político resultaria em viagens ao Vietnã, e a inquietação intelectual conduziria à direção de Duet for cannibals, longa de ficção experimental que abriria caminho a três outros filmes. Sontag também se dedicaria ao teatro (dramaturgia e direção) e, nos anos 1990, voltaria à ficção, tendo vencido o National Book Award pelo romance Na América (1999). A intelectual livre que foi Susan Sontag se legitimava a partir das posições consolidadas no mercado jornalístico e editorial — base para todo tipo de experimentação.

No Brasil sob a ditadura, um ambiente de pura instabilidade social, Heloisa desfrutava dos dois fatores de estabilidade. Do casamento, herdaria o sobrenome de peso patriarcal ao qual renunciaria nos anos finais. Na universidade, mesmo sob ameaças do regime, encontrava respaldo institucional e, nas aventuras intelectuais, a fiança de um eminente orientador: o professor Afrânio Coutinho, desde 1962 membro da Academia Brasileira de Letras. Para ganhar autonomia, a intelectual livre que foi Heloisa Teixeira tinha que se manter aterrada à instituição. E assim o fez por toda a vida, numa estratégia de estar “dentro e fora” — dissidência e mainstream —, que culminaria, não sem provocar estranheza, com a eleição para a ABL, onde entraria como Heloisa Teixeira, assumindo o sobrenome da mãe. O gosto pela deriva, que ela cultivava e lhe conferia personalidade, não se sobrepôs aos movimentos estratégicos que evitariam a dissolução. Da edição, no circuito comercial, de uma poesia que circulava mimeografada à criação de uma autoexplicativa Universidade das Quebradas, o verbo que Heloisa melhor conjugava não era romper, mas tensionar.

4.
Na introdução a Patrulhas ideológicas, Heloisa observa que Sartre e Gramsci são as referências para o debate que se estabelece sobre a função do intelectual num Brasil que tateia caminhos para o fim da ditadura. O intelectual “engajado” sartriano e o intelectual “orgânico” gramsciano pairam sobre “os conceitos que regem, de além-mar, o horizonte teórico do projeto político-cultural dominante em segmentos expressivos da intelectualidade brasileira” (Hollanda, 1980, p. 11). Em sua avaliação, a herança de 1968 resulta, pouco mais de uma década depois, num debate que elege como prioridades “os aspectos talvez menos excitantes da discussão”: “a autonomia criativa do artista, os cerceamentos moralizantes e ‘religiosos’ do dogmatismo ideológico, as perdas e ganhos da relação Intelectual/Estado e assim por diante”. Em seu propósito documental, o livro organiza os principais temas daquele momento: “função e política do intelectual”, “arte e engajamento”, “arte e revolução”, “formação e trajetória do intelectual” e “determinações de mercado e projeto criador” (Hollanda, 1980, p. 10).

O que se interroga é, portanto, o lugar do intelectual clássico em relação a instâncias de organização e poder — quem e como transige com a ditadura, quem e como se opõe a ela, quais as formas de pertencimento ou caminhos de dissidência em relação às lutas organizadas pela democratização. A intervenção de Heloisa, nesse momento, não se pauta pela tomada de um partido e, bem entendido, tampouco pela defesa de uma quimérica “imparcialidade”. Assim como 26 poetas hoje, Patrulhas ideológicas faz parte de um trabalho que, em retrospecto, ela chamaria de “mapeamentos cognitivos”. A expressão, que diz ter “roubado” de Fredric Jameson, serve à perfeição para definir uma modalidade de crítica cultural que ela exploraria nas décadas seguintes com irretocável lógica assistemática (Hollanda, 2009, p. 50).

O “mapeamento cognitivo” que Heloisa faz das escaramuças entre patrulheiros e patrulhados bota na mesa a hipótese, pouco óbvia, de que talvez seja preciso abandonar essa e outras disputas de posições e a busca por soluções unificadoras para agir no miúdo, “na realidade do mercado da produção cultural”. Trata-se de um ambiente inóspito para todo tipo de idealização, posto que “fortemente orientado e controlado pelos interesses de uma indústria cultural com evidentes vinculações com o capital internacional”. Intervir na arena pública é menos fazer prevalecer um juízo sobre as divergências do que se esforçar para exibi-las em tensão, abrindo caminho para soluções provisórias e ações que se alimentam das impurezas indiscerníveis da produção de conhecimento.

Em 1993, ao examinar as “representações do intelectual”, Edward W. Said lembra as fissuras históricas na imagem moderna deste personagem, forjado na França do século XIX a partir do inflamado debate nacional sobre o “caso Dreyfuss”. Quando Émile Zola publica o Eu acuso!, carta-aberta ao presidente da França, nasce o intelectual público, aquele que pausa suas atividades específicas para, na arena comum, assumir responsabilidades coletivas. “Tampouco existe somente um intelectual público”, observa Said, “alguém que atua apenas como uma figura de proa, porta-voz ou símbolo de uma causa, movimento ou posição” (Said, 2005, p. 26).

Numa rápida menção a James Baldwin, Said destaca a concepção, tão cara ao autor de O quarto de Giovanni, do intelectual que se desinveste da função de porta-voz (de uma causa, de um povo) em favor de agir como uma testemunha – “O porta-voz presume que está falando pelos outros. Eu nunca presumi isso – e nunca presumi que poderia fazer isso”, diria Baldwin em entrevista ao escritor e ativista Julius Lester. O intelectual como testemunha, lembra Said, está associado a um impulso documental vinculado à uma “obstinação na erudição”, resultado de intensa atividade de “rastrear fontes alternativas, exumar documentos enterrados, reviver histórias esquecidas (ou abandonadas)” (Said, 2005, p. 17).

A “obstinação na erudição” — ou “erudição implacável”, na tradução do inglês — é invocada por Michel Foucault como um dos nortes do paciente trabalho da genealogia, ponto de vista a partir do qual a história abandona qualquer pretensão à placidez do sentido, “como se esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias”. Do genealogista se espera “a minúcia do saber, um grande número de materiais acumulados” e a reconstrução do olhar crítico:

Marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá−los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história − os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram. (Foucault, 1985, p. 15)

O intelectual como testemunha reúne, organiza, monta, desmonta e remonta documentos de procedência a configurações variadas – jornalismo, artes visuais, literatura, teatro, fotografia, cinema – e com eles constrói dissidências das narrativas dominantes. Este perfil do intelectual com genealogista é desempenhado pelo que podemos chamar de crítico cultural – justo por alguém que, como Heloisa, pode se interessar por literatura, cinema ou teatro e não se fixar como comentador exclusivo de uma ou outra forma de expressão, pois o que a ele interessa não é o objeto em si, mas a relação entre os diferentes objetos.

Premiado com um Pulitzer, em 2017, pelo conjunto de críticas de teatro publicadas na New Yorker, Hilton Als é bom exemplo contemporâneo, na especificidade norte-americana, deste tipo de intelectual. Ao definir-se como “crítico cultural”, atuando em âmbito não necessariamente acadêmico — e, eventualmente, na universidade —, Als vai além de uma simples mudança semântica ou de capricho editorial de uma publicação específica. Hoje, Als combina a escrita ensaística — em seu caso, sempre misturada ao jornalismo — com curadorias de exposições que reiteram, por outros meios, suas mais recorrentes inquietações intelectuais. Dois autores que lhes são caros, James Baldwin e Joan Didion, estiveram no centro de mostras que ampliam as análises para além da escrita. Como vimos anteriormente, sujeito e objeto aqui estabelecem uma relação dinâmica, plástica, um moldando o outro, como ele mesmo observa:

Sempre estamos lidando com estética em algum nível. No fim das contas, tudo isso são diferentes tipos de linguagem, e você precisa entender qual linguagem é apropriada para o evento ou ideia. Então, você está lidando com o lugar onde a linguagem se encaixa melhor. Seja numa sala de aula ou num texto, você está lidando, no fim, com o impulso de comunicar algo. E eu acho que, quando você tem esse impulso, você está lidando com um mundo alegre e acolhedor, porque há todas essas oportunidades de se expressar. Quero dizer, é quase um embaraço das riquezas. Ou, eu diria, um embaraço das oportunidades.[1]

A essas atividades, Heloisa estenderia ainda outra intervenção: a de editoras de livros, inicialmente na direção da Editora da UFRJ e, logo depois, na Aeroplano, onde, no início dos anos 2000, dedicaria uma coleção pioneira às escritas da periferia. A ideia de curadoria presidiria a ainda o Portal Literal, híbrido de acervo de escritores como Rubem Fonseca e Zuenir Ventura e de revista literária, expressivamente batizada Idiossincrasia.

5
Ao lembrar Josefina Ludmer, a poeta e crítica Tamara Kamenszain evoca a distinção entre “a crítica literária como discurso específico sobre um autor ou uma obra” e o que a formuladora do conceito de “literaturas pós-autônomas” entendia como “ativismo cultural”: um tipo de reflexão “que também quer ser ação, que quer intervir”. Para Ludmer, lembra Kamenszain, a especificidade da crítica literária tradicional estaria “vencida”. A posição, tão similar à de Heloisa, suscitava, na Argentina como no Brasil, reações acerbas — às quais Ludmer costumava responder: “Daqui a pouco passa, é que eles devem estar com medo de perder sua lojinha” (Kamenszain, 2020, p. 50).

A ideia do crítico como proprietário de um pequeno negócio, de lucros e ambições modestos — podemos aqui imaginar lojinhas temáticas, dedicadas a um autor ou a aspectos muito específicos deste autor — se contrapõe à informalidade do “biscateiro”, menos estável, porém mais leve e dinâmico em seus interesses temporários, comentários específicos e intervenções pontuais. Não por acaso, tanto o comentário jornalístico de Ana Maria Bahiana (“guerrilheira cultural”) quanto a ideia de Josefina Ludmer (“ativismo cultural”) apontam para o traço intrinsecamente político deste tipo de intervenção.

Pensar no legado de Heloisa Teixeira hoje é, como ela mesma previra nos anos 1970, pensar menos numa obra ou em conceitos aplicáveis a este ou aquele objeto do que numa atitude estratégica. O que está em jogo é, desde sempre, tensionar as relações de poder entre instituição e autonomia intelectual, exigências formais e alcance analítico do texto, consistência e leveza na especulação, entre política e desentendimento.

* Paulo Roberto Pires é jornalista, editor da Serrote, colunista da Quatro Cinco Um e professor da Escola de Comunicação da UFRJ.
Referências bibliográficas
BAHIANA, Ana Maria. Heloisa ataca nos biscates culturais. Jornal do Brasil, Revista de Domingo, 9 dez. 1979.

BALDWIN, James. James Baldwin: The Last Interview and Other Conversations. New York: Melville House, 2014.

CACASO; HOLLANDA, Heloisa Buarque. Nosso verso de pé quebrado. In: CACASO. Não quero prosa. Rio de Janeiro/Campinas: Editora da UFRJ/Editora da Unicamp, 1997.

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

HOLLANDA, Heloisa Buarque; PEREIRA, Carlos Alberto M. Patrulhas ideológicas marca reg. – Arte e engajamento em debate. São Paulo: Brasiliense, 1980.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. Escolhas: Uma autobiografia intelectual. Rio de Janeiro: Língua Geral/Carpe Diem, 2009.

KAMENSZAIN, Tamara. Libros chiquitos. Buenos Aires: Ampersand, 2020.

SAID, Edward W. Representações do intelectual: As conferências Reith de 1993. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

VENTURA, Zuenir. O vazio cultural. In: GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloisa Buarque; VENTURA, Zuenir. 70|80 Cultura em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. p. 40-51.

WAMPOLE, Christy. A ensaificação de tudo. Tradução de Paulo Roberto Pires. In: PIRES, Paulo Roberto (org.). 12 ensaios sobre o ensaio: antologia serrote. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2018.
Notas
[1] Entrevista disponível em https://curator.guide/hilton-als.