Ano XX 01
Dossiê
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SESSÃO DA SAUDADE

Cerimônia de posse de Heloisa Teixeira na Academia Brasileira de Letras (Fonte: Academia Brasileira de Letras. Disponível em: https://www.academia.org.br/galeria/cerimonia-de-posse-heloisa-teixeira).
Cerimônia de posse de Heloisa Teixeira na Academia Brasileira de Letras (Fonte: Academia Brasileira de Letras. Disponível em: https://www.academia.org.br/galeria/cerimonia-de-posse-heloisa-teixeira).

Declaro-me profundamente agradecido à Helô e registro também a admiração que sempre tive por ela ao longo de décadas, embora não tivéssemos tido um convívio mais direto. Quando saiu a antologia 26 poetas hoje, eu ainda não conhecia aqueles que hoje estão aqui, mas conhecia alguns dos outros. Um deles, meu amigo até hoje, o Chico Alvim — com quem mantenho um contato quase permanente — me fez ver, imediatamente, que era um livro importante. Destaco também o Zuca Sardan. Os dois não apenas eram meus amigos, mas vizinhos de escritório, digamos assim. Eu trabalhava no 5º andar, no anexo do Itamaraty, e eles no 4º. Então, com eles, tinha um contato muito direto. Conhecia também a Vera Pedrosa e vim a conhecer a Ana Cristina Cesar. Destaco isso porque a Ana foi um elo de contato com a Helô.

A Ana chegou a se hospedar comigo e com minha mulher em Paris, quando morava em Londres. Ela se comunicava muito frequentemente com a Helô. Em 1999, quando a Helô publicou a Correspondência incompleta — uma referência à Correspondência completa, da Ana Cristina, um livrinho amarelo —, ela entrou em contato comigo porque sabia que eu tinha fotos da Ana. Mandei para ela, que colocou as fotos da Ana na primeira página interna, na orelha e na contracapa do seu livro.

Meu contato com a Helô, inicialmente, foi pequeno — até porque eu não morava no Brasil. Mas nos encontramos em 2001, quando ela compareceu ao lançamento do meu livro As cinco estações do amor. Para minha grata surpresa e meu eterno agradecimento, ela foi uma das primeiras a escrever uma resenha sobre o livro, no Jornal do Brasil. E não escreveu apenas sobre aquele livro. Isso revela o cuidado que tinha com seu trabalho crítico, pois fez, naquele momento, uma resenha sobre meus três romances — eram apenas três, na época.

A acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira, como diretora da Revista Brasileira, sugeriu que essa resenha fosse reproduzida em um número mais recente da revista. Conversei com a Helô sobre isso, pois pensei em usar a resenha como prefácio de uma nova edição. Ela me disse: “Olha, fique inteiramente livre, o texto é seu. Fico muito contente, até gostaria.” Ela não me revelou a gravidade do seu problema de saúde, mas já estava muito sem voz, inclusive em nossas reuniões. Nesse telefonema, ela me disse: “Gostaria muito de estar lá presente, inclusive na mesa, mas queria que você me desse um telefonema duas semanas antes, porque, se minha saúde permitir, eu gostaria mesmo de estar lá”. Não dei o telefonema por achar que, de fato, ela não estava bem, ainda que eu não soubesse da gravidade.

Quero falar também de uma coincidência — que não é apenas coincidência. Voltei de uma viagem ao Nordeste, onde tive duas apresentações em Fortaleza e uma em Natal. Em Natal, encontrei uma das poetas da outra antologia que a Helô organizou, As 29 poetas hoje — a Regina Azevedo. Não é coincidência que eu vá a lugares distantes no Brasil e encontre pessoas que a Helô soube identificar com talento, espalhadas pelo país.

Em Fortaleza, precisei escolher alguém para dialogar. Sugeri à Editora Record que convidasse uma das 29 poetas que morava lá: uma professora universitária que veio das quebradas, trabalhou no MST, uma moça negra de enorme talento, que aceitou participar. Disse a ela: “Tenho enorme prazer de estar aqui com uma pessoa que foi identificada pela grande crítica Heloisa Teixeira”. Esse foi o ponto de partida para nosso diálogo — uma conversa sobre o trabalho da Helô com essa jovem tão inteligente e preparada.

Depois, tive uma segunda oportunidade em Fortaleza: pela primeira vez, acho, na história da Academia, nossa Revista Brasileira foi lançada fora do eixo Rio–São Paulo, com autorização da Rosiska. Isso porque havia um retrato da Rachel de Queiroz na revista. Falei nesse evento, assim como a Ana Miranda, que teve contato direto com a Rachel e falou de maneira muito afetuosa sobre ela.

Minha fala foi muito em torno da Helô: quis transmitir ao público aquele texto recente dela sobre a escolha do fardão da Rachel — um texto com muito humor, muito interessante. Além disso, resolvi doar à Academia Cearense de Letras vários exemplares de um dos livros da coleção que organizei na Alemanha, sobre doze grandes autores brasileiros. No caso da Rachel de Queiroz, convidei a Helô para escrever porque sabia que ela já havia escrito sobre a Rachel e gostava dela. Mais que gostar: apreciava profundamente sua ficção, sobretudo as personagens femininas — sempre muito fortes desde O Quinze. A Helô participou do projeto com um texto excelente, como não podia deixar de ser.

Quero registrar também algo que considero importante: a Helô foi uma feminista de destaque, de grande influência. E, mesmo sendo uma feminista convicta, soube reconhecer o valor literário de uma antifeminista declarada como Rachel de Queiroz. O que conto aqui aconteceu na noite de 27 do mês passado; soube da morte da Helô na manhã seguinte.

Queria deixar esse registro: o de que ela me acompanhou, de alguma forma, ao longo de décadas — e me acompanhou de maneira especial nesses últimos dias no Nordeste. Fico eternamente grato por tudo que ela fez. Mesmo não tendo me envolvido diretamente nos projetos tão importantes que ela concebeu e realizou, mantenho profunda admiração pelos caminhos que abriu, pelo papel que sempre desempenhou: o de ser um farol a iluminar novos rumos. Inclusive esse da Universidade das Quebradas, que não se limitou ao Rio de Janeiro — ela o levou, de alguma forma, ao país inteiro. É isso.

* João Almino é escritor e diplomata. Doutorou-se em Paris, orientado pelo filósofo Claude Lefort, e ensinou na UNAM (México), UnB, Instituto Rio Branco, Berkeley, Stanford e Universidade de Chicago. Em 2017 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. É autor de ensaios e romances, entre eles Cidade livre (2010), Enigmas da primavera (2015) e Homens de papel (2022).