Heloisa Buarque de Hollanda, verbete de enciclopédias, dicionários, bibliografias nacionais e internacionais, é referência fundamental em nossas pesquisas sobre literatura brasileira e estudos de cultura; relações entre arte e política; feminismo e, de forma muito especial, a poesia entre nós. Tornou-se uma intérprete privilegiada do Brasil dos anos 1970 a 2025. Transformou-se, ela mesma, em cânone da cultura brasileira, e partiu.
Respeito, admiração e reconhecimento dão sempre o tom quando a tomamos como fonte de pesquisa, ensaios, teses. Fica, porém, a dificuldade em combinar tal referencialidade com a inquietude, a busca pelo novo que atravessou sua vida acadêmica, suas pesquisas, suas formulações, além de certa irreverência, um modo desabrido de falar, que fez dela uma intelectual tão peculiar.
No início de 2023, a própria Heloisa sacudiu o ícone e se propôs a destruir a oficialidade do nome famoso. Ato surpreendente, porém coerente com toda a sua longa trajetória. Surgia a Heloisa Teixeira.
O uso da nova identidade se tornou definitivo quando, em 28 de julho de 2023, tomou posse na Academia Brasileira de Letras. Recebeu, naquele momento, o diploma de imortal das mãos do presidente da ABL já com o nome Heloisa Teixeira. Os colegas que tinham votado em Buarque de Hollanda levaram um susto, mas foi bom para se acostumarem.
Curioso como, apesar do problema que se punha para nossas bibliografias, rapidamente o novo nome se impôs. Heloisa recebia zaps, e-mails e até cartas de mulheres apoiando a nova persona. O último e festejado livro, que retoma pesquisa anterior revista, emblematicamente intitulado Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo (1960-1970), já foi publicado com a nova/mesma autoria: Heloisa Teixeira.
Feminista na teoria e na prática, encontrou na vida pessoal as razões para o desdobrar da identidade. Reconhecendo que o Buarque de Hollanda, herdado do marido, fora uma ajuda importante, um impulso no universo acadêmico, o que seria ingênuo negar, afirma que ao chegar aos 80 anos passara a ser um peso. Teixeira era o nome da mãe que não entrara na certidão.
Em entrevista, afirmou que Buarque de Hollanda tornara-se uma marca, não era mais ela. No convívio com feministas e com mulheres da periferia, especialmente mulheres negras, aprendeu muito sobre a linhagem materna, a importância imensa da mãe, da avó, a ancestralidade feminina como referência. Disse Heloisa:
Aí eu fiquei com uma vontade de resgatar a mãe tão violenta, que falei, tá na hora de mudar de novo. Joguei também meu pai para escanteio e virei Heloisa Teixeira, que é uma coisa que me dá muito conforto. [1]
Naquele momento, quando dissemos a ela que o novo nome era mais uma recusa do cânone, apressou-se em dizer que não era bem assim, era mais complicado. Eu acabara de apresentar um paper em congresso, caracterizando-a como uma intérprete do Brasil que se colocava sempre contra o cânone, mas a tal intérprete, mesmo tendo gostado da argumentação exposta, me disse não ser contra o cânone. Lembrei que André Botelho e Caroline Tresoldi, em Helô Teixeira: Crítica como vida, afirmavam que “a rebeldia de Helô em relação aos cânones não é nenhuma novidade” (Botelho e Tresoldi, 2024. p. 130), mas fiquei decidida a pensar melhor que, no campo da literatura, era uma situação que me parecia paradoxal: uma antologista ser contra o cânone.
Passada certa implicância com a trabalheira que substituição de um nome por outro estava dando, fui percebendo que também aí não se tratava apenas de recusar o nome do primeiro marido, mas de uma recomposição da filiação, uma valorização do nome que não importara por todos os anos de vida. Também em entrevista a ser publicada, Helô falou que após a adoção do Teixeira passara a ver a imagem da mãe como um “pentimento”, “você tira uma camada e aparece outra” (bonito!), numa viagem que para ela ainda não tinha parado.
Daí em diante, conversamos várias vezes sobre sua relação com o nome e com o cânone. A questão da presença/ausência da mãe era complexa e, sim, havia uma certa vingança feminista. Mas a questão do cânone literário, evidentemente, merecia reflexão mais demorada. Nossos últimos encontros, já em abril, foram dedicados aos dois temas com conversas que partiram do fato de Heloisa ter sido homenageada com medalha importante do Conselho de Eméritos da UFRJ a ser recebida em cerimônia elegante. Quando perguntei se ia querer ir, garantiu que sim, que estava feliz, e que se não pudesse receber pessoalmente eu ia ter que ir por ela. Fiquei um tanto espantada com a reação de quem sempre dizia não gostar dessas coisas, e pouco depois acabei tendo mesmo que substituir a amiga que já hospitalizada.
Como foram iluminadoras tais conversas sobre a questão do cânone e como aprendi! O episódio da medalha evidenciava que o tema do cânone se ligava inevitavelmente ao da universidade, obsessão, sob diversas formas, da vida de nossa autora. Na relação de dedicação e crítica, a sua própria universidade, também se revelava a complexidade dessa intelectual absolutamente original que, já Professora Emérita, dizia: “não sou acadêmica”.
Para nós, de Letras, em especial, os grandes debates sobre função, limitação, inevitabilidade dos cânones literários se deram sempre junto com discussões de currículos, de disciplinas, da própria vida universitária e da necessidade de renovação, democratização e a abertura para o conjunto da sociedade que tanto a preocupava.
O convívio com listas e referências canônicas é inerente, de algum modo, à função do professor. Lidamos com bibliografias e indicações de leitura que, de algum modo, se filiam aos cânones vigentes. E, no caso do pensamento e da obra de Heloisa, a questão se torna ainda mais complexa pelo exercício de crítica da cultura e por ter, como sua obsessão permanente pela poesia no Brasil, criando antologias de forte repercussão.
O criador de antologia é sempre, de alguma forma, um elaborador de cânones, ainda que sua publicação só faça sentido se mexer com o cânone instituído, renová-lo. O organizador (curador?) pode ser mais radical e mesmo pretender destruir o cânone até então vigente, de algum modo, porém, haverá um diálogo do presente com o passado, mesmo se for para negá-lo com veemência.
Como intelectual, obras e posturas críticas de Heloisa foram marcadas pelo interesse permanente pelo contemporâneo, com todos os riscos em que isso implica, ao invés de mover-se no campo seguro do já consagrado. Capaz de identificar novas tendências antes mesmo de elas tornarem-se clara, buscou sempre o novo, não gostava de olhar para trás, como firmou:
Nunca olhei, não é de hoje. Nunca olhei, nunca olhei para trás. Você nunca viu uma coisa minha olhando p trás, nenhum trabalho. Olhando para trás, não. Eu não olho porque é uma certa viagem, não é nem porque não queira. (Arijón e Rezende, 2019. p.120)
Tal decisão, a de olhar sempre para a frente, fundadora de sua carreira, manifestou-se em diversas realizações: curadorias, trabalho de edição, ensaios produzidos ao correr dos anos, na ação dentro da Universidade Federal do Rio de Janeiro criando centros de pesquisa, em antologias de textos teóricos e, é claro, nas de poesia.
Proponho, então, releituras desses volumes sob a ótica da relação perigosa que instituíram com os cânones.
O surgimento, já radical e polêmico, de Heloisa, ainda Buarque de Hollanda, como antologista deu-se em 1976. Deixara a Faculdade de Letras da UFRJ para ajudar a criar a Escola de Comunicação (ECO/UFRJ), afastando-se do sólido percurso como professora de Literatura Brasileira, para participar de uma nova unidade e dedicar-se sobretudo ao que chamamos de crítica cultural. Mas nem ela deixa a literatura, nem os estudos literários a deixam, buscando na autora, sempre, leituras inovadoras e não contaminadas pelo que já fora absorvido, o que havia se incorporado aos currículos dos cursos de Letras, ao reconhecido e tantas vezes repetido.
É nesse momento que se inicia a relação que me pareceu paradoxal: buscar o novo significava questionar o que era considerado fundamental, importante e insubstituível, naquele momento, em matéria de poesia, mas significava também indicar outras possibilidades de criação, as que fariam parte da nova antologia.
No entanto, não se tratava de fácil movimento de renovação, como fora derrubar o parnasianismo que rapidamente se tornara velho ou o gosto poético pelo simbólico. O cânone então era a excelente poesia que se seguiu ao Modernismo de 22, este mesmo um movimento iconoclasta que acabou se tornando canônico e presente em todas as antologias. Em 1976, tratava-se do último modernismo, a geração de 45, com destaque para a magnitude de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Vale lembrar que a organização dos estudos literários, sua crítica e história, é feita de uma sequência de cânones em que é sempre perigoso mexer para seguir adiante.
O evento com que Heloisa sacudiu a crítica, diria mesmo a intelligentsia acadêmica, foi o lançamento da polêmica antologia organizada a partir da identificação de 26 jovens poetas que iriam fazer parte do ficou conhecido como “poesia marginal”, a 26 poetas hoje, em 1976.

A seleção proposta foi um momento especial de manifestação do faro de Heloisa para o que estava surgindo, uma sensibilidade peculiar de perceber para onde sopram novos ventos, o que tais ventos levariam adiante. E usava para sacudir e renovar o cânone vigente o modelo favorito para a “canonização”: uma antologia. Na verdade, fui compreendendo aos poucos, assim foi sempre o movimento da nossa intelectual: mexer no cânone a partir da ideia de cânone, na universidade de dentro da universidade, no feminismo a partir do feminismo e assim por diante.
A marginalidade de que falava consistia não na origem social dos escritores, conotação que a expressão receberá posteriormente, mas no modo de produção adotado. Diante das dificuldades de publicação por editoras consagradas, surgira um circuito de criação e venda de livros de poesias independente. Eram textos rodados em mimeógrafos e vendidos de mão em mão, nos cinemas, em encontros ou reuniões estudantis.
Tais circuitos se constituíam em refúgios da cultura que vivia os anos repressivos da ditadura, que, naquele momento, começava a se modificar, mesmo continuando a prender e assassinar. Tempos ainda muito difíceis, mas com um leve sopro de otimismo aparecendo no ar.
A cultura percebia brechas de liberdade que não podiam ser desperdiçadas. A verdade, porém, é que as formas cotidianas e interpessoais de controle e pequenas dominações não eram percebidas como tal, especialmente quando ocorridas entre pares, na política, na academia ou entre homens e mulheres. Aqui me antecipo na relação entre produção artística e literária e a circulação de homens e mulheres, de brancos e negros no espaço da produção do saber. Voltarei a isso outras vezes.
É importante reler a apresentação à 26 poetas hoje, onde a organizadora afirma que poesia é “o artigo do dia”. E era. Cito-a, falando do que pretendera dentro do espaço nobre da poesia na primeira edição publicada:
Dentro da precariedade de seu alcance, esta poesia chega na rua, opondo-se à política cultural que sempre dificultou o acesso do público ao livro de literatura e ao sistema editorial que barra a veiculação de manifestações não legitimadas pela crítica oficial. (HOLLANDA, 1998. 2ª. ed. p.10)
Nesse prefácio, referindo-se ao corpus selecionado, aponta para a “desierarquização do ‘espaço nobre’ da poesia, tanto em seus aspectos materiais gráficos quanto no plano do discurso”. Tratava-se, assim, de uma poesia que descia da “torre do prestígio literário” e buscava uma atuação que “restabelecendo o elo entre poesia e vida”, restabelecia “o nexo entre poesia e público” (idem, p.10).
Em 1998, por ocasião da segunda edição, após anos de debate, reflexões e teses sobre o trabalho de 1976, comenta que o nome poesia marginal foi dado “sob protestos de uns e aplausos de outros”. E faz observação interessante em relação ao cânone, tema a que não se referira anteriormente:
…era uma poesia “não literária”, mas extremamente preocupada com a própria ideia canônica de poesia. Preocupação que se autodenunciava através de uma insistência sintomática em “brincar” com as noções vigentes de qualidade literária, da densidade hermenêutica do texto poético, da exigência de um leitor qualificado para a justa e plena fruição do poema e seus subtextos. (Idem. p.257)
Em 1976, Heloisa tinha afirmado que a subversão dos padrões literários dominantes era evidente. Naqueles poemas, o coloquial era retomado do movimento modernista de 1922, pulando correntes, mesmo as de vanguarda, “que se impuseram de forma controladora e repressiva no nosso panorama literário” (Idem, 11).
Estava comprada a grande briga que ia dos admiradores da poesia moderna mais erudita aos concretistas de São Paulo.
A verdade é que 26 poetas hoje deu visibilidade a poetas até então pouco conhecidos como Cacaso, que se tornaria o teórico do movimento mimeógrafo, e Chico Alvim, que já publicara o importante Sol dos cegos, mas estava longe do reconhecimento como o grande poeta que é. Curiosamente, foi com a poesia marginal que surgiram nomes hoje consagrados, canônicos, poderíamos dizer, como Afonso Henriques Neto, Zuca Sardan, Leila Micolis, além da mitológica e tão estudada Ana Cristina Cesar, incluída na seleção quando ainda era ainda aluna da PUC-Rio. Dos selecionados, dois se tornaram membros da Academia Brasileira de Letras: Antônio Carlos Secchin e Geraldo Carneiro.
Pouco depois do lançamento, em seguida a fortes críticas dos poetas concretos, que se pretendiam os únicos inovadores radicais, Heloisa é entrevistada pelo conselho da revista José, importante referência para a reflexão sobre literatura, no mês de agosto de 1976. Eram críticos – homens, é claro – que formavam a nata do pensamento sobre poesia nos anos 70: Luiz Costa Lima, crítico, Jorge Wanderley, poeta, e Sebastião Uchoa Leite, poeta e crítico. A entrevista, tal como reproduzida posteriormente em livro, é um documento antológico do momento vivido por uma jovem intelectual mulher e sua relação com os misóginos pares. Os editores eram pensadores de esquerda, opositores do autoritarismo, combativos mesmo. Mas eram o mesmo tipo de homens que, para citar episódio tornado célebre, diziam, no corajoso jornal de oposição O Pasquim, que o único movimento de mulheres que respeitavam era o dos quadris. Sobre a importante vinda da feminista Beth Friedman ao Brasil só interessou o que consideravam sua feiura.

Da entrevista, além dos editores citados e da “vítima”, participaram, a convite, dois poetas que faziam parte da antologia: Eudoro Augusto e Ana Cristina Cesar. Geraldo Carneiro também estava presente e colocou-se claramente ao lado dos “inquisidores”.
Para percebermos o tom dos machos-alfa daquele momento: logo no início, Luiz Costa Lima quer saber dos critérios para a seleção realizada pela autora. Sebastião Uchoa Leite afirma que não há uma proposta estética comum, mas sim uma proposta existencial comum; e mais adiante garante que na antologia “o grande assassinado é João Cabral”. Em determinado momento, Jorge Wanderley e Luiz Costa Lima travam diálogo que é termômetro do combate diante de um ataque ao cânone vigente.
O comentário dos editores que, cabe lembrar, tinham, eles mesmos, a convidado a falar, é implacável. Passo a citar a entrevista, que merece ser relembrada. (ARIJÓN e REZENDE, 2019. p.13 a 37)
JW – Há um ponto que vale a pena ainda discutir – se admitirmos por hipótese – que a antologia tenha uma unidade positiva.
LCL – Mas não tem, Jorge.
JW – está provado que não…
Para Heloisa – e aí está a grande perspectiva crítica inovadora – a unidade estava no comportamento antielitista, crítico dos conceitos de “qualidade”, tecnocrático, presente inclusive na universidade, e diz: “tentei inclusive neutralizar aquele namoro com a qualidade, próprio do antologista” (idem, p. 16). Era uma juventude que trocava o futuro pelo aqui e agora, afirma: “Nisso vem o sentido de imediatez, de festa, de liberdade sexual, que se nutre do momento sem futuro, de um momento que se cumpre na sua precariedade” (Idem, p.24). Nada poderia ser mais definidor dos anos 70.
Segundo a transcrição, Heloisa falou pouquíssimo e Ana Cristina teve uma intervenção ouvida e em outra teve a palavra cortada.
Luiz Costa Lima conclui longa fala dizendo:
(…) O que me parece importante é que a falta de programa é tão patente que não se pode sequer discutir. Eu perguntaria então se a inexistência de programa não implicaria numa ausência de reflexão crítica.
Ana Cristina – Eu discordo.
LCL – Sim, mas discorda de que?
ACC- Discordo em que a inexistência de programa tenha a ver com falta de reflexão crítica. (Idem, p. 32)
E muda-se de assunto.
Ao final, Jorge Wanderley afirma com certa maldade: “não se pode fazer um diagnóstico a partir desse registro que antologia é. Mas ela é um registro. Que aliás, deu muito certo comercialmente” (idem, p.37).
Na verdade, registrou o momento, só que foi muito além, terminou por mapear os rumos da poesia dali por diante. Até hoje, é comentado como a inovação da poesia de Ana Cristina Cesar e sua entrada no cânone contemporâneo estiveram sempre ligadas a sua descoberta pela professora.
Decididamente tratava-se de um combate contra o cânone vigente e mais ainda, para usar expressão que era cara ao professor Eduardo Portella, contra os “zeladores do cânone”.[2]
Nos anos 1980, a formação intelectual de Heloisa passa por importante virada, com a ida para os EUA representando novos contatos, novos horizontes críticos, novas epistemologias. Os movimentos sociais se reconfiguravam com a consolidação dos movimentos negro e feminista. Os Estudos Culturais, que tinham surgido no Reino Unido, eram incorporados às universidades americanas. Trata-se de mudanças que se iniciam com o chamado “multiculturalismo” e, impulsionadas pelos movimentos minoritários, irão promover tranformações radicais na intelectualidade e nas universidades americanas.
Heloisa, diferentemente da geração de professores que nós, que fomos seus alunos, tivemos, não teve uma formação europeia, geralmente francesa. Apesar de evocar frequentemente Bakhtin, Benjamin e Barthes como influências, suas experiências no exterior foram sempre relacionadas às universidades americanas, seja nos estudos pós-graduados seja como professora.
Ao falar de sua formação, sempre fala da importância de seu estágio de pós-doutorado na Columbia University, no período de 1984-1985, orientada por Jean Franco (1924-2022) crítica literária fundamental para os estudos feministas preocupados com a América Latina. Foi também momento de discussão importante das ideias de Frederic Jameson, de surgimento de críticos latino-americanos que irão formular as teorias pós-coloniais e decoloniais. Jean Franco, inglesa que se mudara para os EUA, levando experiências dos pioneiros Cultural Studies no Reino Unido, e pesquisadora da literatura latino-americana, era colega e amiga de Edward Said, com quem partilhava as formulações pós-coloniais. George Yúdice, também aluno de Jean Franco, se tornará um interlocutor privilegiado e passará a vir ao Brasil regularmente. Nas diversas vezes em que Heloisa voltou às universidades americanas, sempre participou de debates que incluíam questões relativas à constituição de cânones. Foi também Heloisa quem trouxe Jean Franco e outros intelectuais da mesma linha de pensamento para o Brasil, em seminários decisivos para todos nós, propondo o debate em torno do questionamento do projeto moderno, o incômodo que o pós-modernismo causava, o aparecimento de novos pensadores mulheres e negros, e de escritores de diferentes origens de raça e classe.
Com o surgimento polêmico do Pós-Modernismo, Heloisa buscou o novo na reflexão teórica e, em 1991, publicou livro pioneiro sobre o tema: Pós-modernismo e política. Pela primeira vez fomos colocados diante do pensamento de Andreas Huyssen sobre a ruptura entre “alta cultura” e “cultura de massa” em ensaio no qual diz que o pós-moderno devia ser salvo de seus defensores e de seus detratores. Temos acesso a Homi K. Bhabha, Henry Louis Gates Jr., Ernesto Laclau e outros que ainda não tinham chegado aos nossos debates universitários. O ensaio de Edward Said incluído no livro foi “O orientalismo revisitado”, sendo que o texto fundamental para as revisões pós-coloniais, Orientalismo, fora publicado apenas um ano antes por aqui. Para não falarmos na grande novidade que era Fredric Jameson de quem a obra fundamental sobre o tema, Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, só será traduzido em 1997.
Todos estes textos inovadores que a organizadora reunira foram antecedidos da introdução corajosa e profunda: “Políticas da teoria”, que se inicia com a autora dizendo: “É raro uma expressão causar tanto desconforto quanto o termo pós-moderno”. No artigo, o caminho que o termo percorrera nos EUA é apresentado como questionamento do próprio poderio americano na forma de “um novo aparato cultural”, o “sistema pós-moderno”, para finalizar falando da necessidade de resposta à:
Situação concreta e desafiadora do quadro político gerado pelo surgimento de um pluralismo neoliberal e do exíguo espaço disponível para a viabilização de uma cultura democrática no contexto de uma cultura e de uma economia multinacionais. (Hollanda, 1991.p. 14)
A seguir, o interesse pelo pós-moderno, expressão que logo foi deixada de lado, transforma-se na pesquisa sobre os emergentes Estudos Culturais a que nós, os que a cercávamos, passamos a nos dedicar, especialmente nos trabalhos desenvolvidos no recém-criado CIEC/UFRJ (Coordenação Interdisciplinar de Estudo Contemporâneos), centro de pesquisa coordenado por ela.
O interesse pela poesia, no entanto, continuara e o desejo de mapear o que ia aparecendo nos anos 90 fez com que Heloisa se voltasse para os poetas que, como sempre, a cercavam, para a eles dedicar sua avaliação e crítica.
O país já completara, bem ou mal, a saída da ditadura. As transformações políticas marcavam a cultura da pós-redemocratização, apontando para o pluralismo, para o surgimento de novas vozes. A crítica ao autoritarismo não era suficiente para que um presidente de esquerda, vindo do mundo operário, fosse eleito, mas governo já democrata instigava o surgimento de novas vozes. Na prosa, o cotidiano das grandes cidades se tornou tema dominante numa ficção ainda prioritariamente masculina, mas onde vozes fortes de mulheres já surgiam.
O tema da globalização parecia trazer esperanças de um mundo mais equilibrado, onde as fronteiras territoriais seriam mais fluidas, ilusões rapidamente perdidas que serão definitivamente sepultadas no 11 de setembro de 2001.
Mas e a poesia? É nessa situação de transição que Heloisa vai procurar o que haveria de novo na poesia. Quem eram os poetas que importavam nesse novo mundo neoliberal.
Penso que, como em várias outras ocasiões nesse país de idas e vindas na modernização da cultura, vivíamos a situação de que fala Antonio Gramsci ao dizer que o velho está morrendo e o novo não pode nascer.
Assim, em 1998, foi publicada a reunião de poesia que estava longe de promover o espanto provocado pela 26 poetas hoje. Trata-se da Esses poetas: Uma antologia dos Anos 90.
Era um momento em que estávamos diante de uma relação completamente diferente com o cânone literário, e não era devidamente percebido entre nós, em situação completamente diferente da vivida nos EUA, o quanto o literário estava ligado às questões que já se evidenciavam no campo dos Estudos Culturais. Não vigia um cânone solidificado, lia-se de tudo e os marginais estavam firmes e fortes. Tratava-se de buscar uma renovação em um momento confuso, de definições políticas e culturais pouco claras. Esses poetas é apresentada como uma antologia da década que se encerrara e fora fértil em poesia. Em 1998 vários dos selecionados já circulavam em diversos circuitos, como Waly Salomão e Carlito Azevedo, e o requisito era que todos deviam ter sido editados pela primeira vez na década de 90.
Heloisa explica o impulso na apresentação:
Essa não é a primeira vez. O fato é que, diante de qualquer formação de consenso a respeito de quedas de vitalidade na produção cultural, sinto-me impelida a organizar uma antologia de novos poetas. (Hollanda,1998. p. 9)
Explica ainda que o neoliberalismo crescente fazia com que os movimentos sociais amadurecidos se organizassem em frentes diferentes, às vezes em confronto. Entre a academia e a militância ia se formando um abismo. O impacto do surgimento de casos de AIDs levantara debates que iam dando nova voz ao movimento gay. O feminismo espalhava-se com novas formulações. A figura da maioria pobre começava a ser investigada como “excluído” ou “excedente”.
A antologia, desta vez, traz poetas que eram profissionais cultos, com formação superior, jornalistas, professores, todo o contrário da geração anterior, antiestablishment. Heloisa afirma que o critério de seleção dos poetas que participaram foi definido por afinidades eletivas da organizadora.
A autora comenta que, junto e a partir das distinções canônicas entre gêneros, linguagens (com o surgimento de experimentos de oralidade e performances) e o que chama de “territórios políticos”, instala-se a complexidade da estética poética manifestada.
A seleção traz a nata do que será a poesia brasileira nos anos que se seguiram. Se há um cânone que vai se estabelecer pela consagração daqueles que começaram a publicar nos anos 90, certamente é encabeçado por Antonio Cicero, poeta, filósofo e letrista. Preocupado com a relação entre poesia e Filosofia, era forte defensor do “critério de qualidade” na literatura, como disse diversas vezes. No entanto, foi igualmente importante para a chamada cultura de massa com seu sucesso como letrista da canção popular na Brasil.
Os limites entre alta cultura e cultura de massa já tinham se embaralhado. Assim como Ana Cristina Cesar se tornou um modelo da poesia da geração dos 26 poetas, Antonio Cicero será a melhor referência dentre os poetas elegantes da Esses poetas. Em 2017, passou a fazer parte da ABL. Em 2024, diagnosticado com Alzheimer, optou pela morte assistida, comovendo a intelectualidade e o universo da música popular.
Dentre os outros selecionados estão Eucanaã Ferraz, Alberto Martins, Arnaldo Antunes, Carlito Azevedo, Ricardo Aleixo e outros poetas já reconhecidos. Nem todos permaneceram como poetas, como é o caso do romancista e roteirista Paulo Lins. Outros ainda continuam poetas bissextos, como Italo Moriconi, professor que se tornou importante no mundo literário por elaborar “listas” elas mesmas das mais potentes: Os cem melhores contos brasileiros do século (2002) e Os cem melhores poemas brasileiros do século (2001)
Não se pode deixar de observar que o critério de “qualidade”, tantas vezes relativizado, estava aí presente. A pergunta de Heloisa: “o que faz da poesia poesia?” voltava sob outra perspectiva, tornando-se questão que ocupará todo o trajeto da nossa crítica e será frequentemente retomada, reformulada, questionada em função da própria produção que ia surgindo.
Uma nova relação entre o que poderia ser o cânone e a proposta da antologia se evidencia. A pesquisa buscara o que havia de novo na poesia da década, mas não há uma ideia de investigar exclusões do que então circulava nos meios literários, não era esse o caso.
O elenco proposto facilmente cai no gosto da crítica e nele permanecerá. Mesmo entendendo que a sensibilidade livre, diante do novo, é uma forma do pensamento crítico, vale lembrar que o novo o era unicamente em termos editoriais, e este será o caminho para continuarmos a rever as relações perigosas entre as antologias e o cânone. Mais adiante, com as referências à última das antologias, vamos perceber os problemas que a seleção enfrentava ao preservar o que a própria Heloisa designou como “cânone masculino”. Se de 26 poetas hoje participavam apenas cinco escritoras mulheres, a situação da antologia de 1998 era pior: unicamente quatro mulheres foram selecionadas: Claudia Roquette Pinto, Josely Vianna Batista, Lu Menezes e Vivien Kogut.
O que quero chamar atenção é que nas renovações que se faziam necessárias e desejadas no pensamento acadêmico, em especial na academia americana, o importante nesse caso não era descobrir novos autores, mas sim definir que autores, já existentes, deveriam passar a ser incluídos. Os caminhos de discussão sobre o cânone literário não trilhavam, entre nós, o rumo do debate que foi ganhando cada vez mais espaço com as políticas de reparação nos EUA e como reação às medidas arbitrárias de Ronald Reagan em relação às universidades, com o fim das ações afirmativas, cortes de bolsas e desprezo pelos estudos das humanidades.
Os referenciais teóricos produzidos pelos autores que publicavam nos EUA, como Edward Said, propondo a discussão sobre “os outros”, Gayatri Spivk com a fala dos subalternos, e a leituras políticas que a desconstrução de Derrida recebia provocam debates importantes entre nós. No entanto, ainda que os debates críticos despertados pelos temas que ocupavam prioritariamente os Estudos Culturais – raça e gênero – ocupassem nossas pesquisas e discussões, tais questões demoraram a ser percebidos pela crítica literária, mesmo a mais preocupada com temas e questões sociais. Basta conferirmos a falta de percepção da relação entre diferentes origens étnico-raciais e a produção artística ou as formas de participação das mulheres no mercado editorial.
Nos EUA, nos anos 1980, sob os dois mandatos de Ronald Reagan, os estudiosos de humanidades e de Letras enfrentaram diretamente a necessidade de se organizarem para enfrentar o conservadorismo.
No campo mais restritamente acadêmico, com influência no mundo editorial, na organização de estudos, pesquisa, programa disciplinares e antologia, fervia o debate sobre a formação do cânone literário e seu enfático questionamento. O importante e influente professor de Yale Harold Bloom, conservador e preocupado em garantir privilégios já adquiridos, vai elaborando seu cânone ocidental com a exclusão de todos os escritores em que identifica uma “fuga ao estético”. São, segundo afirma em O cânone ocidental, “corações feministas, afrocentristas, marxistas, neo-historicistas foucaultianos ou descontrutures”, membros da “Escola do ressentimento” que teriam como herói Antonio Gramsci.
A literatura afro-americana, com o rápido sucesso que obtiveram nomes como a romancista Toni Morrison, premiada com o Pulitzer em 1987 e que receberá o Nobel de Literatura em 1993, provoca uma reviravolta nos cânones instituídos. Eram os outros que apareciam apontando para a revisão do cânone nas antologias e nos programas de estudo de literaturas. A exclusão que até então se dava nada tinha de neutra, mostrando que as listas e currículos realizavam posturas ideológicas e culturais movidas pelo ideário da civilização ocidental branca, masculina e patriarcal. A crítica literária, no quadro de epistemologias descoloniais praticadas pelos Estudos Culturais, passava a enfrentar de forma prioritária exclusões e inclusões no cânone, o que não aconteceu entre nós.
Judith Butler, ao tratar da exclusão de mulheres, sujeitos racializados e pessoas LGBT do campo filosófico e cultural, especialmente em Gender Trouble, acrescenta argumentos contra a construção de cânones, expressão do regime de normatividade a ser combatido.
O importante questionador do cânone branco e tradicional Henry Gates Jr., professor e ele mesmo organizador de readers e antologias literárias, em seu livro Loose Canons: Notes on Culture War apresenta o cânone, tido como um “repositório ideal de textos valiosos”, como algo que nunca foi o que propunha. Por essa falsidade, foi fácil de derrubar, a despeito da importância de seus defensores no campo da universidade e do saber em geral. O cânone, para Gates Jr., era uma coleção de textos ideologicamente reunidos, refletindo a sociedade racista e patriarcal e não uma seleção de textos representativos, ou mesmo reunidos por atribuições de qualidade. A deslegitimação do cânone, para ele, deveria ser acompanhada da revisão do conceito de “representação política”. Nos ensaios da obra, Gates Jr. propõe uma revisão total do cânone para que haja a devida releitura e revalorização das estratégias literárias empregadas pelos autores afro-americanos.
Trago aqui a figura de Henry Gates Jr. ao debate justamente por sua participação intensa na vida universitária, como aconteceu sempre com Heloisa. Nem um dos dois foi um crítico outsider a questionar o cânone acadêmico.
Outro intelectual de trajetória semelhante à de nossa autora foi Paul Lauter, autor do fundamental Canons and Contexts. Além de professor, crítico literário, historiador da cultura, Lauter foi organizador de antologia de grande importância e reconhecimento para o estudo da literatura americana, sucessivamente reeditada e adotada pelo ensino americano. Igualmente mobilizado pelo ataque de Reagan às universidades, a obra reúne questões da crítica literária às questões políticas urgentes provocadas pela ascensão do conservadorismo.
No momento atual, quando, sob o governo de uma direita fanática e arbitrária personificada por Donald Trump, acontece o mesmo ataque às universidades, aos imigrantes, ao pensamento independente e ao outro sob formas diversas, vale a pena voltar ao alerta desses intelectuais ligados à arte, cultura e, sobretudo, à literatura. Serve-nos para pensar nas ameaças possíveis a ganhos que o Brasil conseguiu obter, como a política de cotas no ensino e no acesso a empregos, e em como tais conquistas podem ser vulneráveis.
Lauter politiza a luta contra o cânone de maneira enfática, vendo como influencia não apenas a produção editorial como o ensino por meio de distorções conservadoras nos currículos, nas políticas de financiamento e de concessão de bolsas. Defende em suas antologias a inclusão de autores colocados à parte pelos cânones vigentes, declarando que “a diferença, manifestada em raça, gênero, classe e outras categorias de experiência e análise, pode e deve fornecer um modo central de pensar os programas educacionais universitários”. Sobre seus próprios trabalhos de seleção e crítica literária, afirma: “O cânone é construído, não descoberto. Aquilo que consideramos ‘literatura’ é o resultado de escolhas ideológicas feitas em instituições sociais específicas” (Lauter, 1991. p.154).
Entre nós, tais questões só serão importantes a partir dos anos 2000, depois da inclusão de políticas de cota na vida acadêmica e, nos anos que se seguiram, quando se transformarão em polêmicas e discussões (acirradas) em torno de posicionamentos divergentes sobre o identitarismo. Tivéssemos nos ocupado mais e melhor das necessidades de renovação do cânone artístico e literário enquanto nos envolvíamos com as novas questões levantadas pelos Estudos Culturais, teríamos chegado antes à nova atual configuração da literatura brasileira, em que autores negros, mulheres, indígenas, LGBTQIA+ e suas obras literárias são mais do que inovadores, são decisivos.
Voltando um pouco atrás: em 2009, Heloisa aparece como fortemente sintonizada com a novidade que representava a internet como forma de divulgação da literatura e indica que o mundo digital representava, em si, um formato novo de produção poética: a literatura praticada na web. A ideia de criação compartilhada, que continuará a interessá-la por longo tempo, aparecia como uma espécie de utopia possível. Cria, então, uma antologia unicamente virtual, a Enter. Infelizmente não há mais traço da antologia com o desaparecimento do site em que era veiculado. Recuperando escritos da época que permaneceram na Wikipédia, podemos ler parte da apresentação dos 37 autores que iam de jovens escritores a web designers:
…não pude ficar imune à evidente expansão da palavra e da multiplicidade de usos e experimentações com a palavra que crescem hoje em proporção geométrica. Considerei então, como matéria de exame, todas as formas de literatura praticada na web, muitas vezes excessiva e desigual (Wikipédia – Enter: Antologia Digital).
Se a chamada “literatura da internet” não vingou, a circulação em rede teve papel bem interessante. Sites reuniam autores de todo o país que não precisavam se deslocar para o Sul para serem publicados. A crítica, com revistas independentes como a importante No.com, recebeu forte oxigenação e maior sintonia com a produção imediata.
Quando Heloisa prepara a última de suas antologias, As 29 poetas, a consciência de uma renovação efetiva do cânone já estava assimilada. Na verdade, antes de se dedicar a preparar uma seleção de poetas que fossem todas mulheres, Heloisa realiza no campo acadêmico longa trajetória da reflexão sobre feminismo, com vastas publicações, reunindo as principais pensadoras mulheres no Brasil e no exterior. A evidência da inevitabilidade de partilhar novas epistemologias críticas fora iniciada com a publicação, em 1994, de Tendências e impasses: O feminismo como crítica da cultura.
A verdade é que as antologias anteriores traziam um problema que por muitos anos vai ficar atravessada na garganta da própria Heloisa: a pouca participação de mulheres poetas.
A reparação finalmente chegou com As 29 poetas hoje de 2021, que foi publicada pela sólida Companhia das Letras. Dizia As poetas, porque eram 29 mulheres, jovens, muitas inéditas em livro.

O ensaio que apresenta o livro é, ainda uma vez, importante e madura reflexão sobre o cânone literário e discussão questionadora do que é “essa estranha instituição chamada literatura”, como diz Jacques Derrida.
Heloisa começa identificando na poesia contemporânea de mulheres a influência decisiva de Ana Cristina Cesar, lançada naquela sua antologia de 1976. Ana C. serviria como um solo para o que a autora chama, de “jovem cânone de poesia de mulheres”.
No ensaio, a organizadora mapeia as poetas que mereceram destaque nos anos 2020: Angélica Freitas, Alice Sant’Ana, Ana Martins Marques, Marília Garcia e Bruna Beber. Não são essas, porém, que compõem o conjunto das 29 poetas. São, sim, as que mais influenciaram e serviram de referência às poetas mais jovens do aqui e agora, mas não é delas, já consagradas, que a antologia se ocupa. A seleção continua sendo uma aposta no novo, novíssimo. Segundo ela, o diferencial das poetas é conquista do conjunto de obras de escritoras mulheres, no momento em que assumem, no Brasil e no mundo, forte protagonismo. O que é fundamental para a nova literatura de mulheres representa capital inestimável: um ponto de vista próprio e irreversível, o enfretamento sistemático do cotidiano, dos desejos e dos custos de ser mulher, já bem distante do que se conhecia como linguagem e/ou poética de mulheres. A nova experiência com a linguagem é a consequência imediata dessa conquista. As poetas formam uma espécie de coro, falando em voz alta e forte. Segundo Heloisa, tratava-se de: “Vozes fora do eixo dominante, heteronormativo e branco: são vozes lésbicas, vozes negras, vozes trans, vozes indígenas, interseccionais” (Hollanda, 2021, p. 31).
Com essa obra, Heloisa quer mobilizar a crítica canônica e masculina, a partir de toda uma segura e madura formulação de epistemologias feministas. Diz a autora no prefácio:
Estabelecer por livre e espontânea vontade um cânone tem uma quota de ironia, mas me permiti esse abuso porque tomo aqui cânone em seu sentido original de kauóuaV, vara utilizada como medida. (…) até segunda ordem, parecem ser as que mais influenciaram e mesmo se constituíram como referência para a poesia mais jovem praticada entre nós. (idem, p. 12)
O prefácio da última antologia define bem a ideia de cânone que foi amadurecendo e o processo que desenvolve de mexer no cânone a partir do cânone que antecede cada seleção de novos autores. Buscar sim o novo, o novíssimo, não por ser novo, mas pelo espaço que deve ocupar na literatura entendida como experiência viva partilhada com os leitores.
Cuidadosa pesquisa antecedeu a seleção e incluiu o convívio com as jovens escritoras em seminários e encontros, fazendo com que, mais do que uma publicação, fosse uma interpelação da vida universitária e, forçosamente, do cânone literário vigente.
Quatro anos depois do lançamento da antologia de poetas mulheres, as escolhas de Heloisa só fazem se revelar acertadas. A afirmação de que “não há uma linguagem sem o corpo” vai além da poesia, é válida para toda a literatura de mulheres que percebeu que o relato de experiência de vida, legitimado pelos ganhos do feminismo, é importante para sua escrita. Poderia dizer que poetas como Adelaide Ivánova e Luiza Romão já fazem parte do cânone, mas não é isso que importa.
É de Heloisa a “orelha” de Ninguém quis ver, livro de Bruna Mitrano de 2023, que fora uma das participantes da antologia, apresentada no texto como autora cujo foco “são as situações vulneráveis” que formam “a saga de invisibilidade de tantas mulheres”.
Leio no poema que dá título ao livro:
nasci com dentes podres
coisa de família
minha avó ficou banguela
aos vinte e seis
os tios todos
têm dentadura
criança diziam tão bonita mas
assim
não vai arrumar namorado
eu não queria arrumar namorado (Mitrano, 2023, p.35)
E fico pensando nos tantos sucessos que Heloisa conseguiu, nesse caso, negociar com leitores, com a academia e seus currículos, com a crítica cultural e literária um novo cânone. Mais uma vez trouxe o novo, novo que encontrou seu lugar e aí ficou.
