Ano XX 01
Dossiê
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⁠⁠HELOISA TEIXEIRA E O FEMINISMO COMO MOVIMENTO DE AFETO

Nos conhecemos na UFRJ, quando ela organizou a abertura do semestre da Universidade das Quebradas no IFCS e como na época eu era diretora do IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ), ela me chamou para fazer uma pequena fala. Depois disso, fizemos várias parcerias, eu a convidando a participar das atividades e encontros do GT Filosofia e Gênero da Anpof, ela me convidando a participar do volume de Pensamento Feminista sobre feminismo decolonial — uma vertente que se distancia das epistemologias feministas eurocêntricas e se alinha com os saberes insurgentes do Sul global. Lélia Gonzalez (1984), precursora dessa perspectiva no Brasil, já denunciava o racismo epistêmico da academia e afirmava a centralidade da cultura negra e popular na construção de um feminismo afro-latino-americano.

Nos últimos anos, a universidade tem sido desafiada a repensar sua função social diante das demandas por justiça epistêmica e inclusão. Em meio a esse cenário, a trajetória de Heloisa Teixeira — conhecida como Helô — destaca-se como exemplo de uma prática intelectual que articula saberes acadêmicos e populares, teoria e afeto, razão e corpo. Sua atuação à frente da Universidade das Quebradas (UFRJ) é emblemática desse esforço de reconfiguração dos espaços e formas de produção de conhecimento.

Criei um projeto de extensão ao contrário, ou seja, uma extensão de fora para dentro, a Universidade das Quebradas. E constituímos um laboratório com formas alternativas de pesquisa, de acesso às diversas formas de conhecimento e de formação dialógica. (Teixeira, 2019)

A Universidade das Quebradas surge como uma resposta prática àquilo que Sueli Carneiro denomina de dispositivo de racialidade, isto é, a dicotomia valorativa baseada na cor da pele e na qual a branquitude é a norma. Uma das consequências do dispositivo de racialidade é o epistemicídio, que entre vários outros efeitos, leva, segundo Sueli Carneiro, ao afastamento das populações negras, pardas e indígenas das universidades. A proposta da Universidade das Quebradas é fazer justiça epistêmica e fazer com que saberes periféricos entrem na Universidade.

Foi [a Universidade das Quebradas] pensada como um laboratório, ou seja, um processo experimental que tenta estabelecer um diálogo, ou troca, entre a academia e o saber da periferia para a construção de novas formas de produção de conhecimento. (Teixeira, 2019)

Helô, ao integrar os saberes das favelas e periferias cariocas ao espaço universitário, desafia sua lógica excludente e elitista. Em sua prática, reconhece-se a força da experiência vivida como fonte legítima de conhecimento. Como mostra a escritora chicana Gloria Anzaldúa (1987), a produção de conhecimento em contextos de fronteira exige não apenas racionalidade, mas também corpo, memória e emoção — aspectos plenamente presentes na abordagem de Helô.

A atuação de Heloisa Teixeira também convida à reflexão sobre o papel do afeto na produção do conhecimento. A noção de feminismo como movimento de afeto emergiu de minha convivência e colaboração com Helô. Desde o primeiro dia em que a conheci, percebi nela uma enorme vontade de conhecer o outro e de se abrir para novas experiências. Ela nunca impunha sua visão de mundo, ao contrário, buscava, através de perguntas, fazer o interlocutor falar e produzir conhecimento. Helô incorpora esse princípio em sua forma de atuação: seus convites, parcerias e projetos não se pautam por critérios burocráticos ou meritocráticos, mas por vínculos afetivos e políticos.

Cena da série O que querem as mulheres?, que estreia no Canal Brasil. A partir da esquerda: Stephanie Ribeiro, Heloisa Buarque de Hollanda, Morena Mariah e Katiúscia Ribeiro (Foto: Divulgação)
Cena da série O que querem as mulheres?, que estreia no Canal Brasil. A partir da esquerda: Stephanie Ribeiro, Heloisa Buarque de Hollanda, Morena Mariah e Katiúscia Ribeiro (Foto: Divulgação)

Sua pedagogia é centrada na escuta, no diálogo e no reconhecimento mútuo — o que remete também à proposta de Paulo Freire (1996) de uma educação libertadora e dialógica. Ao descentralizar o lugar do professor e valorizar os saberes dos alunos, Helô praticou uma pedagogia contra-hegemônica, que questiona a verticalidade da relação ensino-aprendizagem e propõe novos pactos afetivos dentro do espaço acadêmico.

Helô seguiu essa trilha ao criar espaços em que os corpos e vozes da periferia ocupam o centro do debate. Mais do que incluir “os outros” na universidade, ela propôs reconfigurar o próprio modo como entendemos o que é universidade e quem tem o direito de ensinar.

Heloisa Teixeira representou uma ruptura criativa e necessária nos modos tradicionais de fazer ciência e política na universidade brasileira. Sua trajetória como coordenadora da Universidade das Quebradas e sua concepção de feminismo como movimento de afeto apontam para uma prática intelectual profundamente comprometida com a justiça social, a escuta ativa e a valorização dos saberes não hegemônicos.

Ao nos mostrar que o conhecimento também se produz com afeto, com corpo e com território, Helô nos convida a repensar não apenas o conteúdo do que ensinamos, mas também a forma como ensinamos — e com quem. O que tornou Heloisa uma presença única na academia foi sua postura despretensiosa, mesmo sendo uma intelectual de grande renome. Em suas entrevistas e obras, transparece sua dedicação em ser uma intelectual profundamente conectada às necessidades e desafios de seu tempo. Sua abordagem era marcada por uma sensibilidade que transcende barreiras, sempre buscando construir espaços inclusivos e acessíveis.

* Susana Castro é professora titular do departamento de Filosofia e do programa em pós-graduação em Filosofia (PPGF) da UFRJ. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente com os seguintes temas: metafísica antiga (esp. Aristóteles), filosofia da educação, neopragmatismo, estudos de gênero, feminismo decolonial. Coordena o laboratório Geofil – Laboratório de Geofilosofias. Autora dos livros Filosofia e Gênero (2014), Ontologia (2008), As mulheres das tragédias gregas: poderosas? (2011), Aristóteles, uma introdução (2021), Imaginação, desejo e erotismos (2022) entre outros livros e capítulos de livros.
Referências bibliográficas
ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 1987.

CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade. A construção do outro como não ser como construção do ser. Rio de Janeiro: Zahar 2024.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira.” In: GONZALEZ, Lélia. Primaveras para as mulheres afro-latino-americanas. São Paulo: Zahar, 2020.

HOLLANDA, Heloisa Buarque. Onde é que estou? Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.