Ano XX 01
Dossiê
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Tempo de leitura estimado: 17 minutos

…HELÔ, NO MEIO DO CAMINHO

Sobre um encontro com uma mulher que transformou a minha trajetória literária.

como é bom ser camaleão
quando o sol está muito forte,
como é bom ser um camaleão
e ficar em cima de uma pedra espiando o mundo.
se sinto fome, pego um inseto qualquer
com minha língua comprida.
se o inimigo espreita, me finjo de pedra
verde, cinza ou marrom.
e, quando de tardinha o sol esfria,
dou um rolê por aí
Chacal
26 poetas hoje (1976)

Meu primeiro encontro com a Helô foi em um livro, no início dos anos 2000, como leitor. Para ser mais preciso, foi em 1968 – O ano que não terminou (1989), de Zuenir Ventura. Estudante de Jornalismo, fui atrás das obras do “mestre Zu”, como Helô gostava de chamá-lo. Foi assim que esbarrei com a professora em sua voz impressa, na apresentação do livro, relembrando o emblemático ano que marcaria sua produção crítica e cultural.

Como o Brasil de então, o réveillon de Helô tinha tudo para dar certo, a começar pela dona da casa. A professora Heloísa Buarque de Hollanda, bonita, culta e de esquerda, era mito e ícone da intelectualidade carioca dos anos 60. Com esses tempos a “Bela Mestra” iria fazer a matéria-prima de sua tese de doutorado uma década depois. Misturando duas viagens – a sua e a da História –, o seu trabalho ensinaria ao meio acadêmico que saber e competência não precisam ser chatos. (Ventura, 1989, p.26)

Esse parágrafo me pegou de jeito. Lido sob a luz de uma luminária fraca, no calor abafado de um quarto alugado em Copacabana, abriu um novo mundo diante de mim. A “Bela Mestra” parecia um tipo de personagem maior do que a vida, dessas que saem das páginas e cruzam os corredores do tempo. Lembro de guardar, em silêncio, um desejo íntimo: um dia conheceria Heloísa.

Naquela época, meu cotidiano era marcado por deslocamentos: dividia apartamento com amigos no Rio de Janeiro, conciliava os estudos na escola de teatro Martins Pena e na faculdade de Jornalismo com o estágio na rádio JB FM e na Rádio Cidade. No tempo livre, me lançava nos sebos do Centro em busca de palavras que pudessem me salvar. E foi ali que encontrei, em meio à poeira e capa gasta, um dos livros mais falados de Helô: 26 poetas hoje (1975). Quando comecei a leitura, compreendi os elogios de Zuenir. Heloísa era, de fato, singular. Tinha algo de rara escuta e ousadia, um faro certeiro para o novo.

Depois vieram Impressões de viagem – CPC, Vanguarda e desbunde 1960/1970 (1980), Esses poetas – uma antologia dos anos 90 (1998), Asdrúbal trouxe o trombone (2004), Explosão feminista (2018)… Eu lia (e ainda leio) Helô como quem entra numa roda de conversa com o país. Uma roda em que todas as vozes têm lugar, mesmo as que o centro costuma calar.

Alguns meses após essas primeiras leituras, em 2007, tive a surpresa feliz de conhecer Heloísa pessoalmente. O encontro aconteceu por intermédio do cineasta Murilo Salles e da poeta Maria Rezende, num debate sobre blogs e literatura — sim, Helô estava sempre conectada ao que fervia. Pouco depois, em 2008, entrei para o Portal Literal (2002), a convite da escritora Cecilia Giannetti. A redação funcionava dentro da Editora Aeroplano, sob a batuta de Elisa Ventura. A equipe ainda contava com Bruno Dorigatti e Valeska Zamboni. Helô era a dona do projeto, a mente pulsante por trás daquela experiência digital, muito antes das redes sociais virarem o que são.

Foi ali que me tornei seu parceiro de viagem — uma expressão que ela gostava de usar. O Literal era mais que um trabalho: era um espaço de invenção, de troca, de riso, de desassossego. Helô nos desafiava o tempo inteiro. Estimulava ideias, plantava inquietações, conectava mundos. Sob sua batuta, me aproximei da obra de Lygia Fagundes Telles, Ferreira Gullar, Rubens Fonseca, Veríssimo… Mas, mais do que nomes, Helô me aproximou de mim mesmo, e me apresentou um mundo de pessoas e livros.

Helô foi a primeira pessoa a prestar atenção à minha poesia. Eu estava prestes a publicar Vinis Mofados (2009), meu primeiro livro, e compartilhei a novidade com ela. Uma semana depois, me chamou e disse: “Fiz uma orelha para os seus Vinis.” Fiquei atordoado. Eu, que nem tive coragem de pedir. Ela, generosa, foi além e me presenteou com palavras que até hoje me escoram: “Ler Vinis mofados de Ramon Mello é acompanhar uma busca. E isso é sempre um momento de delicadeza. Foi assim que me senti ao ler os originais de Ramon” (Hollanda apud Nunes, 2009, n.p.).

O que mais me encantava em Helô era essa disposição afetiva de se deixar tocar pelo novo. “Por você/ virei a página”, dizia que ganhei uma leitura por esse verso. Ela escutava o inacabado, valorizava o processo, sabia reconhecer potência mesmo quando ela ainda estava se formando.

Cada encontro com Helô era uma viagem. Uma viagem alegre, intensa, às vezes esbaforida, mas sempre generosa. Grifei este trecho do prefácio de Impressões de viagem (1992), na primeira leitura: “Viagem. Mais atraente do que chegar a lugares é transitar entre um e outro. Deixei-me onde parti. Intervalei-me” (Hollanda, 1992, p.13). Ela vivia nesse entre-lugar fértil, ensinando a cruzar fronteiras — da academia à favela, da poesia ao ciberespaço, do teatro à rua.

Sua casa (ela mudava e fazia obras com frequência) era uma espécie de laboratório informal onde nasciam ideias. Sentávamos à mesa com café e livros, e dali saíam projetos, antologias, oficinas, conversas intermináveis sobre o que realmente importava. Foi lá que conversamos sobre a ideia de fazer o livro Escolhas – autobiografia intelectual de Heloisa Buarque de Hollanda (2009). A edição ficou por conta de Eduardo Coelho, com textos de Zuenir Ventura e Beatriz Resende. Helô tecia suas memórias com uma clareza desconcertante, reunindo fragmentos de uma trajetória intelectual e afetiva que se entrelaçavam com a história do Brasil.

A epígrafe escolhida por Beatriz, de Susan Sontag, reverberava com perfeição: “Escrevo para definir a mim mesma — um ato de autocriação — parte do processo de tornar-se — num diálogo comigo mesma, com escritores que admiro, vivos e mortos, com leitores ideais…” (Sontag apud Hollanda; Mello, 2009, p.13).

A vida com Helô era isso: um constante processo de tornar-se, de aprender a cada dia, de abrir espaço para o outro e, assim, se transformar.

Com ela, realizei ainda a curadoria do projeto ENTER – Antologia Digital (2009), ao lado de Cecilia Giannetti, Bruna Beber e Omar Salomão. Juntos, reunimos 37 autores que navegavam pela internet e pela literatura com fluidez. Havia de tudo: poetas, músicos, cartunistas, web designers, ativistas. Helô acreditava na legitimidade de cada voz, sem hierarquias. Quando perguntei, em uma entrevista em vídeo para o portal Saraiva Conteúdo, se existia uma literatura específica da internet, ela respondeu com brilho nos olhos: “Antes o poeta colocava o poema na gaveta. Agora, o texto vai ao público, sendo testado a todo instante” (Hollanda; Mello, 2009).

Havia nela uma excitação permanente com o presente. Um tesão em pensar. Horas bordando ideias, girando conceitos, costurando redes.

Não posso deixar de lembrar da ocupação poética A Palavra Toda (2011), realizada no Sesc Copacabana, com curadoria dividida entre mim, Helô e o poeta Chacal, sob a gerência de Maria José Motta Gouvea. Reunimos ali diferentes gerações de poetas, do mimeógrafo às mídias digitais. Foi um acontecimento; um ato político; uma celebração da palavra em suas múltiplas formas e corpos. Helô nos lembrava, o tempo todo, que literatura também é performance, é gesto, é corpo presente.

Com o tempo, nos afastamos dos projetos em comum, mas não da afetuosidade mútua. Ela mergulhou com ainda mais vigor em suas pesquisas sobre feminismos e cultura periférica. Eu me voltei à poesia e à questão do HIV[1], tema que se tornou central na minha trajetória acadêmica e pessoal. Entretanto, estamos ligados pelo pensamento e pela poesia.

Helô nunca pensou a poesia como uma forma cristalizada ou estanque. Ao contrário, sua escuta sensível e sua disposição de caminhar com os poetas das margens, dos morros, das pistas e das ruas a tornaram uma das principais intelectuais a compreender a potência da poesia como linguagem de resistência e invenção. Em sua leitura da poesia contemporânea brasileira, Helô sempre privilegiou a abertura ao novo, ao dissidente, ao periférico — ao que, por muito tempo, esteve fora dos cânones.

Desde a antologia 26 poetas hoje (1976), marco incontornável da poesia marginal dos anos 1970, ela já intuía que a transformação estética da linguagem andava de mãos dadas com as transformações sociais e políticas. Para Heloísa, o valor da poesia não se media por formalismos nem pela obediência a modelos consagrados, mas pela capacidade de dizer o indizível, de dar voz a experiências silenciadas. O poeta, para ela, era aquele que arriscava, que criava “fora da curva”, como costumava dizer.

Nas últimas décadas, Helô se voltou com ainda mais força para as vozes dissidentes — mulheres, LGBTQIA+, escritores negros, indígenas, poetas das periferias —, entendendo (assim como acredito) que a poesia contemporânea brasileira se alimenta dessas fraturas e nelas encontra sua potência. Para ela, a poesia era um território de liberdade radical, em que o corpo, o desejo e a política se cruzam e se contaminam.

Por tudo isso, Helô resolveu lançar As 29 poetas hoje (2021), reunido mulheres que fazem uma poesia híbrida, feminina, feminista e ancestral. Vozes que impressionam pela coragem e furor: Adelaide Ivánova, Maria Isabel Iorio, Bruna Mitrano, Rita Isadora Pessoa, Luna Vitrolira, Mel Duarte, Liv Lagerblad, Natasha Felix, Stephanie Borges, Valeska Torres… Helô contribuiu para se enxergar um feminismo múltiplo, com lógicas mais comunitárias. Ela estava atenta ao caráter estrutural e institucional do racismo e do sexismo presentes na cultura e trazia esse olhar para a literatura. Defendia o caráter autoral da curadoria, da responsabilidade dessas escolhas. Sem dúvida, suas antologias comprovam essa busca.

A poeta como curadora também deixa sua marca: ocupações, saraus, coletâneas, encontros digitais. E, na trajetória de Helô, tudo fazia parte de seu esforço contínuo de conectar poéticas e práticas culturais. Foi por meio dessa escuta múltipla que ela ajudou a legitimar estéticas que antes não eram reconhecidas pela crítica hegemônica. Seu pensamento sobre poesia nunca esteve separado da prática, da ação, do coletivo.

Como pensadora, Helô compreendia que não se trata apenas de analisar poemas, mas de ouvir o que pulsa neles como um grito de existência. Essa escuta política e afetiva é uma de suas maiores heranças. Ao pensar a poesia contemporânea brasileira, Heloísa nos ensina que o verso é uma forma de vida — e, sobretudo, de luta.

Luta essa que pretendo continuar, com as palavras. Foi por incentivo dela que entrei na academia. Inicialmente, tentei a PUC, com cartas de recomendação assinadas por ela e por Affonso Romano de Sant’Anna. Não fui aprovado, mas a semente estava lançada. Mais tarde, com o apoio de Eduardo Coelho — parceiro de Helô e hoje meu orientador —, ingressei no mestrado da UFRJ e, depois, no doutorado.

Em 2015, publiquei uma carta[2] sobre minha sorologia positiva para HIV. Ela me ligou assim que leu: “Adorei o que escreveu, admiro sua coragem. É isso, meu amigo, transforma tudo em literatura. Agora, entra para a UFRJ e vai estudar!”

Essa frase ficou gravada em mim como uma ordem amorosa. Helô vibrava com minhas conquistas, me ligava sempre que uma novidade surgia. Meses antes de falecer, me escreveu para dizer que tinha lido a obra do Cazuza que organizei e que se sentia orgulhosa. Ela não precisava fazer isso — mas fazia. Por pura generosidade.

Helô era uma espécie de antena. Sintonizava o futuro antes que ele chegasse. Não era apenas alguém que falava sobre cultura — ela a praticava, a vivia. Tinha uma capacidade quase mediúnica de perceber o que estava por vir, de farejar o novo nas dobras do agora. E, mais do que isso, tinha a coragem de apostar em linguagens, vozes e presenças que o mundo ainda não estava pronto para ouvir. Quantos nomes ela lançou, quantas sementes plantou? Era impossível não se contaminar com seu entusiasmo, com aquela mistura explosiva de pensamento crítico e intuição afiada. Helô não apenas pensava a cultura — ela a reconfigurava. Seus projetos sempre partiam do desejo de romper muros, de embaralhar fronteiras. Foi assim com Enter (2009), Tramas urbanas (2007), Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC (1994), Universidade das Quebradas (2009)… Nomes que não são apenas títulos de iniciativas, mas formas de pensar o tempo, a memória, o corpo, a criação.

Lembro do brilho nos olhos dela ao falar do Tramas urbanas (2007). De fato, o projeto tem a beleza e a sensibilidade editorial características de Helô. Ela percebeu que uma nova cultura da periferia estava se impondo como um dos movimentos culturais de ponta no país, então resolveu criar Tramas como uma “resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história”. Não cansava de ressaltar a força e o poder de interpelação dessa produção periférica, como fenômeno mais importante da virada do século. Para a curadoria da coleção, Helô escolheu o ninguém menos que o poeta Écio Salles (o criador da Feira Literária das Periferias – FLUPP, junto com Julio Ludemir). O Tramas revelou pensadores importantes da cultura como Marcos Vinicius Faustini, Ericson Pires, Sergio Vaz, Cristiane Ramalho, Alessandro Buzzo….A carreira de Helô é marcada por uma travessia constante entre o saber acadêmico e o calor das ruas, entre o rigor teórico e a experimentação. Professora emérita da UFRJ, fundadora e coordenadora do já citado PACC, Helô foi pioneira ao colocar em diálogo temas como feminismo, cultura digital, literatura marginal, identidade de gênero, movimentos sociais e pensamento decolonial — muito antes desses debates se tornarem correntes.

Era também uma mulher de afetos generosos. Sabia acolher, apoiar, provocar. Gostava de conversar por telefone, de enviar mensagens carinhosas, de vibrar pelas conquistas dos outros. Seu compromisso com as causas que abraçava não era teórico: era visceral. E isso se refletia em tudo o que fazia — dos livros às curadorias, dos projetos digitais aos debates acadêmicos.

A sua entrada na Academia Brasileira de Letras, em 2023, foi emblemática. Não apenas por ser uma mulher em um espaço historicamente masculino. Mas porque, com ela, entraram também as vozes das margens, das travestis, das mulheres negras, dos coletivos periféricos, dos poetas de rua, dos performers. Com ela, entrou um outro Brasil. Um Brasil mais complexo, mais vivo, mais verdadeiro.

No velório de Helô, nas dependências da ABL, o silêncio tinha um peso histórico. Mas também havia canto, risos emocionados, lembranças ditas em voz alta por quem a amou. Ao redor do caixão, mesmo tristes com a passagem de Helô, todos sorriam cúmplices de ter tido a alegria de conviver com uma mulher tão cheia de vida: Omar Salomão, Alice Sant’Anna, Mariano Marovatto, Silviano Santiago, Ana Cecília Impelliziari, Teresa Karabtchevsky, Ana Madureira, Numa Ciro… Eu olhava para aquelas paredes centenárias e imaginava a menina de Copacabana, que tantos diziam bela e inteligente, agora eternizada em um espaço que tantas vezes ignorou as vozes como a dela. E ela ali, multiplicada em nós. Presente em cada afeto que plantou.

Fiquei sentado no banco de madeira por um longo tempo. Lembrei de cada encontro, cada telefonema, cada gargalhada em torno de uma ideia maluca que poderia virar um projeto. Lembrei do dia em que me falou da emoção que sentia ao escutar uma jovem mulher trans recitar um poema na Universidade das Quebradas. Lembrei da vez em que me disse: “Se um texto não te abala, não vale a pena ser lido”. Fiquei ali admirando as imensas coroas de flores que ela recebeu, em uma delas dizia: “Para nós, do Literatura & Liberdade: Helô para sempre”. Eu li e sorri. Era como estivesse ouvindo a voz dela dizendo: “O que importa são as pequenas epifanias, Ramon. Aproveite porque passa rápido, os 80 chegam rápido!”

Coroa de flores no velório de Helô, na ABL (Fonte: Wagner Alonge, 2025).
Coroa de flores no velório de Helô, na ABL (Fonte: Wagner Alonge, 2025).

Após seu velório, tive a oportunidade de assistir ao documentário Helô (2023), dirigido pelo cineasta Lula Buarque de Hollanda, seu filho. É fascinante o orgulho dos filhos com a mãe ilustre, que transformou a cabeça de diferentes gerações. Helô fez diferença por onde passou. Não por acaso, é considerada uma das principais intelectuais brasileiras. Heloisa Buarque de Hollanda, que deixou marcas importantes no pensamento nacional, principalmente na poesia e na cultura brasileira. O documentário ilumina a trajetória de uma mulher-ícone que sempre esteve na vanguarda, como um imenso farol. Impossível esquecer Helô e seu sorriso luminoso. Agradecido, Helô, por tanto.

Em outro documentário, O Nascimento de H. Teixeira (2024), de Roberta Canuto, ela começa o filme falando sobre morte, como se estivesse prevendo a aproximação: “Ninguém pode prever a própria morte, mas eu consigo ver a minha. Tenho enfisema pulmonar; se eu me interno, vou entubada e não saio mais” (Hollanda apud Canuto, 2024).

Nós que perdemos, Helô, sua presença.

Heloisa Maria Buarque de Hollanda. Heloisa Buarque de Hollanda. Heloisa Teixeira. Ou, simplesmente, Helô. Uma mulher que nasceu em Ribeirão Preto, em 1939, mas foi no Rio de Janeiro que construiu sua trajetória intelectual e afetiva mais intensa. Graduou-se em Letras, fez mestrado e doutorado em teoria crítica, e logo se destacou como uma das intelectuais mais ousadas e livres da academia brasileira.

Helô me ensinou a importância de ser atravessado. De não temer as rachaduras, os desvios, os excessos. Ela própria era excesso — no melhor sentido da palavra. Um transbordamento de ideias, de amor, de coragem.

Com Helô (Fonte: Arquivo pessoal, 2017).
Com Helô (Fonte: Arquivo pessoal, 2017).

Hoje, ao escrever estas linhas, sinto que a melhor homenagem que posso lhe fazer é continuar. Continuar a escrever, a estudar, a acreditar no poder transformador da palavra. Continuar a construir redes. Continuar a insistir, como ela, que a cultura é um campo de batalha — e, também, de afeto.

Helô era, como muitos a definiam, uma visionária. Mas talvez o melhor seja dizer que ela era uma mulher em constante estado de reinvenção. Vivia no presente, mas com um olho no que estava por vir. O por vir lhe dava tesão na vida. Sua curiosidade era insaciável. Seu riso, inconfundível. Sua inteligência, contagiante. Pergunte a quem conviveu com ela, era uma mulher que caminhava em diferentes mundos nutrindo curiosidade por tudo e todos.

Helô não era uma mulher de chegada
era uma mulher de travessia
Helô era um camaleão
desses que pintam no verso
do Chacal
com Helô
tudo era novo
e ainda hoje
tudo continua sendo
ela está no meio do caminho
viva
nos encontros
nos livros
nos gestos
nos afetos
nas ideias
nas palavras
na palavra toda
na poesia
toda

* Ramon Nunes Mello (Araruama/RJ, 1984) é poeta, escritor e jornalista. Desde 2012, vive com hiv e é ativista de direitos humanos. É ainda mestre em Letras Vernáculas – Poesia Brasileira (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, 2017), doutorando em Ciência da Literatura na mesma instituição. Entre outros títulos, organizou Escolhas: Uma autobiografia intelectual (2010), de Heloisa Buarque de Hollanda; Tente entender o que tento dizer: Poesia + hiv/aids (2018); Ney Matogrosso: vira-lata de raça – memórias (2018); Meu lance é poesia – Cazuza (2024); e Protegi teu nome por amor – Cazuza – fotobiografia (2024), este último com Lucinha Araujo. Atualmente, é curador da exposição Cazuza: Exagerado, no Shopping Leblon, e realiza mediações do Clube do Livro CCBB-RJ, ao lado de Suzana Vargas.
Referências bibliográficas
CANUTO, Roberto. O nascimento de H. Teixeira.  Brasil: Raccord Produções, 2024. 82min.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. 29 poetas hoje. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil, 1976.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Esses poetas – uma antologia dos anos 90. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil, 1998.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem – CPC, Vanguarda e desbunde 1960/1970. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1980.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Asdrúbal trouxe o trombone – memórias de uma trupe solitária de comediantes que abalou os anos 70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Explosão feminista: Arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Org. MELLO, Ramon Nunes. Escolhas – autobiografia intelectual de Heloisa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Carpe Diem, Língua Geral, 2009.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. HELÔ. Brasil: Conspiração Filmes, 2024. 90min.

MELLO, Ramon. Vinis mofados. Rio de Janeiro: Língua geral, 2009.

VENTURA, Zuenir. 1968 – O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2ª edição, 1988.
Notas
[1] Não estranhe ao ler a sigla “hiv” grafada com letras minúsculas (grande é a poesia). Acompanho a posição adotada pelo escritor Herbert Daniel, contemporâneo do poeta, a respeito da palavra “aids”, quando ela era escrita como uma sigla – com maiúsculas –, e reforço o argumento do autor em seu texto “O primeiro AZT a gente nunca esquece”: “Uso a palavra em minúsculas para chamar a atenção para este significante que quer dizer muito mais do que a doença indicada com a sigla aids” (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 8-10, 30 set. 1990).

[2] NUNES MELLO, Ramon. “O Sentido da Urgência: a necessidade de se conversar sobre o hiv”. blog de Jean Wyllys, Carta Capital, em 1 de dezembro de 2015. Acesso em: nov 2017. https://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-sentido-de-urgencia-a-necessidade-de-se-conversar-sobre-o-hiv-9676.html