Ano XX 01
Dossiê
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Tempo de leitura estimado: 46 minutos

GLOSSÁRIO HELÔ

Por que um glossário? Acreditamos que um glossário permite gerar, a partir da memória de Heloisa Teixeira, um arquivo vivo: uma colagem de posições teóricas e lembranças do convívio com ela, além de um espaço de experiência e de conversa que faz justiça aos modos de trabalho que a Helô promovia. Ao invés de um esforço para reunir ou promover conhecimentos padronizados, nossa intenção é divulgar para o mundo o que ela nos dizia, para manter abertos os diálogos que a nossa autora, professora, crítica e musa inspiradora engendrou.

Este glossário foi criado com o intuito de reunir as principais ideias e palavras mobilizadas por Helô — ideias essas que vão além do sentido puramente acadêmico e transbordam para a vida, mantendo vivas as práticas que unem intelectualidade e comunidade.

Nós, como Laboratório de Teorias e Práticas Feministas, criado e idealizado por Heloisa Teixeira, montamos este conjunto de verbetes. Convidamos, para escrever, algumas pessoas que a conheceram na intimidade e/ou pesquisaram em profundidade, e outras pessoas que a conheceram pela primeira vez neste trabalho, trazendo tanto palavras utilizadas por ela em seu dia a dia quanto palavras que denotam seus gestos metodológicos. Cada verbete é, ao mesmo tempo, pessoal, subjetivo, quase íntimo, e de todos nós, partilhado, coletivo. São verbetes de cada um, mas também se jogam na arena pública, como sempre nos ensinou Helô.

Foi a troca de livros e textos de Helô, as reuniões online e presenciais ao longo de várias semanas, as lembranças e as conversas que possibilitaram a existência deste glossário: uma forma também de tentar a tarefa impossível de matar a saudade.

AEROPLANO

Os organizadores do livro Onde é que eu estou? perguntaram à Heloisa Buarque de Hollanda por que sua editora, fundada em 1998, se chamava Aeroplano. Helô explicou: “Por causa de um poema modernista do Luís Aranha. Poema lindo que fala do espanto dele, olhando um aeroplano que acabava de ser criado. Totalmente perplexo e atraído pelos novos tempos modernos. O poema com a tipografia futurista original era material de divulgação e era mesmo um pouco do que a gente queria, o espanto e a atração pelo novo” (Hollanda, 2019, p. 51).

Helô começava a manifestar “o espanto e a atração pelo novo” já no início dos anos 1970, quando escreveu artigos sobre a poesia brasileira que circulava por meio de edições mimeografadas, produzidas de forma artesanal e independente. Em 1976, visibilizou as poéticas do mimeógrafo por meio da organização da antologia 26 poetas hoje. Desde então, o interesse pelo novo não sairia mais de seus projetos de pesquisa.

Ela reproduzia, à sua maneira, os movimentos arrojados do aeroplano que os versos de Luís Aranha (1984, p. 95-96) apresentam, como “dar cambalhotas repentinas” e “loopings fantásticos”, “atravessando os ventos assombrados” pela sua “ousadia de subir / até onde só eles [os aeroplanos] atingiriam”. Em relação às atividades editoriais da Aeroplano, apresentava ainda os “saltos mortais”, correndo riscos que empreendimentos desse tipo estão sempre a correr.

Na Aeroplano, Helô publicou, entre outros, Ana Cristina Cesar – Correspondência incompleta (1999), organizado por ela; Cultura em trânsito: da depressão à abertura (2000), reunião de textos seus, de Elio Gaspari e de Zuenir Ventura; Artelatina – cultura, globalização e identidades cosmopolitas (2000), que organizou com Beatriz Resende; e a imprescindível coleção Tramas urbanas (2007), dedicada a questões da periferia discutidas por autores das quebradas. Foram cambalhotas, loopings e saltos que levantaram uma série de problemas caros ao nosso tempo. E, ao visibilizar o novo, abria rotas inovadoras de navegação, para si e para os outros.

Muito antes da criação da sua editora, o poema “O aeroplano” devia circular nas aulas que Helô realizava sobre o modernismo, na Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde se tornou professora colaboradora de Literatura Brasileira em 1964. Contudo, foi em agosto de 1979 que houve a primeira ocorrência material do aeroplano associado à sua produção editorial: ela formou uma “equipe de realização” do livro Correspondência completa, de Ana Cristina Cesar, mimeografado e grampeado, em pequeno formato (7,7×5,6 cm). A capa, em cartão amarelo, revela tipografia em cor preta, além de um aeroplano também preto, circulado em vermelho. De certa maneira, a tipografia tanto da capa quanto do miolo da plaquete de Ana Cristina Cesar dialoga com “a tipografia futurista original” do poema “O aeroplano”, de Luís Aranha, que veio a público na revista Klaxon, nº 2, de 15 de junho de 1922. O aeroplano da capa de Correspondência completa anunciava, de certa maneira, as ousadias da edição, assim como da literatura de Ana Cristina Cesar: um livro muito pequeno, com 12 páginas, que contrastava também por seu formato com a palavra “completa” da capa; informações falsas, como a estampada ao fim da ficha técnica: “Foi feito o depósito legal.”; a escrita de si, tão avessa aos princípios cabralinos que continuavam a vigorar no ambiente acadêmico das Letras.

A voz poética dos versos de Luís Aranha projeta a possibilidade de seu corpo escapar do aeroplano, imaginando, em seguida, uma reação: “Eu abriria os braços com ardor/ para o mergulho azul na tarde transparente…”. Talvez, agora, Helô, que se encontra fora do Aeroplano, esteja sibilando pelos ares da cidade, como um aviador, voando bem mais alto. 

ANTOLOGIA

An.to.lo.gia (do grego anthología). s.f 1. Reunião; seleção; coletânea; repertório; escolha: “Seu desenho, suas escolhas, são totalmente pessoais e revelam uma trajetória de pensamento e de estudos identificada apenas com a minha experiência intelectual”. 1.1. Reunião de poetas; mostra de poemas; momento literário ou poético: “Assisto e colaboro, às vezes até a contragosto, com alguns impulsos canônicos”. 1.2. Proposição autoral: “Investir no caráter autoral desta seleção”. 2. Tendências [de renovação na poesia e na crítica de hoje]; resposta à demanda [de indagações contemporâneas]: “Reunião de alguns dos resultados mais significativos de uma poesia que se anuncia já com grande força e que, assim registrada, melhor se oferece a uma reflexão crítica”. 3. Vozes; ecos; sintonia; ressonâncias: “Não me interessam todas as vozes que poderiam ser consideradas por revelarem um bom desempenho literário”. 3.1. Fam. Ocupação: “Então inventei um conceito editorial que chamei de livro ocupação, que trazia o objeto para dentro da narração através de uma escrita compartilhada”. 4. Fig. Afinidade:Algumas afinidades eletivas de seu antologista” (1b); “Sugerir alguns confrontos entres as várias saídas que [a poesia de hoje] adotou”; “Identificar pontos de atrito no quadro quase infinito de variáveis que o exercício da poesia hoje dispõe”. § 1. Didát. Edit. Canône: “Estabelecer por livre e espontânea vontade um cânone tem uma quota de ironia, mas me permiti esse abuso porque tomo aqui cânone em seu sentido original de κανόνας, vara utilizada como medida.Antôn.: valor estético; ideia de periodização; o panorama da produção poética atual: “Identificar movimentos ou tendências através de uma seleção objetiva na produção poética de uma época”; “Amostragem exemplar da poesia de um período ou de uma geração”. 

“CHEIO” CULTURAL

É possível se pensar a poesia marginal dos anos 70 em várias direções. Fico aqui com um de seus aspectos: um espaço de resistência cultural, um debate político. Em pleno vazio, os jovens — e os não tão jovens— põem em pauta os impasses gerados no quadro do Milagre e desconfiam progressivamente das linguagens institucionalizadas e legitimadas do Poder e do Saber. (Hollanda, 2000)

O que foi da cultura, da poesia, das artes visuais, do cinema e do teatro após o AI-5? Como a arte responde à censura? Alguns autores — inclusive os que publicaram suas pesquisas na revista Visão, que esteve em circulação de 1952 a 1993 — defenderam que houve um grande esvaziamento cultural no Brasil entre o final dos anos 1960 e meados dos anos 1970: a arte crítica, polêmica e controversa teria sido suplantada por uma arte industrializada e mercadológica, regada pela censura ditatorial e pela autocensura de poetas temerosos. No entanto, Helô se atenta aos circuitos alternativos, à imprensa “nanica” dos anos 70, e afirma o contrário: os anos de chumbo não foram capazes de sufocar nossos artistas e nem fazer da arte um ato menos político.

Helô argumenta trazendo um testemunho do poeta Cacaso, de meados de 70: “Estamos escrevendo o mesmo poema, um poema único, um poemão”. O poemão da geração AI-5 inventou formas diferentes de produzir e distribuir a literatura, e trouxe uma grande novidade: uma crítica social mais ligada ao cotidiano e à subjetividade, ao sentimento, fazendo avançar o debate cultural e político. A poesia dos anos 70 se mostrava como um projeto “além-texto”, em que, devido à repressão, o corpo do poema não era o suficiente e, por isso, ele se extrapolou em artimanhas de imaginação. Uma dessas artimanhas da produção independente foi a coleção”, em que várias produções autofinanciadas eram publicadas sob um mesmo selo e vendidas de mão em mão, criando um público próprio e movimentando intensamente o circuito da poesia marginal.

Surge, então, também o que Helô chamou de desbunde: uma forma de resistência cultural e existencial nos anos 70 que, ao invés de confrontar o regime militar por meio dos caminhos da militância tradicional, propunha uma revolução sensível: pelo corpo, pela liberdade, pelo prazer, pela arte. Não era alienação, mas outra maneira de dizer “não” ao sistema: um “não” através do modo de viver, um “não” ancorado na subjetividade.

A geração AI-5, ao contrário das alegações de acriticidade e passividade, transformou a poesia e o sentimento em potência contra o autoritarismo. Diante de visões derrotistas que focam no vazio e na erosão, Helô lança luz sobre os processos críticos e revitalizantes que encontraram maneiras de respirar e se articular vigorosamente em um contexto tão difícil para a produção e intervenção cultural.

CRÍTICA FEMINISTA E POESIA DE MULHERES

Quarenta e cinco anos depois de lançar 26 Poetas hoje, Heloisa Teixeira lançou As 29 poetas hoje, antologia composta, dessa vez exclusivamente, por poemas escritos por mulheres na contemporaneidade. Na apresentação, tão lúcida e astuta quanto na antologia anterior, ela se distancia da tentativa de traçar um panorama da poesia atual de mulheres e evidencia suas escolhas curatoriais com base em um critério principal: o impacto da quarta onda feminista na poesia.

Para unir os retalhos, Helô dá alguns passos para trás, até Ana Cristina Cesar, poeta que ela identifica como uma grande influência para o que chama de “jovem cânone da poesia de mulheres”. Fluidez, intimidade, cena, corpo, movimento e humor são alguns dos elementos que Heloisa Teixeira capta como essa herança, e refletem a perseguição de Ana C. — tanto na poesia quanto na crítica — pela possibilidade de uma mulher se libertar de amarras produzidas por leituras limitantes. “Seria possível mexer com ‘literatura de mulher’ (seja lá o que for isso) sem ocupar o lugar do feminismo nem cair na confusa ideologia do eterno feminino? […] Onde ancorar esse conceito? Não seria melhor deixá-lo à deriva, errante conforme nos sopra o que há de feminino na linguagem?” (Cesar apud Hollanda, 2021, p. 10), diz Ana C. no ensaio crítico “Literatura e mulher: essa palavra de luxo”. É esse fio que Helô puxa para retomar a discussão sobre o que seria uma poesia de mulher.

Ecoando Ana C., assim como as poetas, Helô coloca em prática sua crítica feminista. Trazendo na antologia poemas concomitantemente heterogêneos e em diálogo, ela recusa a rotulação de “poesia feminista” — que voltaria a reduzi-los a um estereótipo fechado — para, em seguida, propor uma leitura que leva em conta o impacto do feminismo nessas escritas.

O diferencial das novas poetas me parece ter sido a conquista de um capital inestimável: um ponto de vista próprio e irreversível e o enfrentamento sistemático do cotidiano, dos desejos e dos custos de ser mulher, já bem distante do que se conhecia como linguagem e/ ou poética de mulheres. A nova experiência com a linguagem é a consequência imediata dessa conquista. (Hollanda, 2021, p. 26)

Para mim, recém-chegada ao universo da poesia contemporânea e suas oficinas — que me salvaram a vida durante um período de isolamento e sofrimento —, essa nova antologia, voltada para a poesia escrita por mulheres jovens e vivas, foi a abertura de um universo de referências, mais um cânone.

ENCRENCAS

Certa vez, ao comentar informalmente a tradução do livro Gender trouble: Feminism and the Subversion of Identity, de Judith Butler, traduzido ao português como Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, Helô fez a provocação de que o título original seria melhor traduzido pela palavra “encrencas”, e não por “problemas”. Ela argumentava que “encrencas” conserva uma perspectiva mais lúdica — tanto uma marca da infância quanto um elemento de rebeldia, questionador e perturbador da ordem —, conforme aponta Butler no prefácio do livro.

A ideia da nova tradução pareceu tão genial que, de pronto, Encrencas se tornou o nome de um evento que nasceu a partir de um grupo de estudos independentes, idealizado por alunas do Mestrado e do Doutorado em Ciência da Literatura, da UFRJ, para discutir questões de gênero. Pensar o gênero é uma encrenca interessante e importante de nos metermos, uma vez que rejeita o determinismo biológico, abrindo novas possibilidades narrativas.

O encontro, que contou com o apoio do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) desde sua primeira edição, foi se expandindo até ser incorporado, em 2022, como um evento do calendário anual do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas. É incrível como cada coisa que fazemos carrega uma marca da Helô. Tudo o que produzimos dentro do Laboratório é parte de um legado que ela nos deixou — desde um simples comentário de uma tradução, que se tornou disparador de tantas ideias, materializando-se em um evento que está chegando à sua sexta edição.

Encrencar é desconfiar da obviedade, apostar na pulga atrás da orelha, na capacidade de fazer barulho e virar a mesa, pois encrencar é verbo de quem desafia o que parecia dado. A palavra carrega um quê de travessura, de rebeldia criativa, e é nessa trilha que seguimos: não como quem resolve, mas como quem desarruma para ver melhor. Encrencar, então, é um convite a pensar com ruído, a fabular com vontade, a gerar confusão propositiva no campo dos estudos de gênero.

EU?

Falo eu, professora, 79 anos, mulher, branca e cisgênero… Percebo que hoje, para uma feminista branca, é antes de mais nada importante promover um tipo de escuta na qual, sem abrir mão de seu próprio “lugar de fala”, sejam possíveis formas inovadoras de empatia e de troca que gerem novas perspectivas de reflexão e ação. (Hollanda, 2018)

Como encontrar um mínimo denominador comum para a obra de Heloisa Teixeira? Intelectual pública, professora de Letras e também da Comunicação, crítica de cultura, acadêmica, editora, escritora de relatórios CNPq e mil bolsas mais, cientista, antologista, articulista de opinião, roteirista e diretora audiovisual, diretora do MIS-RJ em 1980, convidada pelo então secretário de Cultura do Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro. Apenas dentro da Letras, Heloisa passou das Letras Clássicas, para a Literatura Brasileira e, num salto fictício-cronológico, para os Estudos Culturais — ajudando, inclusive, a moldá-lo enquanto transdisciplina.

Parece impraticável encontrar uma linha que sobressaia nessa trama de mais de 60 anos da carreira de Heloisa Teixeira — até pela desimportância que a coerência, enquanto um valor hierarquizante, parece ter na sua jornada intelectual. É mais do que sabido a sua deferência pelo processo, em vez do resultado; por uma metodologia do fazer junto, em vez da escrita solitária em gabinetes universitários.

“Que momento é esse que estou vivendo?” é a pergunta-chave para a inquietação intelectual de Helô, segundo Eduardo Coelho, um dos organizadores do livro Onde é que estou? Heloisa Buarque de Hollanda 8.0. “Acho que nunca fui muito interessada no específico literário. E sim na escuta que a literatura pode ter de uma dada realidade, de um contexto sociopolítico.” (Hollanda, 2019, p.23). Se as perguntas acadêmicas para Helô Teixeira, têm de ter a ver com o contexto sociopolítico para que elas importem, o campo de predileção a ser observado socio-politicamente por Helô será o da poesia — ainda que sua história profissional esteja profundamente marcada por seus inúmeros suportes:

Pergunta: Mas sempre foi por meio do texto literário?
Resposta: Sim, porque eu adoro poesia, literatura. Mas meu trabalho é sempre o mesmo em muitos outros suportes. Eu tive durante anos um programa no rádio, o Café com Letras. Trabalhei em muitas outras plataformas: cinema, TV, mostras expositivas, antologias, plataformas digitais. Eu gosto de literatura. Mas não é necessariamente o meu foco. O meu foco é cultural e político. Sou um bicho político. (Hollanda, 2019, p.23)

Heloisa Teixeira resume sua relação com o texto literário: é um meio, um dos suportes, pelo qual procura fazer o seu trabalho de análise da cultura. No entanto, ser o meio predileto não é pouca coisa. A poesia sobreviverá no decorrer da trajetória abundante e versátil de Heloisa Teixeira como essa área experimental no qual o binóculo crítico de Helô não cansará de pousar suas lentes nítidas — e com vistas para o futuro.

EXPLOSÃO

Elas chegaram e falaram, quiseram, exigiram. O tom agora é de indignação. E, para meu maior espanto, suas demandas feministas estão sendo ouvidas como nunca. (Hollanda, 2018)

Na leitura da Helô, a nova onda feminista não pede licença: ela ocupa, performa, denuncia e propõe novas narrativas. A “explosão” do título não é casual: ela se refere à irrupção de vozes e formas de luta que rompem os espaços tradicionais da militância e da teoria feminista, abrindo caminho para o que Heloisa chama de uma nova epistemologia — aquela que nasce do corpo, da vivência, da performatividade e da urgência.

Heloisa reafirma seu papel de mediadora entre o acadêmico e o popular, entre a tradição e o contemporâneo. Ao reconhecer a importância e afirmar vozes que emergem da periferia, da negritude, da transgeneridade e da juventude, ela reafirma seu compromisso com uma crítica cultural plural e viva.

Ela enxergava nas redes sociais um novo espaço de ocupação feminista: um campo de disputa simbólica onde jovens mulheres e dissidências constroem discursos, viralizam ideias e desafiam as estruturas de poder com memes, hashtags, estética e afeto. Em vez de desqualificar essas linguagens, Helô as legitimava, reconhecendo que a luta também acontece na velocidade das timelines e na potência dos stories.

Explosão Feminista é, assim, também um registro geracional. Um livro que documenta o modo como jovens feministas brasileiras se articulam por meio de redes, coletivos, batalhas de poesia, videoclipes, podcasts e campanhas digitais. A figura da militante solitária é substituída por corpos coletivos em movimento, performáticos. Muitas dessas meninas já nascem feministas — algo que, em outras épocas, seria considerado um insulto. Hoje, é bandeira, identidade, linguagem e horizonte de transformação.

FEMINISMO AGORA

Lembrei, então, de uma outra palavra corrente nessa geração digital: “compartilhar”. (Hollanda, 2018)

Na introdução do seu livro Explosão Feminista, denominado um “livro-ocupação”, Heloisa discorre um pouco sobre a visível mudança geracional que ocorreu dentro do movimento feminista brasileiro, abrindo espaço e dando voz a produções artísticas, culturais e políticas que fazem parte da quarta onda do feminismo. Essa “onda”, localizada por Helô no período inicial de 2015 — quando há o boom do movimento feminista ocupando as ruas e as redes —, é o que dá sentido ao conceito de explosão, e coincide com a infância de muitas de nós. Quando ainda pequenas, durante essa explosão feminista no Brasil, não pudemos participar desses movimentos — como aquele contra o projeto de lei que dificultava o acesso de vítimas de estupro a cuidados médicos, a Marcha das Margaridas ou a Marcha das Vadias, em 2011 —, devido à nossa idade e ao desconhecimento da grandiosidade do que estava sendo feito. Apesar disso, nossa geração esteve desde sempre conectada com as redes e, devido a isso, o que Helô denomina como uma explosão, é algo que fez parte da nossa construção pessoal desde o princípio, formando uma perspectiva distinta dessa simbologia abrupta da explosão.

Como Helô diz em Explosão feminista, a facilidade de comentar sobre um assunto e vê-lo ser altamente propagado é o que torna a internet uma ferramenta crucial para a articulação e organização de comunidades, pois possibilita denunciar as más condições em que as classes minoritárias vivem nos dias de hoje e organizar-se coletivamente de acordo com suas demandas. Acredito que a maioria de nós, que cresceu inserida no movimento feminista através do mundo digital, teve a possibilidade de um acesso mais livre do conhecimento, possibilitando uma construção política e social mais democrática e inclusiva. A leitura dessa Explosão Feminista nos possibilitou conhecer a história do começo dessa revolução do século XXI, que viria a nos atingir anos depois, e hoje vejo o quanto essas lutas foram importantes para os ganhos objetivos, mas também para a perpetuação da pauta feminista nas gerações novas, da sede contra a desigualdade e esperança num futuro melhor.

IMPRESSÃO

“Foi assim, no susto, que escrevi Impressões de viagem.” Helô escreve, em 1979, o seu livro sobre os CPCs, a vanguarda e o desbunde, isto é, sobre a produção cultural feita nos anos de chumbo. Ou seja, Helô escreve sobre produções quase simultâneas, escreve sobre aquilo que está vendo, aquilo que ainda não passou para a história, que não foi impresso em livros de crítica. Helô parece ter umas primeiras impressões sobre a produção dos anos 70 e, ao mesmo tempo, imprimir as primeiras leituras críticas da época, nos marcando um caminho. Essas primeiras impressões impressas, por outro lado, se tornaram fundamentais para a crítica cultural que veio depois, a qual tomou esses livros autodeclarados impressionistas como as leituras agudas que eram e são. Não se tratava apenas de fazer crítica no susto ou uma crítica a partir do espanto, mas de levar o susto muito a sério. Para entender que toda crítica é conjuntural, e passa por uma atualidade do olhar.

Enunciar a “impressão” como um dispositivo crítico é um gesto seríssimo e corajoso — insolente, como diz Chico Alvim no prefácio. Em lugar das perspectivas de ordem formalista que estavam na ordem do dia da crítica, identificando características indiscutíveis e determinando um julgamento final sobre o que é ou não é arte, Helô vai desistir de uma palavra final e vai analisar a sua primeira reação, o “susto” perante a produção da Tropicália, o “espanto com [a] vitalidade” da Nuvem Cigana e da poesia marginal. A cultura é fonte de sensações, de sensações críticas e de curiosidade.

Assim, com a ideia de impressão, Heloisa declara — em um tom menor — que fazer crítica é também intervir. Isso, para ela, parecia responder a uma urgência, a urgência de entender o que está acontecendo ou, como ela dirá depois, a pergunta permanentemente colocada: “onde é que eu estou”?

É verdade, por outro lado, que essa ideia revolucionária da impressão como dispositivo crítico também está na escolha dos objetos de Helô, que são sempre moventes — em viagem —, e que sempre podem ser lidos como testemunhos da sua época que não são amigos do arquivo. Sejam as vanguardas dos anos 60, a poesia marginal e seus livrinhos que se desfazem, as performances feministas. Tudo o que a Helô lê tende à desaparição, por isso ainda mais necessárias as suas impressões.

LIMONADA

Uma saca de limões, dessas que é difícil carregar sozinha. Uma ou duas facas, capazes de insistentes cortes antes de precisarem ser amoladas. A tábua é opcional. Só é preciso espremer até o sabugo, até vislumbrar alguma origem, até desafiar a casca — muitas vezes dura e pouco porosa — da fruta. Um movimento repetitivo, quase infinito, feito a várias mãos — assim cansamos menos. Um pouco de açúcar, água e umas coisinhas mais. Mistura bem, agrega tudo, deixa umas partes inteiras e divide ao máximo. Apertadas na pequena cozinha do PACC, com nossos poucos e preciosos recursos, seguíamos a receita que nos tinha sido passada, de orientadoras para orientandas, da famosa limonada da Helô.

O ano era 1994, e ia rolar o evento de abertura da sala do PACC, com vários quitutes e clima de festa. E isso implicava, obviamente, em levar umas cervejas. Pelo menos para Helô era assim, e foi assim que, chegando à entrada da Faculdade de Letras, toda animada com suas cervejas, foi barrada no baile. Não, as cervejas não podiam entrar.

Eis que, no evento comemorativo seguinte a esse, Helô é vista por outros professores carregando um galão do café da Letras até o PACC. Os professores perguntaram o que era, ao que ela respondeu: “Ah, bem, é limonada”.

Quando veio essa palavra, achamos difícil descrevê-la para quem nunca tomou uma limonada da Helô em um evento acadêmico. Porque, do pedacinho de chão da universidade onde estamos, — disso que chamamos de PACC —, essa limonada sempre fez parte. Diferentemente de outras deste glossário, não há textos a que fazer referência. É um saber passado no boca a boca, um pouco da alegria e da rebeldia de repartir o pão e de ocupar o espaço: um mesão, uma limonada e uns lanchinhos, os sorrisos que vinham junto.

MATRIARCAS

A natureza autoritária de sua liderança e a gramática erótica baseada na sujeição de parceiros de condição social inferior não correspondem à expectativa libertária que a noção de matriarcado sugere. Sem dúvida, mesmo reforçando a lógica do patriarcalismo rural brasileiro, a história das matriarcas e sua extensa repercussão no tempo e no espaço de certa forma desmontam os modelos tradicionais com que se costuma caracterizar a submissão feminina. Em que medida o arquétipo das matriarcas e o violento poder que decorre da estrutura familiar no Brasil moldam os nossos sentimentos e fantasias sobre a “mulher brasileira”? (Hollanda, 2016)

O interesse da nossa autora pelas histórias das controversas matriarcas de que fala a citação acima surgiu do encontro com a escritora Rachel de Queiroz (1910-2003). Em um certo dia, no ano de 1989, Helô Teixeira, que nessa época assinava Buarque de Hollanda, foi apresentada à escritora cearense por Afrânio Coutinho, em uma sala no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. O encontro entre as duas despertou em Heloisa o desejo de entender a razão pela qual a crítica literária brasileira tinha se esquecido da autora de O Quinze (1930) e Memorial de Maria Moura (1992). E, como sempre acontecia com as inquietações de Helô, ela correu atrás de entender e concluiu que não era desinteresse nem desvalorização o motivador do silêncio da crítica, mas o que ela chamou de “medo”.

Menos do que omissão ou rejeição, o que a crítica brasileira tem mostrado, na realidade, é ter medo de Rachel de Queiroz. Medo de enfrentar sua conflituosa relação com os movimentos feministas ou mesmo com a literatura escrita por mulheres que começa a se impor a partir do Modernismo. Medo de explicitar as possíveis causas do sucesso e do poder público inegáveis de uma mulher que, desde adolescente, transitou com espantosa autoridade e naturalidade pelos bastidores da cena literária e política do país. Medo, sobretudo, de enfrentar a trajetória particular de seu pensamento político. (Teixeira, 2024, p. 394)

Disposta a enfrentar esse medo de uma escritora pessoalmente tão complexa, que, ao mesmo tempo que integrou o Partido Comunista nos anos 1930, apoiou o golpe militar em 1964, Heloisa se dedicou à pesquisa sobre a obra de Queiroz e passou a encontrar com ela periodicamente em sua casa. Sobre a obra, diz ter se surpreendido “com a qualidade técnica e artística de seu texto” e se perguntou: “como eu, há tantos anos no magistério, ainda não havia oferecido um curso monográfico sobre Rachel de Queiroz?” (op. cit., p. 396). Dos encontros, na sala do apartamento do Leblon que mais parecia uma “sala de fazenda”, muitas conversas giravam em torno das histórias protagonizadas por personagens femininas tão ou mais contraditórias que a narradora de seus causos: as mulheres proprietárias do meio rural brasileiro, que desafiam as leituras feministas porque, ao mesmo tempo, não se enquadram no paradigma de submissão, mas, por outro lado, parecem se apropriar e reinventar a violência patriarcal do coronelato:

Semilendárias, proprietárias de terra e gado no interior do sertão, longe das pretensões fidalgas das casas-grandes da zona açucareira. Levavam uma vida rústica relativamente distante dos padrões culturais europeus que, na época, moldavam as sociedades do litoral nordestino. No sertão, exerciam grande poder de liderança, tendo controle total de seus feudos regionais. (op. cit., p. 407)

Esse modo de controle, contudo, não é mera cópia do modo masculino de comando. É essa estranheza, entre a reprodução e o desvio, que fascina Helô, conduzida pela prosa (escrita e conversada) de Rachel de Queiroz, e a distância da sua representação daquela feita por escritores clássicos da literatura brasileira, como Alencar, Aluísio Azevedo e Jorge Amado:

Dei-me conta de como nossos escritores tiveram e têm o estranho prazer em representá-las como figuras barbarizadas, opressoras e, em geral, caricatas. Nas histórias de Rachel, ao contrário, brilhavam os feitos, as audácias e o cotidiano das senhoras do sertão. Sua narrativa, traindo um certo orgulho, trazia para o presente, sobretudo, a memória das várias formas de poder feminino esquecidas e/ou destruídas ao longo da história. Percebi que estudar a mulher no Brasil e na literatura brasileira sem passar por Rachel de Queiroz é, no mínimo, imprudência.

Conhecer o poder, violento, exercido por mulheres, sem medo de aderir ao fascínio exercido pela bela prosa de Queiroz, mas também sem fechar os olhos para o que nos constitui; ouvir o canto das sereias das violentas e poderosas mulheres proprietárias do sertão: um movimento que só a nossa corajosa Helô poderia levar a cabo, em um Brasil recém-saído da ditadura, com traumas que ainda machucavam — e machucam.

MESÃO

Minhas mesas são e serão sempre hiperdimensionadas. Isso determina o comportamento agregador e criativo. (Hollanda, 2019)

Reunião do Laboratório de Teoria e Práticas Feministas no MESÃO do PACC
Reunião do Laboratório de Teoria e Práticas Feministas no MESÃO do PACC

Entrando no prédio da Faculdade de Letras da UFRJ, seguindo o corredor até o final, virando à direita e, lá na frente, à esquerda, depois de passar o DACEx, atrás de uma parede de vidro — lembrando uma obra de arte exposta para ser admirada —, encontra-se um exemplar do presente verbete: o MESÃO. Ele é enorme, branco, belo, ocupa uma boa parte da sala do PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) e não está sozinho. Entrando na sala, caminhando por toda a extensão do MESÃO, virando à esquerda, no cantinho do café e passando pela copa, encontra-se o segundo MESÃO. Igualmente enorme, branco e belo. Talvez um pouco mais tímido, já que repousa atrás de um painel. Heloisa Teixeira, segundo ela própria, sentia-se uma “arquiteta bem realizada”, ainda que essa não fosse a sua formação acadêmica. Projetava os espaços, residenciais ou de trabalho, em função de um pensamento arquitetônico. Precisava ser bonito. E precisava ter um MESÃO.

Nas casas em que morou, lá estava ele, exibindo seu protagonismo. Ao redor do MESÃO, aconteciam as conversas do dia a dia, as reuniões de trabalho, os almoços com filhos, netos e, muitas vezes, pessoas que estavam por ali e acabavam ficando. Até porque, o MESÃO, por ser hiperdimensionado, comporta muita gente, muito livro, muito material de trabalho, muita comida!

Helô tinha uma “agonia de fazer junto” porque não achava graça na “acumulação proprietária de saber, em ser especialista”. Fez dos seus MESÕES espaços de convivência, de troca, de pensar e criar coletivamente. Um espaço de generosidade intelectual, mas também de voracidade.

Encarei o MESÃO do PACC pela primeira vez em março deste ano. À primeira vista, fiquei um pouco intimidada. Era um encontro do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas. Sendo caloura, não me sentia segura ao lado daquelas pessoas que pareciam saber tanto. Em determinado momento, percebi que o MESÃO não era um só. Ele é composto por várias mesas menores, encostadas umas nas outras. Nós somos essas mesas, pensei. E o MESÃO, o que criamos juntes. Enfim, me senti pertencente. Viva o MESÃO! Viva a HELÔ!

OUVIR

Passei por um longo exercício de escuta, no sentido de reconhecer e acolher as diferenças, reconhecimento que quase nunca vem sem conflito. (Hollanda, 2018)

A plataforma fundamental do trabalho crítico de Helô é a escuta, não num sentido passivo e imóvel, mas como um posicionamento transformador que abala o modus operandi do conhecimento padronizado, uma vez que não se trata de uma escuta que permanece como reflexão pessoal, sem retirar o ouvinte do lugar de conhecimento e domínio da palavra, mas que garante que ela ecoe de forma a reconfigurar as sensibilidades de seu entorno. Desde sua primeira publicação, a antologia 26 poetas hoje, esse gesto já pode ser percebido, visto que a operação em relação às produções da chamada “poesia marginal” não foi a de “falar sobre”, mas a de montar um dispositivo de escuta a partir da antologização dessas produções.

Em relação às produções de autores das periferias, a escuta assumiu uma forma diferente, fato que evidencia a carga política de que não se escuta sempre da mesma forma. Assim como com os autores de 70, Helô teve a perspicácia de perceber a força dessas produções como um movimento e, mais uma vez, ativou um novo espaço de diálogo que tomou forma com a coleção Tramas urbanas, publicada pela Aeroplano, que dirigiu entre 2007 e 2016. Essa coleção foi baseada na diretriz de que os próprios artistas periféricos deveriam escrever sobre suas produções e contar suas histórias de vida. Ela não escreveu uma palavra em nenhum dos títulos do catálogo. É que a perspectiva conceitual e analítica de Helô em relação aos escritores marginalizados não era a da tutela da palavra/conceito, mas a do diálogo baseado na escuta em um processo de ida e volta, de ginga, que tomava forma no design, no formato, na tipografia, nos logotipos, no título da coleção e no catálogo.

Outro espaço fundamental para a ação crítica baseada na escuta foi a criação, em 2009, da Universidade das Quebradas, concebida, como diz o próprio site, como “um laboratório de tecnologias sociais, baseado na troca entre conhecimentos e práticas de criação e produção de conhecimento, articulando experiências culturais e intelectuais produzidas dentro e fora da academia”. A UQ, tendo Helô como pilar, funciona como um espaço de intervenção onde acadêmicos renomados se encontram com atores-chave de culturas periféricas, com o objetivo de empoderar ambas as partes em uma roda onde podemos acreditar que um outro mundo é possível.

Helô voltou sua atenção também para os feminismos, com um gesto igualmente radical, na forma de um livro intitulado Explosão feminista. Em 2018, em meio à truculenta escalada da direita no Brasil e às agitações das lutas feministas nas ruas, Heloisa se pergunta: “Estamos realmente ouvindo?” (Hollanda, 2018, p. 241).

E o que este livro propõe que escutemos? Ele nos leva a interpretar a quarta onda feminista como uma explosão, ou seja, como a intervenção conjunta e contundente de diferentes correntes de pensamento, corpos, vozes e denúncias de mulheres que estão convencidas de que o patriarcado vai cair e, junto com ele, o racismo e a intolerância. Helô reuniu, neste livro, inúmeras vozes das mulheres feministas contemporâneas, gerando um diálogo inesperado entre elas e também trazendo de volta as vozes das mulheres “veteranas”, como ela chama as “mulheres militantes e acadêmicas de um momento vital do feminismo no Brasil, que foi o período de 1975 até a virada do século” (Hollanda, 2018, p. 444).

Ouvir, para Helô, tem a ver com a criação de uma câmara de eco dentro e fora dos espaços institucionais — o que se torna visível em nossas bibliotecas, que ganham outras vozes; nas salas de aula das universidades, que ganham outros corpos; e, ainda mais recentemente, na Academia Brasileira de Letras, que ganha outros rituais.

PATRULHAS IDEOLÓGICAS

O debate sobre a “liberdade criativa”, que tanto mobiliza os debates intelectuais no tempo presente, tem a sua própria história no contexto das dinâmicas culturais e políticas no Brasil moderno, sobretudo na abertura política no final dos anos 1970.

Naquele momento, Cacá Diegues foi entrevistado pelo Estado de São Paulo para falar sobre as recepções de seu filme Xica da Silva (1976), que sofreu críticas de intelectuais negras, como Beatriz Nascimento, por conta de uma romantização na relação estabelecida entre uma mulher negra e um contratador branco. A entrevista original tinha como título “Cacá Diegues: por um cinema popular sem ideologia”, publicada em 31 de agosto de 1978.

Helô, com sua antena ligadíssima, percebeu que a entrevista de Diegues ao Estadão, comprado pelo Jornal do Brasil, ganhou um novo título: “Uma denúncia das patrulhas ideológicas” em 3 de setembro de 1978. A partir disso, diversos veículos surfaram na onda da polêmica, supostamente preocupadas com o controle, por parte de setores da esquerda, em relação ao projeto de um cinema nacional moderno ou popular: O Globo, Folha de São Paulo, Tribuna da Bahia, Tribuna da Imprensa, Jornal de Brasília, Veja, IstoÉ, Pasquim

O livro organizado por Heloisa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto Messeder Pereira consolida o termo como um conceito próprio, tendo em vista os tensionamentos vigentes na nossa cena cultural, política e ideológica. Sou patrulheiro, patrulhado? O lado comprado pela imprensa é um golpe de publicidade? Um temor de controle? As esquerdas estão cindidas? O que isso implica?

 Helô “olha pelas frestas”, como ela mesma diz, o caso das patrulhas, ao propor entrevistas com intelectuais e artistas, para tentar entender isso que “estava no ar”: uma discussão que vinha de outros tempos, momentos — e continua mobilizando diversas instâncias da nossa cena intelectual de forma bastante acalorada, sobretudo a partir da famigerada “liberdade de expressão”.

POESIA

Por muito tempo, eu citava errado um trecho de Benjamin. Dizia “a questão não é discutir se a fotografia é ou não arte, mas sim que o fato de ela o ser nos obriga a repensar o próprio conceito de arte”. Depois de muito repetir esse trecho, voltei ao texto para pegar a forma exata dele e, bem, não é exatamente isso que Benjamin diz na Pequena história da fotografia. É, porém, o que eu gostaria de ler: uma metodologia de inversão dos pressupostos para a atividade crítica. Simples na aparência, mas bastante radical nos seus desdobramentos: em vez de pressupormos saber o que é a arte e, a partir daí, decidir se algo faz parte desse sistema ou não, decidimos que o objeto em questão é arte e, a partir daí, temos que lidar com todo um novo conceito do que é “ser arte”.

Cito o erro de leitura porque quero reincidir nele. E mais, dobrar a aposta. Não apenas atribuir sua fonte a Benjamin (que não escreveu exatamente isso, mas poderia), mas também propor que a sua prática é a de Helô, pois creio que a forma como ela lidava com o conceito de poesia era esse. Não tanto discutir o que é ou não poesia, mas dar um passo além: decidir que algo o é, e então repensar todo o conceito de poesia.

Em 1975, quando as vanguardas — não apenas a concretista, mas também os já quase esquecidos movimentos Práxis e Poema-Processo — investiam em uma retórica acadêmica bastante autosegura para defender sua posição de ponta de lança na poesia nacional, Helô investia em uma poesia jovem que se misturava com a vida, com o “flash cotidiano” e corriqueiro dos 26 poetas hoje. Enquanto a crítica especializada ainda debatia, em 1980, se aquilo era ou não poesia, Helô já levantava, em Impressões de viagem, o quanto a chancela institucional representada pela sua antologia tinha acabado por diminuir o caráter contestatório daquelas intervenções. A poesia não era só o texto, mas todo o circuito: suas formas de produção, circulação e recepção.

Já nos anos 2000 — quando a academia, finalmente, havia metabolizado a geração dos 70 —, o adjetivo “marginal” voltava à cena, agora para designar um novo circuito, atravessado por figuras como Ferréz, Alessandro Buzo, pelos saraus de periferia e pelo movimento hip-hop. É esse cenário que Helô situa como a nova frente de enfrentamento político a partir da literatura, mergulhando nessa produção — em especial, na nascente cena da spoken word. Novamente, enquanto parte da crítica debatia a natureza da poesia falada — se literária ou performática —, Helô já situava o slam como “a grande novidade” da nova antologia As 29 poetas hoje, uma produção que colocava a poesia novamente no centro da discussão literária brasileira.

Em 2021, em uma entrevista dada à CBN, precisamente por ocasião do lançamento de As 29 poetas hoje, Helô ofereceu duas definições — ou melhor, duas imagens — para a poesia. Primeiro, dizendo que a poesia era “um radar de sua época”, trecho que virou o título da entrevista no site da emissora de rádio; e, em seguida, dizendo que usava a poesia como um I Ching, “pra ver como é que estão as coisas”. Queria ler nessas duas imagens não uma oposição, mas uma gradação: uma passagem de um esboço de um conceito — que seria da ordem do que a poesia é — para uma imagem da metodologia de uma leitura, isto é, um modo de usar.

Primeiramente, o radar. O que temos aqui é um sistema de distanciometria por rádio, uma forma de medir a distância de um objeto a partir da emissão e captação de uma onda refletida. Que a poesia seja um radar de sua época significa que nos situamos em uma noção de tempo espacializado, pensado não tanto como uma instantaneidade planificada, mas, sim, como um objeto dotado de volume, de distâncias internas e texturas. A poesia seria, nesse sentido, uma espécie de mapa dinâmico do tempo, uma forma de explorar as distâncias de uma época para consigo mesma.

Porém, acho que a coisa fica mais interessante na segunda imagem: no I Ching, quando o que está em jogo não é mais o mapeamento, mas a adivinhação. Em primeiro lugar, porque não é tanto uma questão de “o que” as coisas são. Se podemos dizer com relativa segurança que o I Ching foi usado por muito tempo (e esse é o sentido dado por Helô, na entrevista) como um instrumento de divinação, é porque a gente não sabe exatamente dizer o que ele é. Não lidamos mais com um instrumento técnico que se pauta pelas grandezas escalares (o radar), mas sim por uma linguagem oracular, um campo aberto aos enigmas, mal-entendidos (que incluiriam, talvez, as citações lidas erradas), interpretações e apostas. Que a poesia seja usada como um I Ching, “pra ver como é que estão as coisas”, significa, portanto, que importa muito pouco o que ela seja (ou quais textos são ou não são poemas), mas, sim, o que ela demanda: seus usos, suas leituras, os enigmas de sua época.

POMBAGIRA

“O que eu queria era que a universidade OUVISSE alguma coisa que ela nunca tinha OUVIDO, que era a periferia empoderada. A voz dos intelectuais da periferia, que são muitos. O que tem de mestre, doutorado na periferia, é inacreditável e eles [a universidade] não sabem. Porque as pessoas não estão dirigindo a escola, a faculdade de letras, que é o meu caso? Eu acho que se um negro dirigir, essa universidade muda. Se você pegar o feminismo decolonial, por exemplo, você vai ver que a nossa epistemologia é branca e masculina e não tem outra. A gente tem que romper isso, porque a gente vai trazer objetos novos, metodologias novas, teorias novas. Nova experiência social que está sendo posta pra pensar. Essa categoria que a gente tem que levantar. Eu acho que o feminismo decolonial brasileiro tem que ir pra periferia, porque ali tem uma cultura, ali tem ANCESTRALIDADE TERRITORIAL […] A vida toda eu me preparei para isso. Pra fazer isso e fiz. Por isso que eu digo: Está de bom tamanho. Acho que quando eu consolidei as Quebradas, eu realizei meu projeto. (Helô)

Imagine a universidade como um grande e imponente castelo no meio do nada, com suas leis e verdades. O tempo constrói estradas, e ele passa a se localizar numa encruzilhada de encontros e despachos como enfrentamentos — pé na porta que pessoas de fora não podem colocar. Abrir a porta facilita a invasão, e foi isso que Helô fez, como uma iluminada Pombagira: o ser que faz a ligação entre mundos, mentes e afetos.

Com a proposta de estrutura não acadêmica — algumas vezes não compreendida até por alguns alunos, contaminados pela ideia de que decolonizar é tomar posse de um espaço até então negado, o que mudaria somente as figuras dos ocupantes —, consolidar a Universidade das Quebradas foi um trabalho de paciência e inteligência afetiva, onde Helô produziu toda uma costura no problemático tecido da nossa sociedade partida, criando encruzilhadas improváveis onde saberes se encontraram e dialogaram, na valoração da intelectualidade orgânica, percebida por ela como uma parte importante que falta na universidade. Convidada a concorrer à eleição da Academia Brasileira de Letras, disse: “Só vou se as Quebradas vierem comigo”. E levou, lindamente. Na sua posse, houve uma multidão de gente preta, LGBT, com trilha sonora de samba, e mulheres suburbanas. Estava aberta mais uma porta. Pombagira não derruba portas, abre caminhos.

Quando a chamei de pombagira pela primeira vez, ela adorou e perguntou o motivo. Respondi: Pombagira uma entidade mulher na religiosidade afro-indígena brasileira que funciona como mensageira, possibilitando a união do terreno com o “divino”. Diferentemente do Exu, Orixá do Candomblé, Pombagiras foram mulheres que viveram e tiveram suas histórias pessoais atravessadas pela incompreensão, preconceito e machismo. À frente do seu tempo, donas dos seus corpos, foram punidas e não deixaram de cumprir sua missão. Elas gargalham enquanto mudam o mundo, que não percebe o quanto se modifica.

QUEBRADAS

A diferença da Universidade das Quebradas é a escuta, é trabalhar o que já existe — saberes, talentos e sonhos locais. É estabelecer a fala, a interlocução e deixar eles crescerem, ganharem voz, virem para a frente da cena. (Helô)

 Substantivo próprio que quer dizer travessia, escuta, criação coletiva, invenção de si. Conheci a Universidade das Quebradas pelo encantamento que Heloisa Teixeira nos provocava ao falar no assunto. Helô é dessas intelectuais orgânicas que vivem com pressa, margeando o tempo, enxergando no escuro aquilo que ainda não conseguimos ver. Foi ela quem me ensinou que quebradeiro não precisa ser salvo, precisa ser ouvido.

Em 2009, ao lado de Numa Ciro, fundou esse projeto de extensão da Faculdade de Letras da UFRJ — Universidade Federal do Rio de Janeiro — que é também um gesto de ruptura com as formas tradicionais de ensinar e aprender. A UQ, como é gentilmente chamada por seus membros, é um laboratório de saberes marginais: um espaço de encontro entre a universidade e a comunidade, entre o saber acadêmico e as potências das periferias.

Como dizia Helô: “A diferença da UQ é a escuta”. Ali, ninguém é inventado — o que fazemos é promover a liberação de sujeitos que já são artistas, pensadores, empreendedores, mas que ainda não tinham os meios de dizer: eu sou.

Desde 2022, faço parte da equipe da UQ. A cada edição, corpos que narram, palavras que se levantam, territórios que se inscrevem na literatura e na arte marcam presença. Já caminhamos com o pensamento afrodiaspórico (Arte Preta, 2022), com os saberes do sertão (Invenção do Nordeste, 2023), e com a força ancestral da palavra escrita (Machado Quebradeiro, 2024). Esta última edição, feita em parceria com a Academia Brasileira de Letras e a Flup, levou escritores periféricos ao centro simbólico da literatura brasileira.

Como afirmou Helô: “Fazer um curso na ABL tem um valor simbólico da maior importância. Ao mesmo tempo que legitima o trabalho destes aspirantes ao ofício da escrita, mostra o interesse da Academia pela força da literatura emergente”.

Na Universidade das Quebradas, aprendi que a literatura não é um objeto fixo — é corpo em movimento, é memória em disputa, é futuro em voz alta. E, talvez, o maior legado de Helô, em relação às Quebradas, seja fazer da escuta um princípio ético e da palavra um território de liberdade.

Turma Ariano Suassuna na ABL, maio de 2025
Turma Ariano Suassuna na ABL, maio de 2025

REBELDES E MARGINAIS

Um dos traços reconhecidos por Helô na chamada “poesia marginal” seria a valorização do momento, do presente, ou do “aqui e agora”, conforme define. Podemos dizer que esse é também um dos procedimentos e gestos críticos centrais do que propõe a teórica: a atenção ao “aqui e agora”. Em entrevista recente ao podcast da revista literária 451 MHz, define o contato com os seus próprios contextos e interesses, ao longo da vida, como balizador da prática, curadoria e escolhas teóricas. Ali, afirma que sempre se interessou pelo “não era considerado literário”, pelo que ficava às margens da sociedade — o feminismo, a periferia ou, nas suas palavras, “saiu catando o lixo” do que parecia fora dos espaços do cânone, da valorização ou da atenção da crítica na época.

Nessa postura atenta ao “marginal” e ao seu contexto, um dos seus temas principais de pesquisa é exatamente os impasses da cultura brasileira entre os anos 60 e 70. Em um dos seus últimos livros, releitura de outras produções pelas quais ficou conhecida, divide em “rebeldes” e “marginais” as leituras sobre os processos culturais conflituosos de uma sociedade sob ditadura que precisava repensar a sua arte a partir das experiências do autoritarismo e da violência.

Se, a princípio, os rebeldes apostaram no poder revolucionário da arte e da cultura, foi preciso encarar, aos poucos, a necessidade de um recuo diante das ilusões desfeitas. A mudança dos ventos, a falácia de um “milagre brasileiro”, a frustração de projetos revolucionários cede lugar à linguagem da chamada “poesia marginal” — à qual Helô dedicou-se intensamente — e que, assim como ela, questionava as “formas sérias do conhecimento” e as relações estabelecidas até então para a produção cultural. Era preciso criar procedimentos literários inovadores, seja na forma de produção e distribuição, seja na linguagem literária.

A coletânea 26 poetas hoje volta-se exatamente para essa produção de interesse da autora no momento e, mais do que isso, estabelece uma base importante para o tipo de linguagem que mobiliza a teórica na nova produção — As 29 poetas hoje. Ana C. é aquela escolhida na passagem do tempo como legado que interessa, no presente, de um “aqui e agora” que agora reconhece a posição marginal de uma literatura de mulheres majoritariamente excluída do campo literário canônico.

A consolidada e recente “literatura marginal” tampouco ficou de fora dos seus interesses, em Cultura como recurso, por exemplo, sua missão política “traduz um empenho radical dos autores em termos do compromisso com a transformação social”. Como antes, interessa-se pela possibilidade de potencializar o fazer literário e a prática de leitura para além dos muros impostos, observando na posição “marginal” a “real descoberta dos infinitos recursos da palavra enquanto poder e mesmo enquanto arma”.

Se os contatos são muitos, é preciso também diferenciar os sentidos do “marginal” na obra de Helô, que também mudam conforme as conjunturas históricas: na ditadura, a busca por linguagem e um espaço de produção sob opressão; depois, a exclusão das mulheres no cânone; e, enfim, a marginalidade econômica da literatura periférica, que toma de assalto a palavra a partir dessa posição.

* Laboratório de Teorias e Práticas Feministas: Ana Catalina Di Rocco (“Cheio Cultural”), Carol Carvalho (“Antologia”), Drica Madeira (“Quebradas”), Dri Azevedo (“Patrulhas Ideológicas”), Eduarda Rocha (“Encrencas”), Eduardo Coelho (“Aeroplano”), Fernanda Araujo (“Feminismo Agora”), Filipe Manzoni (“Poesia”), Helena A. R. S. (“Mesão”), Isabela Cordeiro (“Cheio Cultural”), Jazmín Bergel (“Explosão”), Lu Colen (“Feminismo Agora”), Luciana di Leone (“Impressão”), Lucía Tennina (“Ouvir”), Lua Gill (“Rebeldes e Marginais”), Mabel Boechat (“Crítica Feminista”; “Limonada”), Manuella Lopes (“Limonada”), Marcela Filizola (“Encrencas”), Mariana Patrício (“Matriarcas”), Mayara Borges (“Explosão”), Orquídea Garcia (“Rebeldes E Marginais”), Rayi Kena (“Eu?”), Rozzi Brasil (“Pombagira”), Suane Mesquita (“Antologia”).
Referências bibliográficas
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KLAXON: mensário de arte moderna – edição fac-similar. Organização de Pedro Puntoni e Samuel Titan Jr.; ensaio de Gênese de Andrade. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2014.

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HOLLANDA, Heloisa Buarque (org.). Esses poetas: uma antologia dos anos 90. 2. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.

HOLLANDA, Heloisa Buarque (org.). As 29 poetas hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

HOLLANDA, Heloisa Buarque (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.

HOLLANDA, Heloisa Buarque (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. Explosão feminista. São Paulo: Companhia das letras, 2018.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. Entrevista: “Heloisa Buarque de Hollanda: a poesia é o radar de sua época”. Disponível em: https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/332877/heloisa-buarque-de-hollanda-poesia-e-o-radar-de-su.htm.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de; BOTELHO, André; COELHO, André; STROZENBERG, Ilana; COSTA, Cristiane (orgs). Onde é que estou? Heloisa Buarque de Hollanda 8.0. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

TEIXEIRA, Heloisa. O ethos Raquel e Dona Fideralina de Lavras. In: LABORATÓRIO DE TEORIAS E PRÁTICAS FEMINISTAS (org.). Por uma história feminista da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2024.