Ano XX 01
Entrevista
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Tempo de leitura estimado: 27 minutos

OS CAMINHOS DE CORRESPONDÊNCIA COMPLETA ATÉ A LITERATURA FEMININA

Conversar com Heloisa Teixeira sobre Ana Cristina Cesar é abrir delicadamente uma correspondência que ainda pulsa. Entre Londres, a PUC-Rio e as praias da zona sul do Rio de Janeiro, Ana Cristina atravessou o sufoco da ditadura carregando consigo um pacto silencioso com a tradição literária. Nesta entrevista, revisitamos, em uma conversa generosa, a geração de Ana Cristina, um diálogo enriquecedor, mais de quarenta anos após a publicação do minilivro Correspondência Completa, de 1979. Helô reconstrói o clima festivo e tenso da Poesia Marginal, o retorno de Gil e Caetano, a perplexidade pós-AI-5 e, sobretudo, o refúgio que Ana Cristina encontrou na escrita. Nesta entrevista oito meses antes de sua morte, Heloisa Teixeira relembra a parceria e sua contribuição para a criação daquele livro de 1979, além de destacar a importância de Ana Cristina Cesar como referência de literatura feminina na poesia brasileira contemporânea.

Foto da entrevista do dia 30 de julho de 2024 via Zoom
Foto da entrevista do dia 30 de julho de 2024 via Zoom

Bruno Oliveira Couto: Minha primeira pergunta é sobre o contexto da geração da Ana Cristina. Em 1969, Gilberto Gil e Caetano Veloso foram exilados e foram viver em Londres. No mesmo ano, Ana Cristina tinha 17 anos e estava no projeto missionário na Inglaterra. Sabemos que, em 1971, ela começou a graduação em Letras na PUC-Rio, e, em 1972, Gil e Caetano retornaram ao Brasil. Como você descreveria o sentimento da juventude nessa época com o retorno deles, especialmente no círculo da Ana?

Heloisa Teixeira: Falando especificamente da Ana Cristina, acho que foi um momento muito eufórico. Tivemos 1967 e 1968 com o Tropicalismo, que chegou com tudo e, depois, desmoronou. Foi um projeto que colapsou e deixou as pessoas desorientadas. Mas eles voltaram em 1971 ou 1972?

BOC: Eles voltaram em 1972. Ela começou na PUC em 1971.

HT: Em 1971, quando ela entrou na PUC, já havia uma conjuntura pedagógica muito interessante. Ana era muito próxima da professora Clara Alvim, que era casada com Chico Alvim, poeta da Poesia Marginal. Através de Clara, ela entrou em contato com o grupo do Silviano Santiago. Eles estavam muito conectados ao que estava acontecendo na época. Então, o retorno de Gil foi como um recomeço. Era como se algo novo estivesse começando, porque o período entre 1968 e 1971 foi muito sombrio.

Na PUC, já havia uma agitação considerável, com exposições de poesia. A poesia tinha uma vantagem, pois, naquele momento, não era alvo de censura. A censura não se preocupava tanto com a poesia, então os poetas podiam se expressar com mais liberdade. Isso permitiu que a poesia crescesse bastante. Era algo que não estava no radar da censura, porque era fora dos padrões convencionais de oposição. Assim, a poesia emergiu como uma celebração, e o retorno de Gil foi como combustível para essa festa.

A PUC, por ser uma instituição de elite na zona sul, talvez tenha se mantido um pouco à margem da censura. Ali, havia espaço para exposições de poesia, e essa arte começou a florescer naquele ambiente. Mais tarde, o Cacaso também começou a dar aulas lá. A PUC se tornou o ponto de partida para a poesia, o que não aconteceu na UFRJ, na UERJ, ou em outras universidades. A PUC foi o berço inicial da Poesia Marginal, embora ela tenha migrado para outros lugares depois.

Mas, no começo, a poesia nasceu ali, em um clima festivo. As manifestações e festas estavam entrelaçadas de maneira conceitual, algo muito próximo. Não era exatamente festa, mas também não era ativismo. Era um “tricô” importante, algo que se consolidou em espaços como a praia e, depois, a PUC. Por isso, encontramos a Ana Cristina nesse ambiente. Mas você tem outra pergunta, não é?

BOC: Minha segunda pergunta vem de uma fala do Chacal no filme Bruta aventura em versos. Ele disse que “o sentimento dos anos 70 era o de abrir novos caminhos, outros caminhos que não os da tradição”. Ele completa dizendo: “Nós achávamos que tínhamos que fazer um pacto com a revolução, e não um diálogo com a tradição”. O que você pensa sobre isso?

HT: Espera aí, repete essa frase.

BOC: Claro. Ele disse: “Nós achávamos que tínhamos que fazer um pacto com a revolução, e não um diálogo com a tradição”. É uma fala do Chacal. O que você pensa sobre isso, considerando que a Ana Cristina, por exemplo, estabeleceu um contato forte com a tradição literária e os clássicos? Como você enxerga esse confronto entre tradição e revolução?

HT: Eu acho que nenhum dos dois está inventando a roda, porque tudo isso é uma ideologia contracultural, um pacto contra a revolução comportamental, social, etc. É um pacto forte da contracultura, principalmente a norte-americana, que tem figuras como Ginsberg (Allen Ginsberg), com um conjunto de expoentes importantes. Na América Latina inteira, houve poesia marginal nos mesmos moldes de confecção artesanal de livros, evitando o mercado. Era uma ideia de ser antissistema muito forte, muito forte mesmo. Foi uma linguagem que, depois… não sei se me expresso bem, mas, em 1968, o AI-5 foi como um golpe na nuca: você não sabia para onde ir, ficou perplexo.

O Charles encarna essa perplexidade, porque ele é meio bobão, né? De todos, ele é o mais “Pateta”, digamos. Eu acho o Charles, para falar a verdade, o melhor. Mas a atitude, a performance dele, era uma performance “Pateta”. É o Charles quem mais encarna esse sentimento pós-AI-5: o que fazer? Para onde olhar? Vão me pegar. Estão me observando… o que eu estou fazendo? Vou fugir, vou. Sabe? Essa perplexidade, que a gente chama de “geração do sufoco”, é encarnada para mim magistralmente. O Chacal, por exemplo, era proativo, era malandrinho; ele não era “Pateta”. “Pateta” era o Charles, que foi pego de surpresa, ficou pendurado, sem saber o que fazer.

A alternativa de se filiar ou de se deixar influenciar, ou de se fascinar pela contracultura internacional, foi uma saída para a perplexidade do AI-5. Não era uma oposição direta à ditadura, o que criava uma brecha, um espaço, mas era uma posição diretamente contra o sistema. A ditadura e a tradição literária estavam dentro desse sistema. Eles nomeavam sua postura como uma luta contra o sistema, contra o sistema editorial e literário, que buscava a imortalidade. Eles se caracterizavam como descartáveis – qualquer coisa que agredisse o sistema, eles abraçavam.

Essa geração usou muitos elementos que vemos na contracultura norte-americana, mas não de forma igual. Lá, havia um Ginsberg, uma intervenção no sistema. Aqui, não: saltaram fora, recriando uma literatura com um “pacto com a revolução” que não tinha conexão com a tradição. O pacto com a revolução contracultural não era a mesma coisa da “revolução” de 64, que a gente ainda via como uma revolução. Era um pacto com mudanças comportamentais e culturais.

Outra coisa importante que lembro agora é que muitos do grupo morreram precocemente, o que é interessante de observar. Eles não eram radicais nas drogas, como os americanos, e você não tinha um Mick Jagger aqui. O pacto era mais suave, um pacto com a ideia de comportamento que já tinha ocorrido. Veja, por exemplo, Bruno, a diferença entre a revolução comportamental de Gil e Caetano, que usavam batom, faziam rebolado, falavam sobre homossexualidade e travestilidade. Na poesia marginal, no entanto, era “menino e menina, papai e mamãe” – tudo certinho. Eram jovens universitários, coisa que não ocorria na radicalidade norte-americana, onde havia o “drop out”, o afastamento da universidade. Aqui, essa geração não saiu de casa, não foi para a estrada. Foi tímida, mas estratégica, o que eu adoro, pois era uma contracultura estratégica, e não uma contracultura real, como pregavam os ideólogos.

Ana Cristina Cesar, por exemplo, era muito influenciada pelo contexto familiar. Ela vinha de uma família conservadora, protestante, com pai e mãe religiosos, o que a tornou uma figura muito contida. Sua questão homossexual, por exemplo, não se manifestou até o fim. É complicado tratá-la agora como uma artista queer, porque não me parece que ela gostaria dessa classificação. Ela poderia ser uma inglesa lésbica, algo muito mais tradicional. Colocá-la como exemplo queer é ingênuo; ela nunca teria gostado disso. Mesmo sem ser católica ou protestante praticante, ela tinha uma sólida base familiar.

A questão moral e ética era marcante para ela. Bruno, voltando ao ponto: o que mais me interessa em Ana Cristina são os personagens que ela se autoimpõe. Nas imagens do meu livro Correspondência Incompleta, por exemplo, ela adota a persona da menininha. Aqueles retratos dela são uma tese em si, não precisa falar nada. Ela falava a partir do lugar da literatura, que é enlouquecedor. Imagine, Bruno, não falar sobre seu próprio “eu”. O “eu” de Ana Cristina parece ter sufocado. Ela encontrou, na escrita, um espaço onde podia sonhar e testar seus limites. Escrever era seu passe livre naquela família repressora. Na escrita, ela voou.

BOC: É muito curioso porque muitas pessoas que leem Ana Cristina Cesar não entendem, por exemplo, as expressões dos desenhos e como a mãe dela datilografava as historinhas que ela escrevia.

HT: Sim, era um ponto de fuga que ela encontrou dentro da família.

BOC: Exatamente! Ela, ainda criança, escrevia sobre um Conde que “tinha um Rei na Barriga”, o que é muito interessante. Ela provavelmente ouvia constantemente que era egocêntrica, e as pessoas muitas vezes não enxergam o valor nisso. É realmente curioso.

HT: Claro! Acho que esse aspecto familiar da Ana Cristina é muito mais revelador do que o contexto nacional em si. Parece-me que Ana Cristina nunca aderiu completamente à Poesia Marginal. Ela gostava de estar no grupo, de ir para a Fazenda do Lui, de namorar alguns poetas, de conviver com eles, mas não vejo isso refletido em sua obra. Ela era muito mais ligada à tradição literária inglesa que sua mãe, professora, lhe transmitiu. Se você buscar uma filiação literária para Ana Cristina, não será no modernismo brasileiro, nem entre os seus colegas marginais. Ela tem uma escrita muito mais próxima da tradição inglesa, e ela lidava muito bem com isso. Era uma poeta extraordinária.

BOC: Exatamente! E por isso perguntei sobre o rompimento com a tradição. Acredito que isso é algo muito forte. As pessoas esquecem que Ana Cristina também foi professora, o que lhe deu uma bagagem canônica muito rica.

HT: Sim, muito forte! Ana era uma menina estudiosa, foi assim que me apresentaram a ela. Quando Clara Alvim me apresentou, disse: “Eu tenho uma aluna muito aplicada que também escreve poesia, quer ver?” Ela tinha esse perfil de estudante dedicada, filha de uma professora de literatura inglesa e de um pai que lecionava sobre religiões. Eram dois professores sérios, ligados à tradição. Ana sempre se expressou através da literatura, desde pequena. Como você mesmo observou, já aos sete anos ela usava a literatura para dizer o que não podia verbalizar de outra forma. Isso, do ponto de vista psicológico, é muito interessante, mas também angustiante. Ela sempre se comunicava através de personagens, nunca diretamente como ela mesma.

BOC: Interessante! Esse “fantasiar-se” através da literatura parece realmente central para ela.

HT: Exatamente. Ana Cristina nunca falava de seu ponto de vista pessoal, falava sempre a partir de um lugar literário, como uma forma de escapar. E isso a distanciava da Poesia Marginal, que é muito focada no “eu”, no cotidiano. Na obra de Ana, não vemos o cotidiano. Sua vida pessoal era um tanto sombria, cercada de obrigações familiares. Por exemplo, ela tinha que ler a Bíblia para sua avó cega todos os dias. Esse tipo de compromisso pesava muito nela. Ela considerava isso normal, nunca questionava. Ela tinha um pacto com a família, com a tradição. Sua relação com a literatura inglesa era grande, claro, devido à influência da mãe, mas suas escolhas literárias também eram muito próprias. Ela procurava escritoras lésbicas, figuras literárias que a assustavam ou que desafiavam convenções. Mas sempre dentro da literatura, nunca diretamente da vida dela.

BOC: Muito se fala que o ponto de encontro da geração dos poetas marginais é uma rejeição à estética cabralina. Como você enxerga isso?

HT: Acho que faz sentido. Foi uma clara opção por bandeira, em contraste com João Cabral de Melo Neto. A Poesia Marginal buscava colocar a vida dentro da arte, enquanto em Cabral há uma separação imensa entre vida e arte. Ele esculpia a vida, trabalhava a partir dela de uma maneira muito elaborada, algo que ia contra a busca da Poesia Marginal por uma expressão mais direta da vida.

BOC: Quando você mencionou “Bandeira”, fiquei na dúvida se estava fazendo um jogo de palavras com o poeta Manuel Bandeira, que, de fato, tem uma estética muito diferente da de Cabral.

HT: Não, eu não estava, mas faz sentido. Ana Cristina, no entanto, era mais ligada a Drummond do que a Bandeira, eu diria.

BOC: Talvez um Drummond mais discreto?

HT: Isso, exatamente. Tudo em Ana era mais discreto, muito mais sutil. Ela nunca podia ser escancarada, e essa palavra “discreto” realmente define muito bem a sua postura literária.

BOC: Um texto frequentemente utilizado para criticar o “anticabralino” é Poesia e Composição de 1952. Neste texto, João Cabral menciona a palavra “homem” 18 vezes e o plural 10 vezes, totalizando 28 referências ao termo “homem” ao longo do texto. Em paralelo, Cabral é conhecido por seus críticos como o “engenheiro”. Curiosamente, uma pesquisa da Unesco de 2018 revelou que 90% das mulheres acreditam que a engenharia é uma profissão masculina. Cabral, portanto, é frequentemente associado à figura do homem, ao masculino. No início da nossa conversa, você mencionou que há um movimento para enquadrar Ana Cristina Cesar na literatura queer. Atualmente, há um debate intenso na universidade sobre questões éticas e estéticas. Alguns professores defendem a pureza da literatura e focam na estética, enquanto outros destacam questões identitárias, como literatura homoafetiva, queer e feminina. Parece que Poesia e Composição de Cabral é usado para desviar a discussão estética e focar em uma crítica ética que ele estaria produzindo. Qual é a sua opinião sobre isso?

HT: Acho lamentável essa abordagem. É importante distinguir entre as questões. A descoberta identitária, por mais relevante que seja, não deve misturar-se com a apreciação da qualidade poética. Cabral, de fato, tem uma perspectiva muito masculinista e não dá espaço para a mulher, que permanece silenciada em seu trabalho. No entanto, ele é um grande poeta. É problemático tentar rebaixá-lo ou julgá-lo unicamente a partir de uma perspectiva identitária. Hoje, é provável que Cabral não escreveria da mesma forma, pois o contexto cultural e a consciência evoluíram desde os anos 50 e 60. Naquela época, a consciência sobre a presença feminina na literatura era limitada; eu mesma fiz uma pesquisa sobre isso, e as mulheres eram extremamente raras na literatura dos anos 60. Muitas delas não se declaravam feministas, mesmo quando suas ações refletiam esse posicionamento. A Rita Lee, por exemplo, mesmo desafiando normas de gênero, negava ser feminista. Portanto, a consciência identitária que temos hoje não existia na época de Cabral, e isso deve ser levado em conta ao avaliar seu trabalho. A análise deve contextualizar o momento histórico em que ele escrevia, sem julgá-lo por padrões atuais. A literatura masculina de então estava condicionada por esse contexto histórico.

BOC: É interessante que, no acervo de Ana Cristina Cesar, há o Museu De Tudo do Cabral, que está todo riscado e comentado…

HT: Ana era apaixonada por literatura; para ela, a literatura era o espaço onde podia se expressar, se nomear e se contar. Ela lia e escrevia compulsivamente, utilizando a literatura como um refúgio e um lugar seguro. Era um espaço onde ela podia ser quem era, algo que não conseguia fora da literatura. O espanto é ver como a literatura foi um refúgio importante para ela, uma jovem lésbica que poderia ter encontrado felicidade e não ter tomado a decisão trágica que tomou.

BOC: O livro Correspondência Completa é estruturado em formato de carta, um gênero textual frequentemente associado à expressão feminina, muitas vezes caracterizado por fofocas, mentiras e um vocabulário informal. Ana Cristina Cesar se refere a artistas como Shakespeare e Walt Whitman e inclui relatos menores em comparação com textos canônicos. Você acha que Ana utiliza o gênero epistolar para responder à crítica que Cabral levanta e ao que ele considera cânone?

HT: Não, eu acredito que Ana não escreve cartas no sentido convencional; ela escreve Literatura. E, como ela mesma diz na orelha de Correspondência Incompleta, “para mim, cartas são mais importantes do que a literatura”. O gênero da carta é Literatura, e se você ler as cartas em Correspondência Incompleta, verá que um mesmo fato é narrado de quatro formas diferentes, uma para cada amiga. As cartas não são sobre a vida cotidiana, mas sobre a literatura que ela está criando. Ela diz o que cada uma quer ouvir. Para mim, ela fala de um jeito; para a Clara, de outro. É impressionante como essas comparações mostram que ali ela não está simplesmente escrevendo uma carta. Uma carta geralmente transmite uma informação direta, como “nasceu uma Margarida aqui do lado”, mas ela escreve quatro versões diferentes disso. O papel da carta na vida de Ana Cristina não é a intimidade, a fofoca ou o afeto, mas a carta literária, a que vai ser publicada.

O contexto de Correspondência Completa foi o seguinte: eu estava passando um fim de semana em Búzios e, enquanto estávamos inventando um livro para Ana, sugeri que fizéssemos um livro que não existisse. A ideia era criar um livro chamado Correspondência Completa com apenas uma carta. Ana já tinha milhares de cartas, então havia uma ironia no título: uma carta só. Criamos um livrinho pequeno, fizemos a capa em casa e utilizamos um estilo de selagem que era comum para material pornográfico em banca de revista na época. Então, a gente copiou isso e botou uma coisa muito pior para os bibliógrafos, a segunda edição e ficamos as duas rindo porque achando que os bibliógrafos, os pesquisadores iam procurar a primeira edição o resto da vida e não tinha, a gente começou pela segunda edição para chatear os bibliográficos. Foi um livro que desafiou o sistema literário formalmente e de conteúdo.

Ana escreveu uma carta para mim e para Armando, sua mãe e pai, respectivamente. Armando chegou tardiamente à vida de Ana, mas teve um papel importante como seu preceptor. Ele era um poeta da Práxis, um movimento que radicalizava o concretismo e era mais formal e político. Sua influência em Ana Cristina foi significativa, mesmo que ele não tenha sido incluído nas antologias de Poesia Marginal. Ana pediu a proteção paterna de Armando, o que é notável do ponto de vista literário, considerando a combinação de Ana Cristina com a Práxis.

Esse livrinho que você escolheu é brilhante. Ele aborda muitos temas e, se você o analisar mais a fundo, verá que ele discute tudo: o cânone, a série literária, as influências de Ana, e até mesmo a ideia de elevar a carta à literatura.

Heloisa Buarque de Hollanda e Ana Cristina Cesar em Búzios, c. 1970, por Cecília Londres (Arquivo Ana Cristina Cesar/Acervo IMS).
Heloisa Buarque de Hollanda e Ana Cristina Cesar em Búzios, c. 1970, por Cecília Londres (Arquivo Ana Cristina Cesar/Acervo IMS).

BOC: Fala de gênero quando ela diz “my dear”, é uma discussão de gênero de interlocutor. Quem é esse destinatário?

HT: Exatamente, a discussão sobre o interlocutor é fundamental. Acho que você fez uma escolha brilhante ao selecionar este livro.

BOC: Minha grande questão está relacionada à maneira como Cabral argumenta que a poesia não precisa de inspiração ou imaginação, em contraste com Ana Cristina Cesar, que institucionaliza a fofoca. Quando ela menciona estar cansada do “pau do Thomas”, há uma fofoca sem valor literário aparente, mas há uma construção estética interessante.

HT: Sem dúvida, isso se torna literatura. Ana não dá um passo em falso; ela mobiliza você. Ao encontrar o texto da Ana, você se pergunta: onde está ela?

BOC: É curioso que a carta seja assinada por Júlia, mas a capa do livro, que tenho em fac-símile, está assinada por Ana Cristina Cesar.

HT: Fui eu quem fiz! Ficou muito bonito. A Companhia das Letras fez uma reedição, mas a cor original do livro, que era Amarelo Kodak, foi alterada para creme, pois não sabiam a cor original.

BOC: O que você acha da discussão entre literatura feminina e literatura feminista atribuída a Ana Cristina Cesar?

HT: Vamos ver, então, o que estamos chamando de feminismo. Feminismo é um ativismo, é uma forma de juntar uma porção de gente, pegar uma causa ou uma questão — seja o aborto, seja a falta de presença no mercado cultural, enfim, seja qual for a causa — e tentar lutar por ela. Isso é o feminismo: uma luta por direitos humanos, por direitos civis. Aliás, desculpe, uma luta por direitos civis que visa mudar a sociedade.

Agora, chamar uma literatura de feminista é complicado, pois isso implicaria um ativismo interno. Eu não vejo isso. Vejo uma literatura de mulher, que coloca a questão: “Existe literatura feminina porque as mulheres existem?” Ela foi atrás do caso das poetas que já existiam, não me lembro qual foi o nome, mas ela viu os prefácios que foram feitos para a Cecília Meireles, se não me engano, ou algo equivalente. Ela percebeu que toda a crítica masculina em relação às mulheres dizia que elas escreviam flores, que era gentil, que a literatura delas era empenhada. Tecnicamente boa, mas era uma discussão muito voltada para a delicadeza. Mulher não é isso. Esses homens estavam reduzindo a mulher a um sentimento ou uma característica, algo que não existe. A literatura masculina está pressionando a literatura feminina. Ela (a crítica) dizia que as mulheres até hoje fazem um estilo de mulher, mas não falam de temas de mulher. E temas de mulher não existiam até então. Ana Cristina César, em seu texto, coloca um pouco essa questão, mas não muito. Ela fala de ginecologista, fala um pouco de sexo de maneira leve, mas não explicita.

Se você abrir a última leva de poetas que está no As 29 poetas hoje, verá que os temas abordados são menstruação, sexo do ponto de vista da mulher (e não do homem, como sempre foi), silêncio, parto. Há um poema sobre parto da Marília Kosby que é extraordinário. Ela é o que? Como se chama a mulher que faz parto? Não é parteira, mas tem outro nome… Bom, enfim, ela trabalha com gado. Ela tem uma fazenda e realiza partos de vacas, então descreve o nascimento de um bezerro, com tudo o que envolve, não é só “saiu um bezerro de dentro de uma vaca”. Ela faz esse poema, que é magistral, e impacta a ideia de parto, imediatamente, não só como um parto, mas também sobre o que é ter um filho na vida de uma mulher, um filho que vai durar até ela morrer, porque não para. Você teve um filho? Ele será seu o resto da vida, vai dar trabalho, vai dar problema, e não vai acabar nunca. Esse parto do bezerro, por exemplo, é algo exemplar, é um tema de mulher, que Ana Cristina pedia, e que essas novas poetas estão trazendo. Mas, na obra de Ana Cristina, não há ainda muitos temas de mulher; há sombras de temas que, só agora, estão sendo escancarados com essa quinta onda feminista. No entanto, eu não diria que o poema da Marília é um poema feminista. Eu estou fazendo uma leitura feminista, mas você pode ver esse poema e interpretar de outra maneira, sem chegar à afirmação de ser um poema de mulher.

BOC: Mas você não acha que, por exemplo, quando Ana Cristina cita Ângela Melim com “estou cansada de ser homem”, ela está respondendo a essa pergunta?

HT: Que pergunta?

BOC: A pergunta sobre a existência de uma literatura feminina, que você mencionou.

HT: Vamos analisar o que entendemos por feminismo. O feminismo é um ativismo, é uma forma de reunir pessoas em torno de uma causa, seja ela o aborto, a falta de representação no mercado cultural, entre outras questões. É uma luta por direitos civis e humanos que busca mudar a sociedade. Chamar uma literatura de feminista implica em um ativismo interno, o que eu não vejo presente. Vejo, sim, uma literatura feminina que levanta a questão: “existe uma literatura feminina?”.

Ana Cristina Cesar observou a crítica masculina que desconsiderava as mulheres como autoras relevantes, reduzindo suas obras a temas delicados e características femininas. Ela questionou a pressão da literatura masculina sobre a literatura feminina. Ana Cristina identificou que, mesmo que as mulheres escrevam de um ponto de vista feminino, os temas abordados ainda não refletem de maneira ampla a experiência feminina. Ela mencionou temas como ginecologia e sexo, mas de forma sutil.

As novas poetas, no entanto, estão explorando esses temas de maneira mais explícita. Por exemplo, em As 29 poetas hoje, encontramos temas como menstruação, parto e sexo do ponto de vista feminino. Um poema notável é o da Marília Kosby sobre o parto de um bezerro, que oferece uma visão impactante sobre o nascimento e a maternidade. Embora eu faça uma leitura feminista desse poema, ele não é necessariamente um poema feminista. O que vemos é uma evolução na exploração de temas femininos na literatura, que começou com Ana Cristina Cesar e está se aprofundando agora com a nova geração de poetas.

BOC: Sou professor de português para estrangeiros e dou aulas para pessoas de todo o mundo. Tenho uma conexão com a classe média desses países. Uma vez, durante uma aula para uma russa, no intervalo com outros professores, ela disse: “Ah, eu preciso ir à farmácia.” Imediatamente perguntei: “Você está se sentindo bem? Precisa de ajuda?” Ela respondeu: “Não sei se posso falar sobre isso perto de você, porque você é homem.” Ela tinha um pudor em mencionar que estava “naqueles dias” na minha presença.

HT: Bruno, as mulheres enfrentam muitas dificuldades e restrições. Ana Frango Elétrico tem um poema maravilhoso sobre menstruação. Isso reflete a questão que Ana Cristina Cesar abordava: sua posição na vida não era uma posição ativista, embora ela tivesse uma consciência muito aguda das questões feministas. Ela era mais uma pensadora do que uma ativista, e sua poesia não se expunha explicitamente a essas questões. No entanto, você pode fazer uma leitura feminista de sua obra. A voz feminina na sua poesia é muito poderosa e curiosa, e mesmo que não haja uma ação explícita, há uma presença feminina forte.

BOC: Em algum momento da nossa história contemporânea, entendemos que certos gêneros textuais, como manifestos com frases no imperativo e comandos claros direcionados aos leitores, se tornaram inviáveis, principalmente aqueles que buscam indicar uma nova ordem estética. Você acha que Correspondência Completa possui alguma pretensão nesse sentido, como um texto-base para um manifesto relacionado à Poesia Marginal?

HT: Não, não acho que tenha essa pretensão. O projeto do livro, Correspondência Completa, foi inicialmente irônico. Era uma tentativa de criticar o sistema literário e a produção literária em geral, abordando cada aspecto com ironia. Não havia a intenção de criar um manifesto. A ideia era mais uma crítica do que uma proposta de nova ordem estética.

BOC: Quando penso na Poesia Marginal, considero que Correspondência Completa antecipa todos os outros poetas dessa geração. Há um anticabralismo muito forte no livro, uma discussão sobre gênero, e uma mistura da música popular com o cânone literário que não era comum na poesia brasileira antes. Ana Cristina coloca Roberto Carlos em primeiro plano e Shakespeare e Whitman em segundo plano, até escreve o nome de um deles errado. Isso expressa a vontade da juventude de forma intensa. Por isso, pensei que Correspondência Completa tem uma forte conexão com a Poesia Marginal. Mas você não vê isso como um manifesto?

HT: Não, não considero um manifesto. A obra foi criada e, ao longo do tempo, você pode interpretá-la como um manifesto. A interpretação depende da leitura que se faz do livro. Eu, do ponto de vista prático e real, estava com Ana Cristina criando o livro, e não pensávamos nele como um manifesto. Era um trabalho mais intuitivo e brincalhão. No entanto, é possível recuperar e reinterpretar o livro sob essa perspectiva.

BOC: Parece que todos os princípios presentes em Correspondência Completa foram retomados por poetas como Chacal e Cacaso. Há um humor e uma leveza que também remetem à poesia modernista da primeira fase, o que é muito interessante. Mas eu sempre me pondero: se eu tivesse que definir as características da Poesia Marginal, começaria por Correspondência Completa. Só mais uma pergunta, professora, prometo. Pensando na questão anterior, parece que Ana Cristina Cesar, com sua abordagem intelectual e formação acadêmica, estaria mais interessada em uma discussão profunda e em reivindicar uma nova literatura. Qual era, de fato, a literatura da época, e qual é o lugar que Ana Cristina ocupa nesse contexto?

HT: A nova literatura é uma retomada da questão que mencionei anteriormente: “qual é o limite mínimo entre arte e vida?”. Tenho certeza de que isso é o que a Poesia Marginal representa, e é algo que foi explorado em vários momentos da história. O modernismo também tentou fazer essa aproximação, mas não de forma tão radical quanto na Poesia Marginal. Essa aproximação entre vida e arte é uma questão estética complexa. Ana Cristina, apesar de pertencer social e culturalmente ao grupo da Poesia Marginal, não a vejo como uma poeta marginal em termos literários. Sua obra e sua vida não fazem a mesma pergunta que a literatura marginal faz.

BOC: Você comentou que as festas eram um ambiente importante na construção desse contexto. Você acha que, por ela estar em um espaço mais reservado, por causa da religião e da família, ela não se encaixava totalmente?

HT: Ela pertencia totalmente ao ambiente das festas, mas não aderiu a ele da mesma forma. Havia uma diferença entre pertencer e aderir plenamente.

* Bruno Oliveira Couto, graduado em Letras (Português-Literaturas) pela UFRJ, atualmente faz mestrado em Teoria e História Literária na UNICAMP. Sua pesquisa é dedicada a Ana Cristina Cesar e à Poesia Contemporânea.