Ano XX 01
Dossiê
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Crônica para a amiga que se foi

Soube que ontem você se foi, sem ar para respirar.

Helô, querida, você era a encarnação do paradoxo: quando pensava, uma leoa destemida, aguerrida, inauguradora, inventadeira de novidades; quando sentia, um furacão, que tudo devastava, mas que também se deixava devastar, e dava de parecer frágil, os pulmões logo se ressentiam, uma tristeza profunda da qual não se livrava, nem com todas as mezinhas do pai, grande médico, nem com o saber que adquirira ao longo dos tempos; nem com o carinho daqueles a que permitia dividir sua intimidade. Depois, com o tempo, a alegria voltava. Porque do lado de fora, no sorriso e no trato com as pessoas, a alegria estava sempre lá, sustentando sua beleza de atriz nouvelle vague.

Foi essa figura sedutora, descolada e irreverente que conheci quando, um dia, aluna ainda do curso ginasial do colégio Sion (Rio de Janeiro), sentada em sala de aula, junto à turma de colegas, fui apresentada à nova professora de Latim. Surpresa geral diante daquela pessoa ainda tão jovem, escolhida para ensinar uma língua tão velha, que já era considerada morta. O contraste entre o conteúdo e a forma não passou despercebido ao grupo, que murmurava baixinho: “Quem será? É bonita! Como se veste bem…”. Ela tinha um vestido de malha de tricô bege, e usava um cinto de couro com argolas de metal escuro separando as partes, displicentemente colocado sobre os quadris, os sapatos eram mocassins marrons bem ao gosto da época, e a bolsa era de couro, grande, dessas que abrigam muitos mistérios femininos, com alças que se sustentavam no ombro. Gente, o espanto era total. Parecia saída da página da ELLE: tudo simples despojado, mas perfeito. Até os cabelos, longos até o ombro, charmosamente soltos e ondulados. As professoras do colégio, na época, ou eram freiras, ou eram senhoras tradicionais, em seus tailleurs em tom neutro e blusas de frufru; e eram feias, meu Deus, como se, para mostrar saber, não se pudesse ser bela nem vaidosa. E ela, aquela nova professora, ali, mostrava uma outra imagem, sobretudo pela altura do comprimento do vestido tubinho, bem acima dos joelhos.

Foi sucesso imediato e amor à primeira vista.

Não me lembro exatamente do ano, mas, conferindo pelas datas de sua cronologia, ela devia estar no máximo em torno dos dezenove anos, e eu, ainda uma adolescente, pelos quinze. Ela era exuberante na expressão, usando uma linguagem correta, mas muito à vontade, onde não faltavam as gírias… como podia ensinar Latim, ainda por cima num colégio de freiras, mesmo que tivesse fama de ser um colégio inovador, pra frente!? Era o desafio que queríamos descobrir, um mistério a desvendar, curiosas e atentas.

Foi pela didática que ela revelou porquê estava ali, pelo método com que se aproximou de uma matéria que, mesmo para nós, acostumadas com estudos, parecia tão chata. Com ela, descobrimos que não só de regras e de gramática se faz um meio de entrar no convívio com uma língua, no caso, uma língua morta. O modo era uma ginga: precisava tornar a língua viva. Agora vejo que estávamos diante de uma pessoa cujos conhecimentos do mundo antigo se punham a serviço do atual, do contemporâneo: não estava interessada em declinações, nem em decorebas. O De bello gallico que deveríamos saber traduzir para as provas, virou oportunidade para usarmos o burro com inteligência – uma coisa que só muitos anos depois compreendi, lendo O mestre ignorante, de Jacques Rancière, que se baseia na experiência do professor francês Joseph Jacotot, no século XIX, ao ensinar francês a holandeses, acreditando que “a instrução é como a liberdade: ela não se dá, conquista-se”. Nosso trabalho era ler o burro, e usar aquela cola da tradução, de modo inteligente, como num jogo paciente e comparativo. A bem da verdade, aprendemos a “colar bem”. Nossa ignorância nos irmanava e nos ajudávamos umas às outras a compreender o texto difícil. Como diz Rancière (2007, p. 47):

Aprendem-se frases e, ainda, frases; descobrem-se fatos, isto é, relações entre coisas e, ainda, outras relações, que são de mesma natureza; aprende-se a combinar letras, palavras, frases, ideias… Não se dirá que adquirimos a ciência, que conhecemos a verdade, ou que nos tornamos gênios. Sabemos, contudo, que, na ordem intelectual, podemos tudo o que pode um homem.

Pois o olhar dela estava voltado para o contexto específico textual e o maior, conjuntural, para o modo como viviam aqueles romanos, para a descoberta de quais seriam seus hábitos, em que eles acreditavam, como eram suas casas, como era a rotina diária das mulheres, como era o ritual do casamento etc. Não sairíamos latinistas, tradutoras, mas antenadas com o entorno. Enfim, dizia que ensinava “Historinha romana”. E nós adorávamos, nos aplicávamos e ao final, éramos compensadas, ainda por cima, com as famosas “boas notas”. Naquelas aulas tudo era diferente. Não sei quanto tempo durou. Fomos privilegiadas.

Depois reencontrei Heloísa, para minha alegria, no meu terceiro ano de Faculdade, naquele grande barracão da Avenida Chile, para onde foi transferida a Faculdade de Letras da UFRJ, a partir de 1968, no ano seguinte ao enrijecimento do AI-5, que tornou mais rigoroso o controle das nossas ações estudantis.[1]

Como a reforma universitária, de 1967, tinha acabado com o curso dito seriado, provocara uma pulverização das disciplinas, implantando um regime em que as escolhas seriam reorganizadas conforme número de créditos e carga horária de cada histórico escolar, de cada aluno. A nossa turma, os alunos de “Português-Literaturas”, como era o meu caso, o de Beá (Beatriz Bueno depois Vieira de Resende), de Ana Teixeira, de Nilza e de Brígida, do Marcílio Morais e do Carlos, nossa patota. Iniciamos, depois do vestibular em 1966, na Avenida Antônio Carlos, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Ocupávamos algumas salas cedidas à Universidade no prédio ocupado do antigo consulado da Itália. Ainda éramos vinculados à Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi). Nossos corredores, nessa época, eram sobretudo o largo passeio da Antônio Carlos, embaixo dos altos pilotis. Depois, em 1967, passamos ao outro lado da rua, ao prédio provisório velhíssimo – onde hoje há um belo edifício anexo à sede da Academia Brasileira ao qual pertence. Chamávamos o predinho ocupado de Senadinho, com suas saletas apertadas, muitas escadas e esquisitices arquitetônicas neoclássicas. Fizemos o segundo e último ano de seriado ali, ainda com espírito de turma, e de turma muito unida. Nesse território livre, andávamos em pequenos grupos pelo centro da cidade, frequentávamos a vizinha Alliance Française, a Livraria Francesa, um botequim pé-sujo, onde às vezes, em dias mais duros, “almoçávamos”. Ah! E ali perto havia um local ótimo onde, uma vez por semana, podíamos compartilhar um bom filé, um luxo! Nada era ideal, mas gostávamos. E não achamos graça na ideia de mudança para a Avenida Chile.

Correio da Manhã, 11 de agosto de 1968
Correio da Manhã, 11 de agosto de 1968

Sem opção, fomos para este exílio, longe do burburinho de que gostávamos. No novo endereço, estávamos num campo aberto, no meio da cidade, uma instalação provisória de Pavilhão, que pertencera a Portugal, em terreno do antigo Estado da Guanabara. Mas já éramos Faculdade de Letras da UFRJ, situação que o diretor pró-tempore Afrânio Coutinho tinha regularizado oficialmente, não sem muita negociação junto ao ministro Moniz de Aragão. Inaugurou-se em uma Aula Magna ministrada pelo professor, em 5 de março de 1968. Mudamos na raça, de Departamento da Faculdade Nacional de Filosofia, passamos a Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, agora com novo endereço próprio, abandonando a vida cigana.

Claro que 1968 foi o ano dramático da transferência de documentos e pessoas – docentes e funcionários – para um grande improviso, no qual obras emergenciais conviviam com as tentativas de salas de aula. Mas o imóvel deixava muito a desejar, o grotesco e o profano convivendo à base de boa vontade. Na entrada desse imóvel, a única instalação, digamos assim, regular, era o auditório, que usávamos para espetáculos e como anfiteatro para as aulas em que se reuniam grandes turmas, como as de Linguística do professor Mattoso Câmara Jr. Havia outras salas menores, como a do diretor e a secretaria. Porém, as aulas eram dadas naquele barracão, um grande espaço compartilhado, que se situava em nível mais baixo e nos fundos do auditório. O galpão era amplo, mal iluminado, praticamente sem divisórias, no qual as cadeiras, de madeira pesada e de braço, eram dispostas de modo a formar aglomerados irregulares, em torno de uma mesa e de um quadro negro, onde em geral se postava uma professora ou um professor. Quando se chegava ao amplo espaço, era pelo docente que se reconhecia a aula que estaria acontecendo naquele aglomerado. Funcionava? Sim, porque havia uma espécie de acordo tácito entre todos, para que ninguém inviabilizasse o curso do outro. Um acordo coletivo espontâneo e curioso. Claro que com altos (sons) e baixos (inaudíveis): de repente havia gargalhadas ou gritos, a interromper o quase silêncio. Mas a gente ia levando. Fazer o quê? Enfim, tínhamos um endereço menos provisório do que o lúgubre Senadinho ou o estranho prédio, frio e velho, da Avenida Antônio Carlos.

Nesse ambiente meio caótico do pavilhão da Avenida Chile, nossos colegas de “Português-Literatura”, mais ou menos ligados por interesses semelhantes, conseguiram permanecer juntos, pelo menos nas disciplinas obrigatórias. As optativas dispersavam mais. Em termos de créditos obtidos, na convalidação de um regime para outro, estávamos bem “adiantados para o terceiro “ano” – ainda não nos referíamos a períodos, mas a anos e semestres, herança anterior, porque o seriado era quase um regime integral, tínhamos aulas pela manhã e pela tarde, quase todos os dias da semana. Portanto faltava-nos pouco para a finalização da graduação e tínhamos ainda dois anos para isso. Folgados na vida acadêmica, mas agitados na vida da política estudantil, a vida era intensa e perigosa. Nosso Diretório Acadêmico (DA) era atuante e ocorreram episódios em que se destacou o espírito combativo, porém diplomático, de Afrânio Coutinho. Heloísa faz um retrato breve desse momento na longa entrevista que dá, junto com Vilma Guimarães, ao Museu da Pessoa, em 16 de fevereiro deste ano de 2025.

Acervo Museu da Pessoa: Vilma Guimarães e Heloisa Teixeira
Acervo Museu da Pessoa: Vilma Guimarães e Heloisa Teixeira

Entre outras coisas importantes, nessa entrevista ela fala de sua pedagogia. No curso de Letras, pelas atitudes que tomava distribuindo tarefas e delegando funções, pude notar mais uma vez aquela posição do “não saber”, que já tinha intuído no convívio de juventude com a professora de Latim. Como observa Eduardo Coelho, à margem da entrevista de abertura para o livro Onde é que eu estou?, para Heloísa, “mais do que um tempo destinado ao ensino de conteúdo […], a aula deve se tornar uma experiência de desconstrução coletiva de práticas acadêmicas”, por uma desierarquização (Coelho, 2019, p. 15). Isso pode se dar desde o rearranjo físico do espaço, para valorizar a horizontalização, à crítica de bibliografias de teses e dissertações, para elencar a presença de autoras. Questões de caráter epistemológico são o que mais interessa. Como também, Coelho chama atenção, e mais adiante ressalta: o que se muda é o paradigma narcísico de resultado, para valorizar o processo, que deve compreender a articulação de atores e saberes. O segredo está no fazer junto, “numa prática inclusiva, em que todos são chamados à reflexão e à ação” (Coelho, 2019, p.20), agregando esse fazer à sustentação da “coisa pública”, à “sociedade como um todo”.

Aprendi, a partir do convívio com Helô, para minha vida prática de professora, que é fundamental ter consciência do que se está fazendo, de como se está encaminhando a dinâmica acadêmica, para garantir um modo aberto e participativo, uma “preocupação com a forma” como ela dizia. Não importa se o resultado pareça confuso aos outros, mas com certeza será experiência viva e marcante para quem atua. Experiência que fica para sempre na memória de cada participante.

* Ana Maria de Bulhões-Carvalho fez graduação em Letras na UFRJ, onde se doutorou em Literatura comparada em 1997, orientada por Beatriz Resende. Aposentou-se titular pela Escola de Teatro da UNIRIO. Escreve sobre teatro e literatura contemporânea. Seu livro sobre Silviano Santiago, Em atenção à palavra do outro: Alterbiografia, a autobiografia Em liberdade, será lançado este ano pela EDITUS, editora da universidade Estadual Santa Cruz, em Ilhéus. Atualmente mora na Bahia.
Referências bibliográficas
HOLLANDA, Heloísa Teixeira. Onde é que estou? Organização de André Botelho [et al.]. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

MUSEU DA PESSOA. Vilma e Helô: construindo futuros nas quebradas. São Paulo: Museu da Pessoa, 2025. Disponível em: <https://museudapessoa.org/historia-de-vida/vilma-e-helo-construindo-futuros-nas-quebradas/>. Acesso em: 24 maio 2025.

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2ª ed. 1ª reimpressão. Tradução de Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

TEIXEIRA, Heloisa. Site oficial. Disponível em: <https://www.heloisabuarquedehollanda.com/nova-pagina>. Acesso em: 24 maio 2025.
Notas
[1] Os fatos referidos à Faculdade de Letras comprovam-se nos relatórios do Diretor da Faculdade Afrânio Coutinho, referentes ao período de 1967 a 1978, disponíveis em: https://labhislingufrj.wordpress.com/wp-content/uploads/2021/03/afranio-coutinho-historico-e-relatorio.pdf.