Ano XX 01
Vale a pena ler de novo
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POLÍTICAS DA TEORIA

No segundo semestre de 2020, a Revista Z Cultural deu início à publicação de uma nova seção, Vale a Pena Ler de Novo, sob curadoria de Heloisa Teixeira, então Buarque de Hollanda. A ideia era republicar textos que marcaram época e valiam a pena ser retomados (como “Eztetyca da fome”, de Glauber Rocha) ou que dialogavam com questões contemporâneas (como o belo texto de Conceição Evaristo sobre o nascimento de sua escrita). Neste número que homenageia Heloisa, publicamos a apresentação do livro Pós-modernismo e política, que ela organizou em 1991 – um dos muitos ensaios de Helô que acreditamos merecer ser lidos e relidos, tanto pelo que diagnosticavam de sua época quanto pelo que nos dizem sobre o presente.
Equipe da Revista Z Cultural

É raro uma expressão causar tanto desconforto quanto o termo pós-moderno. Partindo do senso comum, é quase impossível escapar da marca antagonizante e pessimista que define este momento como o “fim da ideologia”, “cultura do consumo”, “amnésia histórica” ou apenas mais uma moda a esta altura já ultrapassada. Entre essas indagações, impõe-se, como inevitável, a pergunta sobre o seu caráter de mistificação ou mesmo sobre a existência ou não de um pós-modernismo. Na Europa, o debate, ironizado como a polêmica entre Frankfurters e French Fries, polariza-se entre as correntes alemã e francesa em suas versões mais extremadas, tendo como representantes Jürgen Habermas e François Lyotard. A primeira, empenhada no resgate do poder emancipatório da razão iluminista, identifica os pressupostos pós-modernos com a emergência de tendências políticas e culturais neoconservadoras. A segunda, determinada na valorização da “condição pós-moderna”, avalia com otimismo o declínio do prestígio das narrativas-mestres, como o marxismo e o liberalismo, e a liquidação dos traços iluministas do projeto moderno. Nos Estados Unidos, essa discussão se expande de forma contundente e pragmática, evidenciando uma consonância sintomática com os questionamentos, cada vez mais recorrentes, acerca da estabilidade do poder americano e com a estratégia de disseminação de um novo aparato cultural, o “sistema pós-moderno”, veículo de novas formas de hegemonia cultural e política.

No Brasil, como em geral em toda a América Latina, a ideia de uma cultura pós-moderna, expressão do capitalismo tardio, vem acrescida de um forte sentimento de inadequação, no sentido de ser uma “importação indevida”, e é experimentado, na maior parte das vezes, como uma tendência política e moralmente problemática.

As próprias variedade e amplitude que podem ser observadas nas discussões sobre o pós-moderno sugerem que não há apenas uma via de abordagem do problema, ou mesmo um eixo central de questões, mas, ao contrário, uma expressiva heterogeneidade de colocações, tensões e campos de interesse aí envolvidos. De forma geral, a nova sensibilidade pós-moderna dirige suas forças para a desconstrução sistemática dos mitos modernistas, questionando não só o papel do Iluminismo para a identidade cultural do Ocidente, mas também o problema da totalidade e do totalitarismo na epistemologia e na teoria política modernas. A agenda teórica pós-moderna abriga ainda um elenco de questões em torno dos efeitos gerados pela perda da credibilidade nas metanarrativas fundadoras e do processo de erosão e desintegração de categorias até então inquestionadas, como as noções de identidade e autoria, ou mesmo das ideias de ruptura, novo ou vanguarda que se constituíram como critério-chave da estética moderna, privilegiando os caminhos críticos apontados pela revalorização da história no exame das ideologias que estruturam as formações discursivas e os processos de construção das subjetividades.

Não me parece que as diversas polêmicas, ou mesmo as próprias formas de descrição das características pós-modernas, sejam isentas de uma forte coloração política. As possibilidades lógicas envolvidas nos julgamentos ideológicos sobre o pós-modernismo, ligadas quase invariavelmente ao tipo de avaliação que realiza sobre o projeto moderno, já definem, com nitidez, pelo menos duas atitudes opostas: uma que procura desconstruir o modernismo e resistir ao status quo, e outra que repudia o modernismo para celebrar o status quo, ou seja, um pós-modernismo de resistência e um pós-modernismo de reação. Este último é o que geralmente informa o senso comum sobre a noção de pós-moderno. E aquele que, liderado pelos neoconservadores, rejeita o modernismo em nome dos males da modernização e impõe uma cultura “afirmativa”. O pós-modernismo de resistência, por sua vez, surge como uma contraprática não só da cultura oficial do modernismo, mas também da “falsa normatividade” de um pós-modernismo reacionário. Preocupa-se com a desconstrução crítica da tradição em lugar de instrumentalizar apenas pastiches de formas pseudo-históricas, com a crítica das origens, não com uma volta a elas. Em resumo, procura problematizar mais do que manipular os códigos culturais, interpelar mais do que dissimular as articulações políticas e sociais.[1]

Na área específica da produção artística, entra em pauta o aspecto extremamente delicado da perda de uma negatividade crítica, muitas vezes percebida como “natural” da obra de arte, o que põe em xeque a eficácia de uma arte de vanguarda ou de uma literatura de oposição e, consequentemente, sugere a reformulação das ideias correntes acerca de sua função social. Por outro lado, registra-se também, na recepção da obra de arte, o declínio do que Jameson define como a “emoção hermenêutica” marcada pela ideia de uma fascinação “inerente ao objeto artístico diretamente vinculada à “natureza” de seus conteúdos e subtextos cuja densidade requer uma interpretação especializada. Esta emoção, que diz respeito à noção de profundidade da obra de arte, estaria sendo substituída por um novo tipo de percepção estética centrada não mais em “sentimentos” cognitivos, mas em níveis variados de intensidade receptiva.[2]

Outro tema nevrálgico desta agenda é o que se refere à quebra da divisão categórica entre as chamadas cultura culta e cultura de massa, discurso dominante da estética modernista entre o final do século XIX e os primeiros anos da década de 20 e que retorna, com novo vigor, nas duas décadas que se seguem à Segunda Guerra Mundial. Esse “grande divisor”, como define Huyssen, com todas as suas implicações morais, estéticas e políticas, poderia ser visto, na realidade, como a característica mais aguda da concepção de uma arte moderna e, como tal, um caminho mais eficaz para a definição do modernismo do que as várias tentativas de diagnóstico a partir de cortes históricos, periodizações e distinções paradigmáticas como vem sendo realizado pela crítica em torno da distinção moderno/pós-moderno.[3] Faz-se necessária, portanto, uma especial atenção às diferenças estruturais que orientam as relações do modernismo e do pós-modernismo com a cultura de massa e com as vanguardas, para que se possa compreender, de maneira mais acurada, o novo esquema de relações e configurações discursivas que informam a produção cultural mais recente.

De forma flagrante, o que se pode perceber como uma constante nesta polêmica é a necessidade inadiável de uma reavaliação extensa e radical dos pressupostos da arte moderna. Assim, menos do que uma ruptura entre dois projetos culturais e políticos — e nisso se vê a justeza do termo pós-moderno —, as novas políticas de produção cultural evidenciam uma constante negociação com os termos das várias modernidades possíveis.

Um dos conflitos mais calorosos e controversos que permeiam a polêmica pós-moderna é a defesa acirrada dos valores modernistas, pelas elites intelectuais, em nome de uma suposta bastardização da arte, em consequência da possível perda da profundidade da obra de arte e da fragilização dos limites entre a cultura de elite e a cultura de massa. O choque em torno da culturalização dos produtos artísticos é um exemplo eloquente e revelador de uma questão de fundo nem sempre explicitada com clareza: em que extensão esse debate pode ser percebido como um debate sobre a possibilidade, ainda que limitada, de se estabelecer valores democráticos no quadro de uma sociedade de consumo ou mesmo, ampliando a questão, como uma discussão sobre os valores e crises da democracia ocidental contemporânea. E é precisamente neste ponto que a questão pós-moderna na América Latina adquire maior interesse.

Já me referi anteriormente às frequentes recusas em se refletir sobre o pós-moderno no Brasil ou em qualquer dos países que se pensam a partir do modelo metrópole/periferia. No caso da América Latina, temos mais um complicador: o caráter altamente problemático da participação democrática e da multiplicação dos espaços públicos em sociedades até muito recentemente marcadas pelos estados militares. Assim, além da associação usual com as posições conservadoras e “politicamente incorretas”, que identificam o pós-moderno de forma direta com as ideologias do consumo e com as políticas neoliberais, em se tratando de países periféricos esse debate adquire intensidade e gravidade particulares.

Em toda a América Latina, são cada vez mais visíveis as alterações de base por que vêm passando o pensamento teórico e político-ideológico em relação à questão democrática. A lógica do conflito entre Estado e sociedade civil parece substituir a lógica da contradição e das vias revolucionárias, assim como os conceitos de classe e dominação política são reatualizados no debate sobre movimentos sociais e hegemonia. Põem-se de lado as explicações estruturais como aquelas que envolvem as ideias de subdesenvolvimento e dependência para insistir-se no tema do pacto político-social e na complexa problemática da democratização nos “países capitalistas de desenvolvimento médio”.[4] Por outro lado, a questão democrática nestas sociedades vem sendo intimamente comprometida pelos efeitos gerados por sua estreita inclusão no circuito internacional do capital financeiro, pela permanência quase inalterada dos mesmos blocos dominantes no poder e pela concentração intensiva da propriedade e da riqueza, o que torna a discussão sobre a crise da modernidade aparentemente supérflua, mas extremamente pertinente quando vista através da perspectiva da reavaliação da importância das instituições democráticas.

A temperatura política das esquerdas brasileiras frente à crise do socialismo utópico e às dificuldades concretas que se apresentam para a instauração de um socialismo real no país pode ser medida pelo comentário de Maria da Conceição Tavares sobre a reorientação do debate político de oposição hoje no Brasil:

As energias utópicas andam escassas, mas a ética e a democracia substituem com vantagem as certezas ideológicas. Hoje, no Brasil, a esquerda é unânime em relação aos direitos permanentes dos cidadãos e à necessidade de democratização política e partidária como forma de organização da sociedade. Dadas as dificuldades reais de modificação substantiva no que diz respeito aos direitos de cidadania, será preciso aguentar fortes conflitos.[5]

Por outro lado, a natureza colonial e neocolonial da cultura latino-americana coloca em cena a preocupação com o estatuto, e, mesmo com a sobrevivência de nossas histórias e culturas. Questões atualíssimas como o papel do letrado na colônia, a função do barroco no estabelecimento do Estado latino-americano e a própria relação da cultura com o humanismo renascentista, enquanto prática ideológica do Estado absolutista podem certamente contribuir para uma melhor avaliação do desconcerto ideológico gerado pelas políticas da colonização. Na mesma direção, a possibilidade, hoje aberta, de estabelecer-se, com clareza, a diferença entre a noção de história como feito e a de história como discurso sobre a história, ou seja, a compreensão do conceito de história enquanto instituição, pode contribuir de forma decisiva para o refazer das várias histórias “silenciadas” e para a proliferação de intervenções setoriais. […]

* Heloisa Teixeira foi uma das mais importantes intelectuais brasileiras contemporâneas. Ensaísta, escritora, editora e crítica literária, seu trabalho destacou-se nas áreas culturais e feminista e das relações raciais e das culturas marginalizadas. Formada em Letras Clássicas pela PUC-Rio, com doutorado pela UFRJ e pós-doutorado na Universidade Columbia, fundou o Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ) e criou a Universidade das Quebradas, projeto que articula saberes acadêmicos e periféricos. Em 2023, foi eleita membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 30 da instituição.
Notas
[1] Hal Foster. Introdução de The anti-aesthetic, Bay Press, 1995.

[2] Anders Stephenson. “Regarding postmodernism — A conversation with Frederic Jameson”, Social Text, n. 17, 1987, pp. 29-54.

[3] Ver a respeito o trabalho de Andreas Huyssen, After the Great Divide. Modernism, mass culture, postmodernism. Indiana Press, 1986.

[4] Carlos Rincón, “Marginalia sobre posmodernidad”, Trabalho apresentado no encontro “Crítica literária na América Latina”, Casa de las Américas, Havana, 1989.

[5] Maria da Conceição Tavares, Jornal do Brasil, Caderno Ideias/Encontros, 4 de março de 1990, p. 6.