Receber Heloisa Buarque de Hollanda (ou Teixeira) entre nós é motivo de festa para esta Casa. De minha parte, e me desculpando pelo tom pessoal, devo dizer que saudá-la com carinho é fácil, tamanha a admiração que tenho por ela e o afeto de que nossa amizade fraterna, ainda que bissexta, se alimenta há décadas. Difícil é cumprir o trato que fizemos, de mantermos bem curtos os nossos discursos nesta solenidade – sobretudo o meu. A dificuldade reside no fato de que a nova acadêmica é multifacetada, não cabe em definições sucintas nem limites claros. Tem sido classificada como escritora, professora, crítica, ensaísta, intelectual pública, animadora cultural mas escapa a todos esses rótulos redutores e estoura as fronteiras das categorias conhecidas. Tem luz própria, ainda que não seja exatamente uma estrela midiática. Arrisco-me a dizer que é uma constelação. Constelação de muitos nomes, como há poucos dias constatamos em entrevista pela imprensa, em que a nova acadêmica revelava que agora passa a se assinar Heloisa Teixeira, destacando o sobrenome materno. Decisão consagrada com um filme documentário sobre ela, O nascimento de H. Teixeira, igualmente anunciado na ocasião. Para os amigos, entre os quais me incluo, sempre Helô. E é assim que me refiro a ela. Na vida e nesta saudação.
Quando começamos a conviver, ainda na década de 1960, logo me impressionou sua capacidade de equilibrar qualidades complementares – por vezes até julgadas opostas pelo senso comum. Como, por exemplo, a clareza racional e a intensidade afetiva. Ou a busca da solidez teórica e o simultâneo respeito ao improviso e à intuição. Aspectos raros de serem encontrados na mesma pessoa de forma balanceada, em configuração que logo aprendi a admirar. E até hoje admiro, cada vez mais, nessa Heloisa que é uma mestra em cruzar fronteiras. Sempre a nos surpreender com grandes guinadas investigativas e criadoras ou suas pequenas rebeldias simbólicas. Desde que a conheci.
A antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil tinha recentemente se desmembrado, tendo então seus 14 ou 15 cursos distribuídos em Institutos e Faculdades autônomas – entre eles a Escola de Comunicação e a de Letras. E lá estávamos nós duas lado a lado, jovenzinhas, iniciando nossas vidas profissionais em ambas, trabalhando com seus diretores, respectivamente José Carlos Lisboa e o acadêmico Afrânio Coutinho, catedrático de Literatura Brasileira numa equipe que contava ainda com Samira Mesquita, Marlene Castro Correia, entre outros. Nesse momento de abandono do enfoque mais tradicional da estilística como ferramenta para o exame dos textos literários, nós todos vivendo em meio à efervescência de uma diversidade de correntes epistemológicas, Helô começou a organizar encontros semanais em sua casa com Clara Alvim e comigo, para um programa de leituras teóricas e discussões. Líamos e discutíamos textos variados, dos formalistas russos a Goldmann, Lukács ou Auerbach, passando por estruturalistas, sociólogos e antropólogos, eventualmente buscando as ideias de Antonio Candido, ou quem mais nos acenasse pelo caminho. A cada semana, nos dávamos uma pauta de textos e por vezes trazíamos novas descobertas ou desafios que mais nos instigassem, como os que mais tarde Heloisa chamaria de o BBB teórico inicial: Walter Benjamin, Roland Barthes, Mikhail Bakhtin.
Corria o ano de 1968 e éramos ativíssimas politicamente. Mas nem por isso deixávamos de nos reunir quase toda semana para discutir ferramentas de análise de textos literários, em meio a eventuais intromissões de nossas crianças pequenas, na eterna prática feminina de perseverança nas conquistas profissionais sem abandonar a inserção na concretude da realidade cotidiana.
Éramos multifacetadas e sabíamos que essa era nossa única maneira de ser. Cheias de perguntas. Ação e reflexão indissolúveis, política e vida absolutamente fundidas. Algo natural para quem vinha de experiências com movimento estudantil, Centro Popular de Cultura da UNE, numa turma preciosa de amigos cineastas, músicos, artistas plásticos, jovens que queriam fazer teatro – circulando entre o Museu de Arte Moderna do Rio, cineclubes que proliferavam, e incontáveis palcos (de arena ou não) a se multiplicar meio no improviso.
Os anos imediatamente após o Ato Institucional Número 5 marcaram nossa geração como tempos de repressão, censura, prisões, exílios, recolhimentos. Mas nessa quadra Helô soube onde garimpar e descobrir plenitudes no aparente vazio. Teve um lampejo e voltou sua atenção de pesquisadora para o que chamou de “as microtendências e seu cruzamento com a política no campo da cultura”. Com esse movimento, consolidou então sua vocação absolutamente notável, talvez sua característica definidora por excelência: a de antena captadora daquilo que estava brotando e ninguém via. Sua sensibilidade para cruzar fronteiras com naturalidade. De olho nas frestas e no que se esgueirava pelas brechas, seu faro fino de pesquisadora imersa no real discerniu com clareza a riqueza das variadas manifestações que começavam a pipocar fora das correntes tradicionais e reconhecidas de criação cultural. E nelas soube destacar as mais férteis e significativas participações incipientes na cultura rebelde da década.
Mais atenta ao processo que a consagração de resultados, Heloisa percebeu de saída a força e o impacto dos primeiros folhetos mimeografados, trazendo aquilo que em seguida se chamaria de poesia marginal. Um fenômeno despretensioso, despreocupado com a permanência ou o reconhecimento crítico, mas que chamou sua atenção, e a cuja irreverência radical Heloisa ainda no calor da hora dedicou uma antologia — destinada, em nossos dias, a se tornar ironicamente canônica, o livro 26 poetas hoje. Manifestação criadora à qual, ao final dessa década, ela deu destaque, em balanço em que a situou ao lado das letras das canções da Música Popular Brasileira e também da literatura infantil que então começava a ser notada, quando organizou em 1980 para a revista Tempo Brasileiro um balanço amplo das conquistas e realizações dos dez anos que então se encerravam.
Em paralelo, Heloisa fazia muitas outras coisas nessa década de 1970 – como sempre. Continuava dando aulas na Faculdade de Letras e na Escola de Comunicação. Terminou a tese de mestrado sobre a leitura de Macunaíma de Mário de Andrade feita pelo filme de Joaquim Pedro. Fez cenografia para alguns filmes. Dirigiu dois documentários. Produziu um programa na Rádio MEC. E terminou a década concluindo seu doutorado, que resultaria no livro Impressões de viagem. Por si só, essa era uma proposta absolutamente inovadora, no tema e no enfoque: um exame minucioso em que o examinador se coloca de forma presente, argumentando e interpretando na primeira pessoa, ao mesmo tempo desafiando os rígidos cânones que ditam a forma e a linguagem dos trabalhos acadêmicos universitários, e assumindo a radicalidade do ensaísta que não se esconde. Quase foi reprovada por mais esse exemplo do que chamo de pequena rebeldia simbólica, mas abriu um caminho precioso – ainda que de raros seguidores.
Helô continuou organizando variados grupos de estudos, claro – é alguém que gosta de trabalhar em equipe e se alimenta do diálogo, do desafio e da escuta. Seguiu participando de equipes de cinema. Fez inquietas reformas em algumas das casas para as quais se mudou – é admirável esse seu lado meio arquiteta, de quem gosta de obra, quebra paredes, abre espaços perfeitos e acolhedores e se movimenta muito à vontade em curadoria de exposições, sobre os mais variados temas. Entre elas, mostras que abrangeram desde a construção de Brasília à estética da periferia, de Chico Mendes ao Teatro Oficina, das mulheres artistas no Brasil ao futuro das águas. Sem parar de seguir publicando livros – tanto os que escreveu como os que planejou, organizou e editou. E sempre disse a diferentes reitores que seu desejo era ser prefeita do campus da UFRJ na Praia Vermelha. Mas nunca foi levada a sério em seu sonho de ali criar espaços de convivência cheios de vida e oportunidades de troca.
Nesses anos de 1980 e início de 1990, Helô assumiu a direção da Editora da UFRJ — além de dirigir o Museu da Imagem e do Som no Rio. Entre otras cositas más, como trabalhar oito anos com o acadêmico Darcy Ribeiro, fazer pós-doutorado em Sociologia da Cultura na Universidade de Columbia, e dar aulas como professora visitante nas de Stanford, de Berkeley e Brown. Até que, perto da virada do milênio, acabou por criar e dirigir com três sócios a Aeroplano Editora e Consultoria. (Ufa!)
Mas ainda quero voltar a uma obra singular na bibliografia de Heloisa, ainda que não exatamente de sua autoria direta. Trata-se de um registro fundamental e inescapável para qualquer estudo que se debruce atento sobre a cultura brasileira. Sob a forma de uma simples coletânea de entrevistas, na verdade é um monumento a sua sensibilidade de descobridora de temas e agitadora cultural, um símbolo de seu olhar perspicaz e inquieto, de sua desconfiança irreverente. Refiro-me a Patrulhas ideológicas: arte e engajamento em debate, livro publicado em parceria com Carlos Alberto [Messeder] Pereira. O que Heloisa aí detectou, iluminou e deixou para o futuro foi um amplo fórum de debates sobre o chamado “caso das patrulhas”. Um fenômeno que deixou marcas profundas e cuja permanência continua assombrosa, como presença inibidora entre nós décadas depois, em outro milênio, nestes tempos de radicalismos, fundamentalismos, sensibilidades exacerbadas, lacrações e cancelamentos. Uma força potente e duradoura que Helô, mestra de estudos culturais, atenta às marés, correntezas e diferentes ondas, percebendo no oceano da cultura tudo aquilo que se mexe, não deixou passar mas registrou logo no nascedouro, no calor da hora, em múltiplas e polêmicas vozes.
A inteligência sensível de Heloisa é uma grande antena, ou um sensível sismógrafo, capaz de captar as ínfimas vibrações e os quase inaudíveis ruídos daquilo que começa a se mover e por vezes ainda nem mesmo nasceu. Nessa prática insistente e sempre aperfeiçoada, a ação de Heloisa sacode o cânone e o alarga. Obriga a um olhar sobre aquilo que até então não era considerado. Incorpora mulheres com seu devido destaque e abarca a ação quase invisível de criadores da periferia. Mas não se deixa limitar por palavras de ordem ou conceitos ditados pelos modismos da ocasião. Desconfia de toda e qualquer embromação retórica, por mais que venha chancelada pelo jargão aplaudido e purpurinado. Incomoda as certezas vindas de qualquer lado, sacode posturas automáticas e superficiais, obriga a pensar. É dessa maneira questionadora e fecunda que, como assinalado pela crítica, “interpela o pensamento feminista com uma força teórica inovadora no campo acadêmico e dotada de forte potencial crítico e político no conjunto da sociedade”.[1]
Nesse processo, outra característica marcante de Heloisa vai ser essencial: gosta de trabalhar em instituições e as valoriza como poucos. Com isso, faz com que elas tenham de incorporar aquilo que não chamava a sua atenção – e esse talvez seja o traço mais revolucionário de sua ação, forçando o establishment a tomar conhecimento do que não queria ver, obrigando-o a engolir o que preferia ignorar. Nesse processo, sua coragem intelectual dribla com ousadia os modismos passageiros e, ao mesmo tempo, se obriga a exigir profundidade e rigor naquilo que está analisando com sua equipe. Sempre deu um jeito de mergulhar fundo em suas propostas aproveitando o arcabouço institucional da universidade – o que, se levarmos em conta a força paralisante dos sistemas burocráticos, é um feito absolutamente espantoso. De uma fecundidade ímpar. E essa talvez seja a marca que a torna uma intelectual única, sem qualquer paralelo no campo do nosso pensamento.
Nessa moldura, nenhum dos projetos e realizações será tão emblemático quanto o da Universidade das Quebradas. Trata-se de uma experiência de compartilhamento de problemas e dúvidas, sob pontos de vista múltiplos – no dizer do professor André Botelho. Uma iniciativa original de aproximação entre os saberes da universidade e as culturas urbanas da periferia, enfatizando as trocas mútuas e a interação. Ou, no dizer da própria Helô, um laboratório de Tecnologias Sociais cuja missão seria articular professores, pesquisadores e alunos da universidade com intelectuais, artistas, ativistas e produtores culturais das regiões periféricas e favelas do Rio de Janeiro, que já tivessem um trabalho relativamente consolidado, com o objetivo de experimentar formas de produção de conhecimento compartilhada.
Em suas entrevistas logo após ser eleita para a cadeira número 30, antes ocupada pela saudosa acadêmica Nélida Piñon, algumas declarações feitas à mídia revelam que o olhar com que Heloisa mira a nossa Casa não se confunde com o da mera satisfação com os aplausos recebidos e a vaidade pela consagração pública. É boa a glória que eleva, honra e consola, sim, como lembrava nosso fundador e primeiro presidente, mas isso não autoriza a esquecer o poderoso efeito constatado ao se entrar nesta casa de olhos bem abertos e atentos: essa circunstância cria novas condições para se arregaçar as mangas e ir à luta. Dá respaldo institucional a quem quer fazer algo. Em uma dessas entrevistas, Heloisa diz que, com sua eleição, desconfia estar assumindo um emprego novo para se somar aos seus inúmeros compromissos. Em outra, faz questão de afirmar que vai trabalhar muito e se compromete, de público, a fazer tudo que puder.
Não são palavras vazias. Seja como Teixeira ou Buarque de Hollanda, Heloisa se sente à vontade em instituições. Sabe muito bem do que está falando. Conhece o que a Academia Brasileira de Letras tem feito e ainda pode fazer em termos de abertura cultural e participação social. Sonha com novas realizações e poderá propô-las de forma concreta a partir da cadeira que, desde hoje, passa a ocupar oficialmente e de direito, nesta instituição cultural mais que centenária e de tão forte presença no imaginário nacional. Há mais de dez anos Heloisa nos vê na FLUP, por exemplo, e sabe que nós, acadêmicos, somos parceiros de primeira hora nessa Festa Literária das Periferias – de cuja criação ela participou (ao lado de Luiz Eduardo Soares, Julio Ludemir e do saudoso Ecio Salles), cujo desenvolvimento incentivou, e em cujas atividades temos estado lado a lado.
Conviver com Helô é sempre estimulante. Não dá para imaginar o que suas ligadíssimas antenas irão descobrir, ou aquilo que seu entusiasmo vai propor fazer, a partir deste momento em que adentra a maior e mais simbólica instituição cultural da nação. Ainda mais com a responsabilidade de suceder a outra força da natureza, a acadêmica Nélida Pinon, primeira mulher a nos presidir, incansável defensora de nossa língua e nossa cultura, guardiã de nossa memória, e cujo zelo na afirmação da importância de nossa literatura nos deixa um modelo inesquecível e desafiador. É assim, portanto, que esta noite, de braços abertos saudamos e acolhemos Heloisa entre nós, agora oficialmente, prontos a nos deixar contagiar por seu entusiasmo e a embarcar com ela em novos projetos que seu detector de desafios nos traga. Que seu olhar para o futuro continue fértil, agora com o apoio desta instituição, ao mesmo tempo nova e venerável, sob as bênçãos de tantos exemplos como os já citados, ao lado de alguns dos quais ela já trabalhou e que passa a ter a responsabilidade oficial de seguir.
Esta casa hoje acolhe você, Helô. A casa de Machado de Assis, um Joaquim que era também Maria. A casa de Nélida, que antecedeu você diretamente. E de Rachel, Dinah, Lygia, Zelia, Ana, Rosiska, Cleonice, Fernanda (em meio a cerca de três centenas de homens, ao longo do tempo). E quem mais chegar, acadêmica Heloisa. Teixeira ou Buarque de Hollanda. Carregada do tanto que já fez ao longo da vida, herdeira de sua própria obra, indelevelmente marcada pelo que construiu por si mesma com qualquer sobrenome – e aqui valem umas aspas para a expressão “nome sem apego nenhum nem pertencências”, como um personagem definido por Guimarães Rosa, acadêmico que também cunhou a máxima de que “nome não dá, nome recebe.” Com o sobrenome da mãe ou dos seus filhos, seja bem-vinda, Helô.

